Há mais de sessenta anos, “naquele tempo”, como diz a minha vó, os alemães enlouqueceram e cometeram algumas centenas de tipos de atrocidade, abrindo precedentes para que outros povos – também civilizados - cometessem as suas.
Por causa daquela guerra a civilização ocidental decidiu sentar e mudar as regras do jogo. A partir daquela copa do mundo da barbárie qualquer partida amistosa como a guerra da Coréia, a das Malvinas ou a do Afeganistão precisaria estar submetida a novas regras. Desde aquele tempo não vale mostrar prisioneiros de guerra na tevê. Desde aquele tempo não vale humilhar nem executar inimigos que se rendem. Desde aquela guerra existem os crimes de guerra, por mais estranho que soe separar o que é crime numa guerra. Ou seja, desde que as regras permitam (e elas permitem) nós podemos, por precaução, despejar 3 mil bombas e mísseis, num único dia, sobre milhões de pessoas. O que não podemos é mostrar seus rostos, suas feridas e seus cadáveres. Isso seria desumano, humilhante, cruel.
Na minha rua as brigas também eram muito organizadas e civilizadas. Não valia dedo no olho, puxão no cabelo nem chute no saco. Todo o resto era permitido pela convenção de Genebra, e Genebra era o campinho de futebol da Rua Portugal, onde a maioria das brigas acontecia. Se você já tivesse 15 anos e pesasse uns 70 quilos, podia, sem violar lei alguma, surrar um garoto de 12 que pesasse 40, diante de uma platéia neutra, igualmente civilizada, que apenas assistia a tudo e depois corria pela vizinhança pra contar as novidades, como correspondentes de guerra profissionais.
Assim como nas guerras dos adultos, as brigas anunciadas com dias de antecedência movimentavam o bairro e as apostas corriam soltas. Quando chegava a hora, os repórteres já estavam posicionados e preparados para transmitir todos os fatos aos ausentes. É claro que, também como nas guerras dos adultos, se você fosse repórter e amigo de uma das partes, fatalmente iria dar a sua versão, nada imparcial, dos acontecimentos. A imensa maioria dos fofoqueiros (os repórteres) era aliada do grandalhão, primeiro porque estar do lado do vencedor, especialmente quando ele representava o Bem, era muito bom; depois porque contrariá-lo era garantia de que o próximo da lista seria você.
Hoje a guerra está dentro de casa, na tevê. Tem um Steven Segal de 130 quilos, de olhos azuis, roupa e cabelo impecável, com um bastão de beisebol e um soco-inglês, surrando um garoto de 50 quilos, feio e sujo, que está com as mãos atadas. Todos os fofoqueiros do bairro são amigos do maioral e contam que ele está surrando o outro para o bem dele. Como sempre, há alguns repórteres audaciosos mostrando o outro lado da verdade, e eu tenho pena deles, porque eles já estão na lista do Mal. Os fofoqueiros aliados à operação “Liberdade ao Frangote” também não têm liberdade pra contar e mostrar tudo, senão também ficam sem os dentes. O frangote é órfão de pai e mãe, e não há quem o defenda. Já foi muito amigo do grandalhão, mas também ficou ganancioso demais e hoje é do Mal. O grandalhão acabou de dar uma bofetada nele e o obrigou a ajoelhar-se na sua frente. Isso é contra a Convenção de Genebra, o Campinho da Rua Portugal. Guisar pode, não pode é humilhar, pôxa.
Só quero ver se o Conselho de Segurança da Rua Portugal vai ter coragem de se reunir pra julgar o grandalhão. É claro que ele tem lá suas razões, afinal o frangote do Eixo do Mal representa uma ameaça à paz do bairro inteiro com seu estilingue puído e sua pistola de água. Eu acho que, se o Conselho amarelar, o grandalhão vai eleger os próximos a apanhar. Espero que eu não esteja na lista do Eixo do Mal, mas algo me diz que estou, desde aquela vez em que ele surrou outro magricela e eu não o aplaudi. Já posso até ver: ele vai dizer que estou apanhando porque deixei uns malfazejos da gangue famosa do bairro, a FARC, ligada ao Eixo do Mal, se apossarem do meu quintal, cheio de plantas valiosas. Vai me libertar também, em nome do Bem.
É, acho que guerra me lembra a minha infância. Até mesmo das vezes em que eu e meus irmãos assistíamos nosso pai surrar nosso irmão caçula e não fazíamos nada, apesar de morrermos de pena dele. Afinal, se tentássemos intervir, entrávamos na roda da palmatória também. Compaixão é uma coisa, loucura é outra.
Mas existe diferença entre as brigas do bairro e as de hoje?
Sim, há uma diferença. O preço dos brinquedos dos adultos é bem diferente dos da criançada. Das brigas e das apostas do bairro dá até saudade. Das brigas e das apostas do mundo não há como sentir saudade. Nós, os adultos, não deixamos que elas fiquem no passado.
De resto, diferença nenhuma.
Roger Waters disse, na música “Nós e Eles”, que “Ter / Não Ter / Quem vai negar que é por isso que são todas as brigas?”.