Naquela noite de terça-feira, a cidade oferecia vários atrativos.
O Teato de Santa Isabel, que até o dia anterior apresentara o espetáculo "Liliputiana", com uma troupe de anões, anunciava o retorno do seu grandioso e maravilhoso cinematógrafo, o mais importante da América do Sul, com a exibição da fita cinematográfica "A dama de branco", dividida em quatro partes, com 381 quadros e 2.000 metros, um verdadeiro mimo e arte e beleza da afamada fábrica Nordisk-Film.
O Cinema Helvética não ficava atrás, apresentando o filme "A torre da expiação", com 594 quadros e 2.800 metros. No cassino, apresentava a excelente paródia à ópera "Fausto", destacando-se ainda, na programação, a guitarrista portuguesa Carlota Duarte, de bela voz e muita graciosidade.
O Teatro Moderno, situado na aprazível pracinha da Concórdia, por seu lado, apresentava em suas sessões cinco atraentes produções cinematográficas: "Vales e ruas no Cairo", da Pathé Color; "Os sinos da morte", impressionante produção da Casa Ambrosio, em três partes, 1.400 metros e enredo empolgante; "Bebé faz um rapto", cena cômica também da Pathé; "O duelo do louco", drama em duas partes, 1.000 metros, com entrecho de muita intensidade e valor; e "Miss América", comédia esportiva também do fabricante Ambrósio.
O Recife entrava definitivamente nos tempos modernos com a consolidação do cinema, inventado em 1895 pelos irmãos Lumiére, em Paris, como forma de entretenimento popular.
Nada disso, porém, seria capaz de interferir na determinação daqueles jovens, a maioria estudantes do Colégio Salesiano, de fundar o seu clube de futebol.
Desse modo, na noite daquela terça-feira, dia 3 de fevereiro de 1914, deixando de lado os encontros habituais no pátio da Igreja da Santa Cruz, no bairro da Boa Vista, reuniram-se na casa nº 2 da Rua da Mangueira para fundar o Santa Cruz Football Club. Nessa reunião foram aprovadas as cores branca e preta como oficiais e foi eleita a primeira diretoria.
Assim, em branco e preto como o cinema recém-inventado, surgia um dos maiores clubes de massa da história do futebol brasileiro. Assim como o cinema, o futebol também se popularizava deixando de ser privilégio das elites para cair no gosto das classes sociais menos favorecidas.
Segundo o jornalista Givanildo Alves, no livro "História do Futebol em Pernambuco", o médico Martiniano Fernandes, o Tiano, que jogou no Santa Cruz no período de 1914 a 1917, atribuía a popularidade logo conseguida pelo Santa Cruz ao fato de ter sido fundado por gente muito jovem, em contraponto aos sisudos ingleses que, ao lado dos filhos ricos da burguesia pernambucana, formaram as primeiras agremiações do nosso futebol. Além disso, ainda segundo Tiano, o santa Cruz teve em suas fileiras Teófilo Batista de Carvalho, o Lacraia, o primeiro negro a atuar no futebol pernambucano. Lacraia, inclusive, foi o criador do escudo do time, em 1915, inspirado em uma âncora branca que simbolizava a esperança.
Conta Givanildo Alves, ainda, que a primeira partida do clube se deu contra o Rio Negro, uma agremiação também nova e composta na sua maioria por garotos. O jogo aconteceu na Campina do Derby, no mesmo local onde foi realizado o primeiro jogo de futebol no Recife, entre o Sport Recife e o English Eleven, em 1905, e que continuava a ser o principal pólo das atividades futebolísticas na cidade. Tendo como grande figura do jogo o atacante Carlos Machado, autor de cinco tentos, o Santa Cruz ganhou a partida pelo placar elástico de 7x0.
Inconformados com a derrota, os jogadores do Rio Negro solicitaram um jogo revanche, impondo, no entanto, duas condições: o "match" seria realizado no campo do Rio Negro, situado na Rua do Sebo, hoje Barão de São Borja, e o Santa Cruz atuaria sem o seu artilheiro Carlos Machado. Condição aceita, o jogo foi realizado com o Santa Cruz impondo outra goleada, dessa feita por 9x0, e com Carlindo Cruz, o substituto de Carlos Machado, fazendo seis dos noves tentos assinalados.
Era o Santa Cruz vivendo os seus primeiros momentos de glória.