Na última quarta-feira, dia nove de abril, a Rede Bandeirantes fez o favor à humanidade de veicular o polêmico documentário, "A vida íntima de Michael Jackson", onde a imagem do atormentado cantor é destroçada em clima de "Linha Direta", por Roberto Cabrini, envolto numa aura auto-masturbatória do jornalista responsável pelo documentário, que não faço a mínima questão de lembrar o nome. Michael Jackson tem suas bizarrices, disso não há dúvida; mas também fica claro que meteram uma lupa em suas esquisitices. E a imprensa mundial - e a brasileira, claro - embarcou no sensacionalismo barato, condenando e veiculando fofocas, enfim, dando vazão ao nosso cada vez mais sexualizado cotidiano. E prossegue se permitindo às notícias-showbusiness, com exemplos frequentes de como fazer um jornalismo baseado em fatos reais.
Como bem disse Caetano Veloso, "de perto ninguém é normal". Mas, com Michael Jackson, que se auto-estipulou em mais de um bilhão de dólares, e assim sendo, sua anormalidade é levada ao êxtase. Só mesmo uma sociedade machista, preconceituosa e hipócrita ao extremo para relacionar tudo com sexo. E o papel da mídia?, conscientizar?, dar ao povo o que o povo quer? Definitivamente, dormir com crianças não é normal; mas também não há nada de errado ou ilegal. A própria linguagem está tão carregada de duplo sentido que até o verbo dormir já denota em si sexualidade. E quem deveria primar pela língua, nessas horas, dorme.
É aquela velha história: a maldade está nos olhos de quem vê. E, no caso de Michael Jackson, toda a imprensa pareceu ver - ou fingir que viu em nome do sensacionalismo. Está certo que ele tem um histórico de acusações de pedofilia, mas se restringiram a isso, acusações - sendo julgado e condenado apenas pela própria imprensa -, e mesmo assim, poucos foram os jornais que, ao darem espaço ao depoimento do documentário, enfatizaram a acusação. Ou seja, condenaram o cantor pelo simples fato dele ter dito que dormiu num mesmo quarto com uma criança.
O único argumento de defesa permissível é que ele pode ter descredenciado todo o seu depoimento com algumas mentiras deslavadas, como quando disse ter feito apenas duas cirurgias plásticas no nariz. Isso sim foi bizarro, mas... e daí?! Pelo sim ou pelo não, é apenas fofoca, "vida íntima..." de artista à que toda mídia dedicou seus valiosos espaços. E mesmo que ele tenha mentido, nada mais justificável que o cantor esconda da mídia, pois, como - pelo menos isso - ficou claro no documentário, o sofrimento em toda a sua vida foi perene, inclusive por questões estéticas moralmente denegridas pelo próprio pai, enquanto ele, criança, tinha ainda que enfrentar o mundo diante das câmeras. E em vista desse histórico, nada mais justificável que se sinta confortável apenas junto à ingenuidade e inocência mais que nunca restritas à infância.
Mas, toda a imprensa não se deu ao trabalho de fazer reflexões, meter o dedo na ferida, levantar doenças psicológicas possíveis do cantor ou o por que do cunho sexual em quaisquer assuntos tratados pela mídia. Resta saber: a imprensa brasileira embarcou na onda sensacionalista internacional, ou teve a "capacidade" de julgar por conta própria? Todo o mundo está submerso no sexismo ou temos um maior talento para isso, país do carnaval e éguinhas pocotó? Os programas de humor podem ser um bom termômetro: nunca estivemos com um senso de humor tão atrelado ao trocadilho e piadas de cunho sexual. Casseta & Planeta que o diga.
Tudo isso retrata bem não apenas uma nova época - acompanhada e apoiada pela mídia - regida exemplarmente pelo sexualismo, como também às notícias showbusiness. Dois outros exemplos amplamente noticiados: quando a "Empresa" Clonaid convocou uma coletiva de imprensa e, simplesmente, disse que tinha clonado um ser humano e fim de papo - o maior golpe de marketing da história; e, mais recentemente, na "propaganda" em que uma multidão de iraquianos comemorou em meio à estátua derrubada de Saddam - enquanto tornou-se irrelevante a informação de que se tratava na verdade de xiitas, estes, desde sempre contrários ao regime do ditador, e portanto, reação natural que não significava necessariamente apoio popular.
Essa informação, fornecida pelo correspondente Marcos Uchôa, se ateve a um breve comentário. Na ocasião, o Jornal Hoje, da Rede Globo, preferiu enfatizar que aquelas imagens entrariam para a história. Tudo como no cinema (leia-se, entretenimento): no primeiro exemplo, da Clonaid, a sensação de vivenciarmos um filme de ficção, e no segundo o final "feliz" de um filme dramático. Em suma: sexo, vida e morte em prol da audiência. Em tempos de guerra e sensacionalismo gratuito, assistimos ao holocausto da verdade. E o jornalismo, pano de fundo; mero artifício para considerar tudo "baseado em fatos reais".