Toda a costa do Sudoeste de Espanha é um convite, para além do apelo às suas estâncias balneares e da prática do respectivo veraneio marítimo, a uma incursão na História da Humanidade - um rasto significativo que se perde, ou re-encontra, no Neolítico, estando aí bem assinalada, e na posterior Idade do Bronze, estendendo-se no tempo cronológico até aos vestígios e às marcas mais visíveis e mais recentes das guerras da Independência contra as expansões imperialista muçulmana e napoleónica.
Em Cullera, observámos os vestígios dos Fenícios, Gregos e Romanos e Árabes. Já, por outros sítios, os observámos em: Marbella, Benalmadena, Málaga, La Manga, Cartagena, Alicante, Almeria, Peñiscola, Valência, Barcelona e Las Palmas...
O Arquipélago de As Baleares é hoje uma Província de Espanha, um conjunto de quatro ilhas (Maiorca, Minorca, Ibiza e Formentera), cuja ocupação remonta ao tempo dos Púnicos; tornou-se árabe de 902 até à reconquista cristã pelos aragoneses (1229-1286). Nessa reconquista o Reyno d Aquém e d Além-Mar em África e Senhor dos Algarves (Portugal), mandou um exército, comandado por um monarca familiar da Casa Real, para auxiliar D. Jaime I, que heveria de notabilizar-ne para reforço ao combate façanhudo executado. Desse facto a Catedral de Palma de Maiorca, ilustra o fidalgo português com especial consideração pelo acto solidário numa galeria de retratos de nobres e comandantes.
Por toda esta costa bojuda, está escrita a História Hispânica Peninsular, receptora geofísica dos primeiros navegadoras com vela árabe, espaço dum florescente mercantilismo mediterrâneo, do qual não era alheio outros mundos originários das rotas da seda e do Reino de Prestes-João no Médio-Oriente.
O Castelo de Cullera a 38 kms. De Valência, situado a meia-colina do Monte do Ouro, domina a baía espiando a terra e gentes do casco antigo, seguido, numa progressão galopante de construções novas projectadas para veraneio de turistas de toda a Europa - a moderna Cullera. A origem da urbe radica-se na Antiguidade, como já dissemos. Das ruínas do Castelo mouro original, o rei Jaime I mandou construir um novo, no séc. XIII, restaurado mais tarde por Pedro IV – o cerimonioso.
A seus pés, o rio Júcar, conflui com o Mediterrâneo, sem antes se espraiar por uma extensa rede de canais que regam uma grandiosa horta, parcelada ou dividida por limitações humanas de apropriações individuais, e constituída por arrozais, pomares, laranjais, olivedos, alfarrobeiras e outras fruteiras.
De 1235, data em que o rei Jaime I veio a estrelar-se contra os mouros no intento de conquistar Cullera, até 1247, em que definitivamente o rei expulsou o último árabe subjugado, mas entretanto rebelado, o Sul de Espanha foi alvo de lutas e motins que fizeram florescer o espírito de reunificação hispânica, confinando-lhe as suas fronteiras naturais, dos Pirinéus ao Mediterrâneo ficando-lhe apenas coarctado nos seus intentos expansionistas o Reyno de Portugal.
E foi exactamente, ali, em Cullera, o local onde aconteceu um episódio de proporções inimagináveis, e que está consolidado por uma memória forte nas gentes da região, com local próprio, feito museu, conservado e agora dado à observação dos estudiosos e turistas, esses que, além de veranear também vão à cata de vestígios históricos e culturais, os quais recreiam o espírito, e tornam a sua estadia mais animada e mais rica nos aspectos cultural e artístico.
E o que aconteceu em Cullera, assim tão digno de nota, e estupefacção para os povos de toda a Espanha? Certo dia, ao amanhecer Dragut atacou ferozmente, terrivelmente, com o cutelo na mão direita e a pistola na esquerda, esta povoação causando um pandemónio sanguinário. Dragut, o turco, o pirata de barba rija e roja, negra, com turbante, ladrão-mor dos mares, gatuno refinado pela saga sanguinária da devastação e morte, rapto, estupro e violação, roubo e rapina, abusador da chantagem, e do resgate malvado face a pessoas indefesas, pacíficas, inocentes, gentes pobres e laboriosas, Dragut, corsário dos mares, e, por isso, admirado por meninos que às lendas dão importância, que não têm, aqui fez uma das suas proezas diabólicas.
O povo imprecatado, surpreso, fugiu para e pela encosta íngreme, largando e abandonando todos os haveres ao desbarato, ficando assim disponíveis ao saque. E ele foi concretizado pelo bando criminoso sem rei nem roque, sem lei nem vergonha.
A tudo o que não pôde levar, Dragut (e os seus sequazes) lançou o fogo e fez enorme fogueira. Nela queimou todos os utensílios de madeira e lâmpadas de pinho que eram destinadas a iluminar as casas e oficinas durante o Inverno, assim como incendiou a Biblioteca da região. Foram queimados na fogueira densa, documentos históricos importantes (loucura praticada por loucos desumanos!). Para que ficasse eternamente na memória das gerações, o povo festeja a triste efeméride com a chamada: Festa das Pallas, todos os anos em Junho. Nesta festividade dramática da recordação masoquista, os autóctones recordam assim Dragut, e, nesse aproveitamento sádico-simbólico, queimam também a sua efígie para que permaneça para sempre nos infernos com todos os seus súbditos.
Do seu feito inglório, os cullerenses recordam-no ainda na Cueva-Museo de Dragut em Cullera, um museu singular que alberga uma exposição temática ao público contendo amostras originais e cópias da pirataria mediterrânea no séc. XVI, uma iniciativa e obra promovidas por iniciativa municipal. À entrada, mas logo dentro, um diagrama (diorama) ilustra a vida real em Cullera em 1550.
Também é evocado todo o contexto sócio-político da Região Sudoeste espanhola: a vida quotidiana dos seus habitantes, a Inquisição com os seus famosos e incrivelmente sádicos instrumentos de tortura (os que decepavam, torturavam até ao assassinato, deformavam corpos e almas, e exemplificavam o ódio trágico-pornográfico possível na natureza humana), a pirataria hedionda e o seu corso de horrores.
É uma exposição única no género. Podemos, ademais, observar os instrumentos náuticos do século setecentista, inventados então graças aos avanços da astronomia. Aí é dado a conhecer, finalmente, o avanço técnico da Artilharia militar.
O elemento mais notável e curioso é, no entanto, a representação reproduzida de um batel «bergantin», galera corsária de assalto muito rápida e com grande eficácia, a recordar os barcos Vikings. E para ilustrar toda a tragédia, até Miguel Cervantes está aí representado em efígie, contextualizado no seu cativeiro em Argel, e exibindo um testemunho das embarcações turcas e berberiscas.
Esta origem do Museu situa-se na vontade de representação deste memorável acontecimento histórico, que causou enorme emoção no antigo reino de Valência. Foi precisamente no dia 25 de Maio de 1550 que o famoso pirata turco, capitão-tenente do terrível Barabroja, atacou a villa de Cullera.
Conseguiu Dragut um importante espólio de guerra em bens e prisioneiros, muito embora fossem enviados reforços militares de Valência, e no final, o certo é que os piratas conseguiram um lauto saque com o pagamento de resgates, obtidos pela chantagem e pela extorsão, e levados a efeito vitoriosamente entre a população do burgo por estes criminosos marítimos ao deus dará!
Cullera, ressentida desta sangria ficou praticamente despovoada e para colmatar a falta de segurança, iniciou depois a construção de novas fortificações que devolveram à cidade a tranquilidade habitual. Para reforçar ainda mais a segurança de Cullera o rei Filipe II, e Filipe I de Portugal, mandou levantar no sé. XVI uma Torre de vigia e defesa, intitulada Marenyet, pronta a servir a urbe contra os ataques dos piratas. Recorde-se que Portugal neste momento estava sob o domínio espanhol, por causa da derrota infantil de D. Sebastião em Alcácer-Quibir contra sete Reis mouriscos; a morte do Desejado ou Esperado fez com que a Casa Real espanhola tivesse herdado o Reino de Portugal por direitos de sucessão, aos quais estavam legalmente, e pelo foro universalizado, vinculadas as Monarquias existentes na Península. Foram sessenta anos de cativeiro que o Mestre de Avis certo dia justiceiro, veio a pôr cobro com a eliminação física perpetrada pelo seu próprio punho, armado dum punhal, do Conde Andeiro, amante de D. Leonor de Teles, regente real, sob o jugo espanhol. D. Filipe II, apesar de espanhol, deixou trabalho feito na costa portuguesa, pois fortificou-a, assim como toda a espanhola, mandando construir fortins já equipados com artilharia pesada, adequada à defesa dos ataques mouros e árabes, pois que estes de vez em quando pilhavam numa saga de destruição, as populações das costas marítimas europeias. Efectivamente, muitas das fortificações ainda se assinalam na correnteza da costa lusitana.