“estou pensando em auroques e anjos, no segredo de duráveis pigmentos, em sonetos proféticos, no refúgio da arte. E esta é a única imortalidade de que você e eu podemos compartilhar, minha Lolita.”
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Humbert Humbert, cidadão francês, radicado nos Estados Unidos da América, escritor, foi preso e se encontra à disposição do MMº Juiz da Comarca de Ramsdale, acusado de homicídio qualificado, rapto e mantença em cárcere privado, etc., sendo vítimas, respectivamente, Clare Quilty, autor teatral americano e Dolores Haze, ninfeta, de alcunha “Lolita”.
Interrogado, o réu confessou a autoria e a imputação. Aceita de bom grado qualquer pena que lhe seja imposta, exceto a já agonizante e malfadada pena de morte.
A crítica literária, em sua apressada maioria, opinou pela condenação à laia de pena capital.
É o relatório.
Velhaco. Eis aí em uma palavra a definição que oferto ao homem feito Humbert Humbert quando ouso enxergar além de suas escâmulas, engenhosamente lapidadas e harmonizadas com lascas de fino humor, resignação, devoção, ecletismo... paixão. Julgamento severo seria alçá-lo à categoria de pedófilo inveterado, embora uma ou outra passagem do livro, digo, do processo, talvez assim o denuncie.
No homem sobrevive ainda o menino. O mesmo menino a ostentar no mais recôndito da lembrança uma avassaladora desilusão: Annabel. E esse é um fato perpetuado no tempo – a que todo e qualquer homem está sujeito, como Dante e Camões – que necessariamente atenua sua conduta criminosa. Sua teoria acerca da natureza “nínfica”, ínsita a certas meninas de 9 a 14 anos, não tem o valor negativo pretendido pela rigorosa pena daqueles que o acusam.
Dirão que se trata de um anormal, de um devasso, de um pervertido, de um hipócrita. Indagarei, pois: quem neste mundo é normal? O que é ser normal, ter uma conduta retilínea? Acaso tais concepções não se encontram à mercê do tempo? Quanto de devasso, de pervertido, de hipócrita não reside em nós... não residia em Lolita? Até onde nossa conduta poderá permanecer sob a égide da isenção?
Ele a amou. Amou enquanto menino e ainda mais enquanto homem - a mesma cândida manifestação nostálgica do mais nobre sentimento que se pode ostentar, devotado a duas criaturinhas terrenas. A primeira vez, um misto de platonismo e descoberta. A segunda, a consumação espiritual, embora unilateralmente, e carnal. Todavia, de sua inconstante e plena felicidade ressurgiu o espectro da desgraça. Outra vez.
Até que ponto a inculta e bela ninfeta estava sob seu jugo? Até o ponto mais próximo, certamente, onde se abria a primeira porta que apontasse para a fuga, já esperada. Haja vista as vezes em que a menina saía em desabalada carreira, fazendo-o persegui-la desesperado, ofegante, estertoroso. Menos pela dependência que tinha dele do que pela falta de um qualquer lugar para onde pudesse ir ela voltava. Até que um embusteiro, fabricante e vendedor de sonhos a seduziu e a levou.
Nesse momento, o velho Humbert Nabokov morreu. Dele restou, a choramingar copiosamente, o mesmo menininho que em uma tenra alvorada pretendeu amar a apaixonante Annabel. O velho morreu de amor para renascer nos doridos olhos do menino de antanho. Desse insólito amálgama (vida, morte, juventude, velhice, amor, ódio, desilusão) insurgiu-se contra a existência alheia a vontade de matar. O velho Humbert matou. Morreu o raptor, morreu o menino que nele havia, morreu Annabel. Só Lolita ficou.
Vladimir Humbert Nabokov. Enquanto o mundo vivia ou deixava de viver os ecos da guerra, enquanto se vangloriava o existencialismo por lograr apertar uma corda no pescoço de todas as gentes e alargar o abismo de todos os caminhos e despertar nas mentes toda sorte de conflito, enquanto ser bom era ser moderno, você nos segredou - e às gerações futuras – um jeito especial de amar uma mulher, seja ela ninfeta ou não. E nós amamos Annabel. E nós amamos sua imortal bem-amada Lolita, com a mesma sede voraz com que você o fazia. Nós a perdemos, nós, juntos, a perseguimos, nós a achamos, desesperamo-nos, matamos o raptor, fomos presos. Cúmplices. Condenados.
Assim, meu singelo e reconhecidamente parcial parecer é no sentido de que você seja absolvido do julgamento dos homens para, em seguida, ser condenado a inscrever seu nome (o que já aconteceu) na página primeira do livro sagrado dos imortais. Sim, condenado. Condenado como, de uma forma ou de outra, o foram os máximos expoentes da expressão artística e criadora humana. Colherá seus louros sobretudo no tempo de seus pósteros, ao lado da sua, da nossa Lolita. Lo-li-ta!