Julgam, alguns analistas, que a deflagração da "guerra contra o Terrorismo" - do qual o ataque ao Iraque consistiu em uma das últimas etapas - foi o momento decisivo no qual os Estados Unidos passaram de Superpotência remanescente da Guerra Fria a indiscutível Império global. Tal ato - eivado de grande simbolismo - traria consigo um caráter de ruptura herdado do processo de formação do mais famoso dos Impérios, a Roma Antiga. A passagem da Roma republicana ao Império Romano não fôra, afinal, desencadeada pelo ato pioneiro de Júlio César em 46 A.C., ao decidir trespassar o rio sagrado Rubicon com seus exércitos para destronar seu rival Pompeu, tornando-se assim o único senhor da "Cidade Eterna"? Ao pronunciar a famosa frase ALEA JACTA EST (A sorte está lançada) às margens do Rubicon, César desanuviava uma nova forma de organização política, deveras mais complexa que as Cidades-Estado antigas e capaz (pelo menos durante os longos séculos de seu esplendor) de assegurar a Paz em longas extensões territoriais, em escala supra-continental - o Império. 2000 anos depois, não cessam de rufar as trombetas que anunciam, triunfantes, a "chegada do Reino". Não dos céus, mas dos arranha-céus (e sem aviões, nesse caso). Cuidadosa análise é necessária para verificarmos correspondências e contrariedades entre a experiência Romana e Estadunidense, a fim de diminuirmos nossa incerteza quanto ao caráter dos fatos cujo desenrolar assistimos (e que nos afetam, de qualquer forma).
A analogia romana se iniciaria na caracterização do novo Império - fundado, como aquele, em esmagadora superioridade de força capaz de ser aplicada em extensões cada vez maiores do território do globo, ainda que não prescinda de um mínimo arcabouço institucional. A Roma Antiga possuía seu "Jus Fetiali" - embrião de Direito Internacional que regia as relações do Império com seus subordinados e inimigos. Este, entretanto, era submetido aos (obscuros) desígnios e interpretações de um grupo restrito de anciãos sacerdotes - os Feciais - que, literalmente, "faziam a guerra e decidiam a paz" com base nos ditames dos deuses. Sendo grandemente numeroso o Panteão romano (divindades dos povos conquistados passavam a fazer parte deste quase automaticamente), não é de se espantar quão maleáveis eram os desígnios divinos que motivavam as guerras romanas, tal como decidido pelos Feciais. Podemos pensar que os Estados Unidos ajam de forma similar - legando aos "falcões" da administração George W.Bush encontrar motivos minimamente razoáveis para justificar, por exemplo, o ataque ao Iraque, não obstante a tortuosidade dos raciocínios empregados e a escassez de provas materiais que os sustentem. Geralmente, é digno de nota, tais argumentos fundamentam-se em valores morais - tais como o direito à liberdade dos indivíduos ou o dever dos norte-americanos em pôr fim ao maléfico governo-alvo (convenhamos, no caso de Saddam Hussein um apelo nesse sentido seria desnecessário para qualquer observador minimamente ciente dos horrores vividos no Iraque desde o início de seu governo), conferindo caráter "transcendente" a ações do governo estadunidense que, de outra forma, poderiam ser vistas meramente como a busca de determinados objetivos políticos através de meios julgados adequados, no caso a força (já dizia Maquiavel).
Há, porém, um complicador moderno - ao lado da força (a esmagadora superioridade militar dos Estados Unidos) temos, em nossos tempos, um arcabouço institucional mais sofisticado que nos idos do século I A.C. Toda um conjunto de organizações internacionais (políticas ou não, voltadas ou não para a propalada "segurança coletiva") e toda uma longa história de consolidação do chamado "Direito Internacional" ou das gentes lentamente erigiram-se como "blindagem", como amortecedores das relações entre as unidades políticas nacionais, minimizando a necessidade e a frequência de solução de controvérsias via força (ainda que sua ação esteja longe de ter esvaziado de sentido as disputas por "poder" entre as mesmas unidades políticas - pelo contrário, a própria conformação dessa rede de "blindagem" reflete a distribuição do "poder" entre as citadas unidades). A relativa sofisticação institucional de nosso tempos - capaz de impedir o estabelecimento de uma "guerra de todos contra todos" no plano internacional, a despeito de não apresentar um "Leviatã" internacional responsável pela manutenção da ordem e garantidor da auto-conservação de todos no sistema (fazendo menção a Hobbes) - impede que os Estados Unidos decidam simplesmente atacar o Iraque, fazendo com que a tal decisão se anteponham consideráveis custos, não apenas políticos.
Tal fato não empalidece mesmo diante de declarações do governo estadunidense no sentido de que haverá guerra "custe o que custar". A justificativa para o ataque ao Iraque foi de que, na ausência de uma decisão multilateral capaz de coibir a ameaça iraquiana (ou seja, havendo pretensa falha institucional, rombo na "blindagem", deliberado ou não), os Estados Unidos têm o dever de proteger-se de ameaças POTENCIAIS à sua segurança. Friso que cabe, nesse contexto, aos Estados Unidos decidir quem e o quê consistem em ameaças potenciais à sua segurança. E, com base nessa decisão (em tudo semelhante às tomadas pelos "Feciais" do passado), os Estados Unidos teriam o "legítimo" direito de se lançarem em guerras PREVENTIVAS. A analogia hobbesiana continua válida nessas últimas linhas - os Estados Unidos, lançando mão de "juízo privado" acerca de sua auto-conservação, lançam-se em ações preventivas. Tais práticas, uma vez disseminadas pelo sistema (no caso, internacional) redundariam...na "guerra de todos contra todos", o que inviabilizaria no limite a própria possibilidade de consolidação do Império. Caberia aos Estados Unidos, assim, impedir a disseminação de tais práticas em caráter sistêmico, conquanto reservando a si o direito de "eventualmente" lançar mão delas. O famoso "Faça o que eu digo e não faça o que eu faço". Isso se traduz em...negociação, geralmente no marco da "blindagem" institucional. As organizações internacionais e o Direito Internacional, assim, são duplamente afetados pela ascensão imperial - tendo sua eficiência é minimizada e, ao mesmo tempo, ganhando sobrevida. Tornam-se, no dizer de James Rosenau, "simultaneamente inadequados e imprescindíveis".
Tanto as ações preventivas quanto o limitado "oxigênio" dado às instituições internacionais não são elementos estranhos à política externa dos Estados Unidos. Basta lembrar da invasão do Panamá em 1989 (promovida, não por acaso, por George Bush pai) que "desarmou" o general Manuel Noriega - curiosamente, como Saddam Hussein (e Osama Bin Laden!) um ex-colaborador e eventual aliado dos Estados Unidos. Digno de nota é a oratória empregada pelos líderes dos Estados Unidos - ontem, "prender o criminoso Noriega", hoje "desarmar o assassino Saddam". Ações que suprimem o Direito Internacional e que, não casualmente, são corroboradas por uma oratória que centra seu foco nos indivíduos (e não nos Estados alvos da ação) e que ao qualificá-los como criminosos, erege sobre os escombros do Direito Internacional um arremedo de Direito Penal interno. Da mesma forma, podemos pensar na criação da própria ONU como instituição constituída de órgãos recomendativos, com exceção do seu Conselho de Segurança eivado de poder vinculatório (no entanto, tornado muitas vezes inócuo pelo poder de veto concedido aos seus membros permanentes, Estados Unidos incluso) como exemplo de provisão limitada de "oxigênio" às instituições internacionais. Cabe às instituições internacionais servir de foro para debate e limitadas negociações - somente eventualmente estas serão foro privilegiado para a tomada de decisão, em virtude da primazia do "juízo privado" e das ações preventivas.
Um Império, acima de tudo, deve ser capaz de promover, no interior de suas extensas fronteiras, o primado da Paz. A famosa "Pax Romana" dos séculos I a III D.C. é o exemplo mais citado nesse sentido. O ex-presidente estadunidense Bush (pai do atual presidente - ou seja, fundador da dinastia imperial?) provavelmente se referia à Pax Romana quando proclamou após a vitória do Golfo, em 1991, a chegada de uma "nova ordem mundial". A Paz aqui deve ser entendida não como ausência de conflitos nem tampouco, numa versão mais modesta, como ausência de guerras. Muito pelo contrário! A Paz é COLORÁRIO da guerra (melhor dizendo, das guerras que consolidem o Império). Os "bárbaros" são progressivamente vencidos e...apaziguados. Não há incompatibilidade entre guerra e Paz no Império num primeiro momento - a última emerge da primeira e pouco importa o custo de algumas (muitas) cabeças que terão de rolar, se forem beneficiadas as cabeças restantes. Daí a espontaneidade com que membros do governo estadunidense traçam planos para o Iraque pós-Saddam, fazendo pormenorizadas menções às liberdades civis e políticas, bem como a promessas de prosperidade (e Paz, lógico) que serão conferidas ao povo iraquiano...sem que saibamos quanto do povo iraquiano restará para usufruir de tais benesses, quando (cada vez é mais difícil dizer "se") Saddam não mais governar o país.
Feitas as reflexões e paralelismos dos parágrafos anteriores, temos condições de julgar com algum grau de certeza se há ou não um Império global em consolidação. Outras analogias seriam possíveis - a influência dos "falcões" em Washington sobre um presidente como George W.Bush, conhecido por sua canhestra habilidade política, parece enunciar tanto o belicismo do Império nascedouro como uma potencial sombra sobre os destinos futuros da política dos Estados Unidos, haja visto o poder alcançado pelos generais e pretorianos nos períodos de declínio do Império (declínio acentuado inclusive pelo aumento de "poder" dos citados militares). O famoso "escudo anti-mísseis" que parece, perdeu parte de seu impacto com (sem trocadilhos) o impacto dos aviões terroristas no World Trade Center lembra a iniciativa dos imperadores Trajano e Adriano no século II, ao construirem uma muralha protetora que separava o Império dos "bárbaros" mais perigosos (bretões, hunos etc). Falando em World Trade Center - a queda de Roma não deu lentamente nos campos de batalha apenas, mas em especial no coração do próprio Império. Os "bárbaros" foram progressivamente incorporados, tornando-se aliados imprescindíveis para a defesa das fronteiras do Império (contra outros "bárbaros" ainda mais "perigosos") ao mesmo passo que a corrupção devassava as instituições imperiais e Roma tornava-se mais e mais dependente de suas alianças e dos desígnios dos militares "bárbaros" (estaria completa vingança dos gauleses de Vercingetórix?). Num certo momento os "bárbaros" perceberam que poderiam submeter seus aliados imperiais da mesma forma como estes os haviam submetido em passado não remoto - e tivemos as famosas invasões, como a dos Vândalos de Genserico em 410 D.C., culminando com a tomada da cidade pelos Ostrogodos de Odoacro em 476 D.C. Findava a Roma Imperial e iniciava-se a famosa (injustamente nomeada) "Era das Trevas". Por detrás da "conflito civilizacional" de Samuel Huntington não se esconderia uma reedição das invasões de séculos atrás? Seria Osama Bin Laden um "neo-vândalo"? O futuro nos dirá se o dito "o mundo terá de escolher de qual lado está: do nosso lado ou do lado dos terroristas" de George W.Bush em 2001 D.C. merecerá a mesma atenção dos futuros analistas e historiadores que a famosa ALEA JACTA EST de César em 46 D.C...ou se dela nos esqueceremos, como da "nova ordem mundial" de George Bush pai.