Numa ação paralela demonstradora de admirável fôlego diplomático, o governo estadunidense, completa a operação “Deposição de Saddam Hussein” e iniciados os planos para reconstrução do Iraque (apesar de Sérgio Vieira de Mello ter sido apenas a última vítima das bombas de um Iraque no olho do furação), volta sua artilharia verbal para a Síria e o Irã e, em conjunto com europeus, russos e a ONU, lança um plano para a paz entre israelenses e palestinos. Equivale a dizer: o mapa político do Oriente Médio está sendo redesenhado. Complicada tarefa de “engenharia política”, a ser levada a cabo, aparentemente, em diversas “frentes”, cada qual com sua especificidade e com diferentes “cronogramas de execução”.
Que não nos iludamos, no entanto - os três processos encontram-se intimamente relacionados, informados simultaneamente pelo mesmo “fio condutor”. Isso, porém, não se deve, como poder-se-ia pensar, ao fato de que cada qual constitui parcela específica da estratégia estadunidense de criação de um “Oriente Médio pacifico”, condizente com seus interesses e seguro para Israel, no médio e longo prazos. No campo analítico, torna-se perceptível algo que se projeta para além das lentes tortuosas dos falcões de Bush: uma determinada visão de mundo a informar um curso de ação na política internacional.
O eminente historiador brasileiro Sérgio Buarque de Hollanda demonstrou a acuidade dessa tese na sua obra monumental “VISÃO DO PARAÍSO: OS MOTIVOS EDÊNICOS NO DESCOBRIMENTO E COLONIZAÇÃO DO BRASIL”, aplicada de forma restrita ao âmbito das relações entre Portugal colonizador e Brasil colônia. Muito antes que Cabral aportasse por essas plagas, já estavam munidos os portugueses de representações simbólicas das terras d’além mar e seus habitantes - marcos simbólicos (ditos “edênicos”) que foram afetados, mas não certamente dissipados, a partir do contato “face-a-face” da empresa colonial, da qual somos o resultado. O Brasil emergiu, dessa interação, como “espelho deformado” de Portugal, vetor a reproduzir (na medida do possível) os passos traçados no “mapa imaginário” português. Dificilmente poder-se-ia fazer uma apologia de tal processo, sob o ponto de vista dos brasileiros.
Apliquemos a tese nos dias que correm. A mesma imagem (embebida em múltiplos significados) perpassa análises as mais diversas, dos gabinetes em Washington aos escritórios da ONU, incluindo boa parte da mídia ocidental: o Iraque como uma colcha de retalhos onde comunidades - xiitas, sunitas, curdos, “árabes dos pântanos” etc. - foram oprimidas pela mão de ferro da ditadura baathista de Saddam (ditadura baathista é um termo oportuno para Washington, num momento em que sua artilharia volta-se para a Síria). Conquanto a imagem seja acurada como “instantâneo” dos tempos que correm, o realmente relevante será a forma com que ela informará o curso de ação futuro (ou seja, os significados “embutidos” na imagem).
Contrariamente aos ditames do bom senso – que indicam a complexidade envolvida na tarefa de “reconstrução do Iraque” – derivam da imagem da “colcha de retalhos oprimida” dois diagnósticos surpreendentemente simplistas, não obstante abraçados pela quase unanimidade dos analistas. Mais - eles são tidos como válidos igualmente para iraquianos, sírios e palestinos, para infelicidade de todos.
O primeiro diagnóstico: os povos do Oriente Médio seriam governados por tiranias dada sua “ingenuidade política”, na ausência de uma “cultura política democrática” (ao contrario, logicamente, de Israel) - ou seja, uma vez devidamente educados e convencidos os povos do Oriente Médio acerca das benesses da democracia, não mais haveria tiranos na região. O segundo diagnóstico assume feições mais radicais - a democracia não deitará jamais raízes no Oriente Médio, por razões culturais. Tiranias como a de Saddam, assim, seriam um “mal menor” - uma forma espontânea de geração de ordem (conquanto bárbara em sua forma) num contexto de caos permanente e de luta incessante entre grupos e comunidades, à semelhança das teses hobbesianas acerca da natureza humana. Nesse caso, haveria necessidade de “imposição da Paz” na região, cabendo esta “responsabilidade” à comunidade internacional (ou, na falta de alternativa melhor, `a potência que se dispusesse a fazer esse “serviço sujo” de Leviatã de outrem).
Cada diagnóstico, à sua maneira, pode (e é) usado como justificativa para cursos de ação intervencionistas no Oriente Médio, sem sombra de dúvida. Como já nos alertara em 1939 o sagaz historiador Edward Carr (em sua obra “20 ANOS DE CRISE 1919-1939”), versando sobre as sutilezas da política internacional: via de regra, ações que atendem a interesses particulares convenientemente são justificadas em nome de um princípio moral universal, aplicado em benefício de todos e do todo. Mas a constatação mais importante não é esta, senão outra: o substrato comum de ambos os diagnósticos, que não é outro senão o simbolismo que impregna a imagem da “colcha de retalhos oprimida”.
Salta aos olhos a acentuada desconfiança, senão desdém, conferida à capacidade dos próprios iraquianos se governarem politicamente (em contraposição aos ocidentais, que seriam o tipo-ideal polarmente oposto) contida nos diagnósticos. Assim, os iraquianos (e árabes como um todo) são tidos como, por um lado, dotados de relativa incapacidade, marionetes nas mãos dos tiranos na ausência de um “tutor” mais qualificado e, por outro, como “tiranos em potencial”, incapazes de conviver uns com os outros. Daí o remédio inexorável dos proponentes de tais diagnósticos: não há porque facultar aos iraquianos participação na construção das estruturas políticas as quais, mais que submissão, os iraquianos deverão endereçar sua lealdade, conferindo a estas legitimidade no futuro.
Em outras palavras, o Iraque não seria apenas “terra devastada” em termos materiais, mas em termos institucionais, de “cultura política”. O Iraque seria, assim, uma “tábua rasa” à espera de que algum benfeitor (quiçá os Estados Unidos, com os auspícios da ONU) nela inculquem a democracia. Não há papel, assim, para os iraquianos nesse processo. A negativa ocidental traduz-se nas rajadas de bala endereçadas por tanques estadunidenses aos protestos (por sinal, inspirados na democracia ocidental) de iraquianos na Bagdá pós-Saddam. Tomado esse ponto de vista, o Iraque constituiu oportunidade ainda mais promissora do que o Afeganistão para o chamado “state-building” - na medida em que dispensa os inconvenientes de se lidar com um antigo Rei deposto, exilado em alguma Cote D’Azur. Constitui-se um arremedo de “Loya Jirga”, englobando de maneira indiferente líderes tribais, “senhores da guerra” e antigos exilados moderados, “democráticos” (xiitas, aliados do Irã, foram alijados do processo), decorre um necessário mas breve “aprendizado democrático” com os generais estadunidenses encarregados da “reconstrução” (à imagem e semelhança dos vice-reis portugueses de outrora) – e estariam satisfeitos os requisitos mais fundamentais para garantir um auspicioso futuro democrático para o povo iraquiano!
A mudança dos fatores não altera o resultado, nesse rumo de ação, uma vez que iraquianos, sírios e palestinos (árabes, em suma) são tidos, numa perspectiva huntingtoniana, como todos iguais, uns mais iguais que os outros. O “mapa da paz” para a Palestina também eiva-se no espirito da “cruzada democratizante”, destinada a fazer com que os palestinos “podem” a herança de lutas contra a ocupação (isolando Arafat) e adotem o caminho que, imaginam, Israel adotou na sua constituição (convenientemente, o papel fundamental de grupos que hoje seriam tidos como terroristas, como o Irgun do futuro premier Begin, na obtenção da independência israelense frente à ocupação britânica é convenientemente esquecido nesse momento). Da mesma forma, os Estados Unidos imaginam ser capazes de traçar os limites da adequação de iniciativas políticas na região. A Síria é colocada na alça de mira por Washington sob a acusação de “desinteresse” em relação ao controle de armas de destruição em massa na região. Ao mesmo tempo, Washington revela sua oposição ao projeto árabe (apresentado, por sinal, pela Síria no Conselho de Segurança da ONU) que propõe a criação de uma “zona livre de armas de destruição em massa” no Oriente Médio, talvez porque este projeto inclua Israel em seu escopo de abrangência.
Não resta dúvida, para o analista que traça essas linhas, que a visão da “tábua rasa” é errônea em sua avaliação e, à semelhança da análise de Sérgio Buarque de Hollanda, tem potencial especialmente funesto para os objetos da ação, os povos do Oriente Médio. Tal visão de mundo (motivadora de teses tais como a da “exportação da democracia” atualmente em voga) ignora de forma categórica a realidade política da região alvo da ação, paralelo que reputo valioso com a experiência da colonização portuguesa no Brasil. O Éden democrático que se quer construir num Iraque supostamente fragmentado ignora um passado histórico de continuidade do território iraquiano e de convivência pacifica das diferentes comunidades sob o governo (então legitimo) dos califas abássidas e, posteriormente (ainda que sem a presença da legitimidade) sob o domínio dos invasores otomanos, por séculos a fio. A tese da “incapacidade cultural” das diferentes comunidades conviverem entre si não tem qualquer lastro histórico, bem como não há qualquer razão para crer que fenômenos políticos como Saddam Hussein, inspirados na matriz política ocidental e eivados ao poder com apoio do Ocidente, sejam artefatos “espontâneos” do cenário político do Oriente Médio. Não nos surpreendamos, pois, com uma eventual (e bastante provável) derrocada da empreitada de "reconstrução" do Iraque.
Afirmo, à guisa de conclusão que, antes que seja possível “reconstruir” o Iraque, seremos forcados pelos fatos a reconstruir, essa sim, a visão de mundo que informa as ações de reconstrução. O “etnocentrismo” analítico, explicito ou não, será forcado a retroceder. Os iraquianos serão, portanto, “expulsos do Éden” mas, longe de prejuízo, tal ação significará que estes foram trazidos para o centro da tarefa de reconstrução, e é neles que residem as esperanças de um futuro auspicioso - não na “exportação da democracia” dos falcões e afins. A imagem do “espelho deformado” reprodutor, contraponho o jogo de luzes do “caleidoscópio do real”, da dinâmica das particularidades - e das lentes acuradas da critica.