Raro é o dia em que não nos deparamos, nos veículos informativos mais diversos, com análises de conjuntura política ou econômica da América Latina ou de seus países, invariavelmente finalizadas com afirmações da mesma (e pouco variada) família: “a América Latina tem que se adaptar ao contexto da Globalização”, “temos que reforçar nossa competitividade num mundo globalizado”, “já é hora dos latino-americanos abrirem os olhos antes que percam o bonde da História”. Ouvimos esse refrão por mais de uma década sem que tenhamos visto a cor do sucesso. Dessa forma, poder-se-ia pensar que: 1) não compreendemos, nós, latino-americanos, o que seja a Globalização; 2) desconhecendo o que seja a Globalização, desenvolvemos um receio infundado acerca da mesma, impedindo que alcancemo-la. Tentarei, dessa forma, discorrer um pouco acerca do que seja a Globalização e, depois, submeterei a teste às hipóteses mencionadas acima.
A Globalização, conceito surgido na Teoria da Interdependência Complexa, corresponde, nas palavras de Robert Keohane e Joseph Nye, à “intensificação do Globalismo – este último entendido como estado do Mundo caracterizado por redes de interdependência em distâncias multicontinentais”. Entenda-se por redes de interdependência um conjunto de fluxos (econômicos, militares, sociais-culturais, ambientais) entre múltiplos agentes do sistema internacional – Estados nacionais e agentes não-soberanos, tais como as Organizações Não-Governamentais (ONGs). Interdependência entre agentes existe quando as ações de um agente influenciam o resultado das ações de outros agentes (sejam elas quais forem). A Globalização representa o Globalismo intensificado de duas formas: redimensionamento das redes de interdependência em nível multicontinental (entrada de novos agentes) quanto por um aumento na interação entre redes de interdependência distintas (maior número de pontos de interseção). Ela coloca em contato redes de interdependências as mais diversas, que interagem e se sobrepõe. Os efeitos dos relacionamentos reverberam por toda uma gama de redes de interdependência, com seus respectivos e diversos agentes, tornando a “arquitetura” do Globalismo crescentemente mais complexa – pequenos eventos em um local podem ter efeitos catalisadores, assim suas conseqüências posteriores e em todo o sistema são vastas. A conseqüência mais imediata da Globalização é, desta forma, a imprevisibilidade – especialmente num período no qual ela se mostra tão vigorosa quanto nos dias que correm. Assim, considerável complexidade e incerteza colocam-se diante dos tomadores de decisão no sistema internacional.
No fim das contas, a Globalização surgida desse conceito não difere tanto assim do “senso comum” acerca do que seja a Globalização. Mas, se sabíamos o que ela era, por quê não fomos bem sucedidos na sua busca? Dois fatos respondem tal questionamento:
· A Globalização não é um processo homogeneizador. A Internet, por exemplo, estende-se dos Estados Unidos à Tanzânia – contudo 60% dos norte-americanos têm acesso à rede, contra menos de 1% da população nos países da África Negra. Ela se “amolda” aos contextos locais, adaptando-se ao pano de fundo social prévio.
· Relacionamentos de Interdependência podem ser mutuamente benéficos (ditos Interdependência Simétrica) ou com benéficos para um agente e nem tanto para outro (Interdependência Assimétrica – geralmente estabelecida entre agentes com disparidade flagrante de recursos – econômicos, militares, políticos etc.). Havendo Interdependência Assimétrica, um dos agentes estará prejudicado nos resultados de sua ação (ele será dito SENSÍVEL) ou mesmo na sua capacidade de ação futura (ele será dito, então, VULNERÁVEL). Nem sempre é bom cooperar, portanto. Em caso de estabelecimento de uma interação desvantajosa, o balanço da interação pode ser modificado, caso o agente desfavorecido, sozinho ou em conjunto com outros em situação similar, tome a iniciativa de renegociar os termos do acordo. Necessário dizer que algum “trunfo negocial” deverá ser utilizado, mesmo não tendo ele relação direta com a questão central da interação, seja quanto a questões correlatas (afinal, estamos falando de redes de interdependência se entrecruzando de forma complexa!).
No caso específico da América Latina, podemos avaliar os descaminhos do continente nos últimos 10 anos ou mais à luz da exposição feita nos parágrafos predecessores. Certamente que nossos tomadores de decisão não ignoravam, ao menos em linhas gerais, o sentido da Globalização. Muito pelo contrário. Políticas foram promovidas visando permitir a integração de nossos países em “redes de interdependência” as mais variadas. A abertura de nossas economias, adequando-as aos padrões de mercado vigentes no “mundo desenvolvido”, bem como a “financeirização” de nossa estrutura produtiva e do nosso padrão de investimento não foi feita apenas para atender ao bel-prazer de uma suposta “camarilha neoliberal” instalada sub-repticiamente em nosso continente para entregá-lo ao FMI (mantra das esquerdas). Divergindo do que parece (erroneamente) óbvio, nossos tomadores de decisões estavam imbuídos não puramente do ideário neoliberal, mas da “panacéia da Globalização”, a crença no caráter irrevogavelmente benéfico desse processo que se fortaleceu, inexorável, ao fim do confrontamento Leste-Oeste. Países que tiveram governos de todos os matizes ideológicos, da Argentina de Menem e De La Rúa à Venezuela de Carlos Andrés Pérez e Hugo Chávez – o canto da Globalização foi entoado praticamente em uníssono. Esquecemos, porém, de que seria bom demais para ser verdade. E de que poderia ser bom demais, de fato, mas não para todos, nem ao mesmo tempo. Uma análise mais aprofundada (cuidadosa) do fenômeno globalizante revelaria:
· Nem sempre é bom cooperar;
· Nem sempre uma cooperação boa é boa o suficiente, na medida que a “outra parte” pode aumentar desproporcionalmente sua influencia sobre você (arapuca em que Brasil e Argentina voluntariamente entraram passando a depender fortemente do investimento externo, tornando-se tanto mais sensíveis quanto, possivelmente, mais vulneráveis – felizmente ainda não quebramos);
· Sempre é necessário negociar, sempre que possível, acerca do que for possível (os desdobramentos em uma rede de interdependência afetam outras redes e podem ser transformados em “trunfos negociais” para reversão de interações desfavoráveis – infelizmente a América Latina preferiu adiar a negociar nesses últimos 10 anos ou mais).
Noves foram, tivemos uma década de vitória do capitalismo sobre o socialismo real no plano internacional na qual, ironicamente, as nações capitalistas da América Latina tornaram-se tão mais sensíveis e (algumas) vulneráveis quanto se tornou sensível e vulnerável a Cuba socialista desprovida do auxílio da falida União Soviética, o que pareceria um atentado ao bom senso se dito em 1991 (especialmente se dito aos argentinos de então). O crescimento econômico acelerado de alguns dos países da região (México desde 1996 e Brasil entre 94 e 98) fez-se às custas de também crescente sensibilidade e vulnerabilidade. Crescemos nossos castelos de areia. No caso da Argentina, estes já ruíram de vez. Ainda há tempo de reverter o jogo, dependendo isso de que entremos nele para valer (vale dizer – reunião dos Chefes de Estado acerca da ALCA, dia 16 de Janeiro do ano que se aproxima, uma boa oportunidade para colocarmos isso em prática, fora as negociações do MERCOSUL com a União Européia). O Brasil já demonstrou seu potencial para negociações desse tipo com a vitória no caso das patentes de medicamentos anti-AIDS na OMC.
Nada acontecendo, temamos o pior. O que seria o pior? A sensação de que, sabedores do que seja a Globalização e preferindo postergar a negociar, continuemos com medo – exatamente por isso!