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Artigos-->ECOS DO PASSADO NO PRESENTE - A apropriação da História -- 29/08/2003 - 00:27 (Carlos Frederico Pereira da Silva Gama) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
“A História é

um incessante recomeçar” (Tucídides)



Enquanto os olhos do mundo se voltam para o ataque ao escritório da ONU em Bagdá, vitimando Sérgio Vieira de Mello, este analista que vos fala preferiu buscar na História um vetor explicativo para esse rumo de ação consolidado nos gabinetes em Washington.



Tomo, de antemão, o cuidado de não imaginar a História como algo cíclico ou teleológico, mas como espaço de possibilidades onde cada experiência (ou fenômeno) pode ser reapropriada, emulada , embora certamente não reproduzida. História como algo não-linear e certamente não-determinístico, conquanto seja possível delinear tendências e ciclos de curto e longo prazo. Alguma experiência histórica, portanto, serviria como referência para o atual curso de ação estadunidense?



Muitas delas, decerto. Uma, entretanto, saltou-me aos olhos como especialmente reveladora e dotada de intrigante capacidade explicativa - a experiência do Estado de Israel no plano internacional. Quanto a este país, torna-se notável o quão resilientes têm sido em sua Política Externa - tanto no plano do discurso quando no da práxis - os seguintes elementos:



1) Correlação direta entre a segurança interna doméstica (ou, em termos Bushianos, da "homeland") e ações intrusivas em terceiros países;

2) Como corolário do elemento anterior, a promoção ativa do chamado "ataque preventivo";

3) A figura do Terrorismo tomada como um inimigo prioritário do Estado, suficiente, portanto para ensejar ações de "grande porte" no plano externo;



Israel, desde sua fundação em 1948, nos oferece extenso rol de ações nas quais se fazem presentes os elementos arrolados. A Guerra dos Seis Dias (1967) tem início como um ataque preventivo israelense - marcado por episódios tais como a destruição de toda a frota aérea egípcia ainda em solo. Israel invade o Líbano em 1982 alegadamente para evitar que este país fosse usado como plataforma de ataque por grupos de libertação palestinos (qualificados por Israel na época como grupos terroristas). A invasão do Líbano, igualmente, coaduna-se com outras tantas ações israelenses (declaradas como) garantidoras da segurança interna em face de vizinhos árabes hostis, via "controle das fronteiras" - podemos nomear entre essas a ocupação do Sinai egípcio entre 1967 e 1982, do sul do Líbano entre 1982 e 2001 e a ocupação ainda presente das Colinas de Golã sírias e de porções da Faixa de Gaza e Cisjordânia. Exemplo notável de ataque preventivo ocorreu 1981, quando a força aérea israelense destrói a usina nuclear de Tabriz no Iraque - supostamente para impedir um ataque nuclear oriundo do ex-domínio de Saddam Hussein.



A adesão dos Estados Unidos à lógica de ação caracterizada acima é relevante, para a análise das Relações Internacionais, no que revela de similaridade e de discrepâncias entre a experiência original e a apropriação desta pelos falcões de Washington. Tal comparação permite-nos matizar os efeitos da apropriação, de forma contextualizada – permitindo-nos delinear tendências no curto e médio prazos. A guisa de comparação crescem em estatura analítica dois elementos: o chamado “lobby judaico” e a justificativa “moral” para os cursos de ação de Israel e Estados Unidos.



Quanto ao tão propalado “lobby judaico” instalado em Washington, afirma-se que este seria o responsável pela similaridade das experiências israelense e estadunidense – os Estados Unidos, em ultima instância, agiriam dessa forma como “instrumento” para garantir a segurança israelense. Argumento fortalecido pela conjuntura política de ambos os países – as “elites governantes” promovem cada vez mais a infiltração de lógicas oriundas do extremismo religioso nas ações de política externa. Critico severamente este argumento, com base na constatação de que, muito antes que a atual lógica de ação se consolidasse nos corredores em Washington, a busca por assegurar um “ambiente estável” para Israel no Oriente Médio já era um norte da política externa estadunidense (aliás, nunca deixou de sê-lo). A discrepância temporal entre os processos citados, bem como a “compatibilidade” dos atuais governos israelense e estadunidense, melhor caracteriza a convergência de lógicas de ação como a “afinidade eletiva” de Max Weber, não sendo algo inevitável, necessário ou irreversível. Não precisamos mesmo buscar em priscas eras exemplos reveladores a esse respeito – basta constatar o quanto diferiu o trato conferido a Israel pelos governos Bush pai e Clinton.



Quanto a justificativas “morais” para a adoção do mencionado curso de ação, por vezes encontramos comentaristas fazendo referência direta ao Holocausto e à Guerra de Independência (1948-49), no caso israelense – o equivalente norte-americano, nesse caso, seria o 11 de Setembro. Eventos “traumáticos” que, apropriados pelas “elites governantes”, marcariam o curso futuro das nações atingidas, seguindo o dizer de Gellner: “O Nacionalismo engendra as nações”.



Crê esse analista que haja sentido nessa colocação – desde que devidamente matizada e contextualizada. O Holocausto, afinal, não incidiu diretamente sobre um estado, mas sobre um povo e – no imediato pós-tragédia – havia uma miríade de projetos de “construção nacional” divergentes no seio do povo vitimado, formando um espectro que abrangia desde Begin até Ben Gurion, passando por Meir, Peres e Sharon. O fenômeno do Estado de Israel foi, portanto, uma dentre diversas possibilidades, derivando de um confronto de projetos, interesses e – por que não – visões de mundo, no seio da sociedade judaica. E, futuramente, o mesmo Estado passaria a lidar com a questão dos extensos contingentes árabes em seu seio. Não há, portanto, uma única “estrada em linha reta” levando do Holocausto à lógica de ação consolidada em Tel-Aviv.



Haveria analogia entre os aviões de 11 de Setembro, para os Estados Unidos, e o Holocausto para Israel? Há um substrato comum – a apropriação política, por parte de “elites governantes”, de um evento trágico, informando as ações futuras do estado em questão. Como em Israel, não há “caminhos únicos” para que tal apropriação ocorra – interesses e visões de mundo divergentes encontram-se em embate. Se somos tentados a pensar que haja consenso na sociedade norte-americana acerca da “guerra contra o Terror”, não trata-se de ausência de debate – mas de uma manifestação hegemônica de um dos lados envolvidos, que se estende dos gabinetes em Washington aos meios de comunicação de massa, sufocando as vozes divergentes e distorcendo a correlação de forças – num movimento (mais afeito a ditaduras semi-totalitárias como a do Iraque) curioso para uma nação que se ergueu sobre a pedra angular da Democracia e da Liberdade. É importante ressaltar, ainda, que o impacto da apropriação política de um evento trágico apresenta-se muitas vezes maior no caso israelense, dado que o “trauma” pode ser associado à própria fundação do estado e á própria sobrevivência de um povo, elementos ausentes por completo do caso estadunidense.



A guisa de conclusão, afirmo que as conseqüências da adoção da lógica de ação caracterizada ao longo desse artigo, por parte dos Estados Unidos, permitem vislumbrar tendências de turbulência, doméstica e internacional, no curto e médio prazos, em cotejo com o contexto internacional hodierno e a posição do país no sistema internacional. Houve forte reação no seio da sociedade israelense com o “acúmulo de ações preventivas”, não surpreendentemente, dado que esta somente teve o efeito de multiplicar a insegurança interna e redundou em legitimidade internacional para os estados e grupos alvo das ações preventivas. O cenário externo tornou-se crescentemente hostil a Israel, redundando em paulatina redução do poder negocial deste último e em custo crescente para o emprego da força militar. O mesmo pode ser dito quanto aos Estados Unidos, mesmo que estes possuam recursos de poder suficientes para atenuar os efeitos negativos. A resultante mais imediata da “cruzada petrolífera” de George W. Bush pode ser o reforço do Terrorismo global, malgrado os sucessos parciais no Afeganistão e Iraque. Governos árabes crescentemente receosos quanto às ameaças estadunidenses (jocosamente expressas em linguagem pouco condizente com a tradição diplomática mais elementar) podem se unir paulatinamente, reatando laços de ação externa comuns não verificados por pelo menos 3 décadas. O feitiço da “guerra cirúrgica” e das vitórias incontestáveis sobre adversários claudicantes como o Talibã e Saddam Hussein pode se voltar (já estaria?) contra seus conjuradores.

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