David Singer, em seu clássico artigo “The Level-Of-Analysis Problem in International Relations” (1961) busca apresentar as principais implicações, no campo das Relações Internacionais, da adoção de diferentes níveis de análise por parte dos estudiosos. Ao longo do artigo, serão comparados dois diferentes níveis (frisa o autor, não são os únicos e sim, os mais relevantes): o nível do sistema internacional e o nível dos sub-sistemas nacionais (ou nível nacional).
O autor postula a existência, nas áreas do conhecimento humano, de diversas formas nas quais os fenômenos estudados podem ser arranjados para os propósitos da análise sistemática – podendo o estudioso, portanto, “focar sua atenção nos componentes de um sistema, ou em todo o sistema” (SINGER:1969, p.20). A seleção do nível de análise a ser abordado – “micro” ou “macro” – torna-se uma questão de conveniência metodológica ou conceitual que certamente marcará o trabalho de todo autor que se engaje de forma consistente na busca pelo conhecimento.
Há que se frisar, no entanto, que tal seleção é difícil, podendo mesmo decidir boa parte do futuro de uma disciplina, se não nos atentarmos para as particularidades de cada nível de análise. “A escolha jamais pode ser fruto de um capricho, hábito, familiaridade ou inclinação do pesquisador” (op.cit., p.21). O que deve nortear a escolha do pesquisador sério é a utilidade metodológica e conceitual de cada nível de análise.
Embora freqüente em outras disciplinas, Singer afirma ser o tema do nível de análise um raramente levantado nas Relações Internacionais, o que não indica nem que o tema já foi resolvido tampouco que este não seja relevante. Mais provável é que os estudiosos tenham-no ignorado (seja pela herança intuitiva e artística das “Humanidades”, seja pela tradição da análise política “prática”). O autor aponta o notável descuido com que os estudiosos “escalam” os níveis de análise sem atentar para suas particularidades, nem para “...as vantagens de manutenção de um foco estável” (op.cit., p.21). A despeito desse problema se dever à relativa novidade da disciplina ou à tradição intelectual da qual deriva (possibilidades que Singer aponta), o problema deve ser sanado. Nesse momento, ele reafirma os propósitos do artigo em questão: expor duas alternativas de níveis de análise, suas implicações teóricas e conseqüências para os estudiosos.
Antes de expor as alternativas de análise, o autor considera necessário discutir o que se espera de qualquer modelo analítico – seja ele voltado para o nível “micro” ou “macro”. Singer arrola, portanto, três exigências que todo modelo deve atender.
A primeira característica demandada é capacidade de descrever o fenômeno sob estudo. O modelo deve apresentar a imagem mais completa e menos distorcida possível do fenômeno sob exame, bem como essa imagem deve se correlacionar no mais alto grau possível com a realidade objetiva, coincidindo com nossos referenciais empíricos. Essa tarefa é deveras complexa e não pode ser resolvida de forma absoluta pelo pesquisador. Distorções sempre as haverá – o que é possível e necessário fazer é levar em conta o aspecto funcional da pesquisa (qual distorção é tolerável, qual é inevitável).
Em seguida, um modelo analítico deve ser capaz de explicar os relacionamentos no interior do fenômeno sob investigação. Nesse sentido, é mais importante saber se a explicação do modelo é válida do que saber se ele descreve com acuidade a realidade sob investigação. Trata-se de avaliar se há tratamento válido, completo e parcimonioso dos relacionamentos causais. Isso porque, para Singer, o principal propósito da teoria é explicar. “...havendo contradição entre os propósitos descritivo e explicativo, o último deverá sempre ter prioridade...” (op.cit., p.22).
Finalmente, um modelo analítico deve ser capaz de ensejar previsões confiáveis. O autor entende que não há por que se entender que esse requerimento seja o mais difícil dos três. Ao contrário do que dita o senso comum, a previsão demanda menos de um modelo analítico do que a descrição e a explicação.
Nesse momento, Singer inicia sua análise dos níveis de análise nas Relações Internacionais. O primeiro nível contemplado no artigo é o nível sistêmico.
O “Sistema Internacional como Nível de Análise” ou nível sistêmico, afirma o autor, é um “ponto de foco parcialmente familiar e grandemente promissor para os estudiosos das Relações Internacionais” (op.cit., p.22). Este seria nível de análise mais compreensivo, compreendendo todas as interações que têm lugar no sistema e em seu ambiente. Seu estudo nos permite traçar os padrões de interação que o sistema revela, e fazer generalizações para toda uma gama de fenômenos (desde formações de alianças até mudanças no sistema derivadas de mudanças nas instituições políticas). O nível sistêmico nos permite analisar as Relações Internacionais “como um todo”, com um grau de compreensividade que se perde quando o foco é transposto para os sub-sistemas nacionais.
Remontando às exigências que todo modelo analítico deve atender, mencionada em parágrafos anteriores, o nível sistêmico oferece vantagens (compreensibilidade) e desvantagens (perda do detalhamento) do ponto de vista descritivo. Quanto à capacidade explicativa, esse nível de análise possui consideráveis dificuldades. O impacto do sistema sobre os atores nacionais por vezes é exagerado, bem como o impacto dos atores nacionais sobre o sistema é subestimado. Não que isso seja inevitável: o sistema pode aparecer como mera resultante das interações dos estados, mais do que um ente com dinâmica própria. Há nesse nível de análise, no entanto, uma “tendência natural determinista”, retirando independência de escolha e autonomia de ação às unidades nacionais em prol dos constrangimentos do sistema. Adotar o nível sistêmico, ainda, quase que certamente implica assumir que haja alto grau de uniformidade das políticas externas dos estados – originando análises onde há grande similaridade de comportamento entre os estados. Singer cita, nesse ponto, Morgenthau: “todos os estadistas agem e pensam em termos de interesses definidos como poder” . Produz-se, assim, uma imagem simplista do estado como “bola de bilhar”.
Para Singer, tal grau de generalização/simplificação torna-se uma base inadequada para gerar afirmações causais, ainda que possa motivar a busca por correlações relativas ao (aparente) impacto de forças sistêmicas sobre os sub-sistemas nacionais. Aparente, porque podemos estar lidando com uma coincidência ou um artefato da pesquisa. Dessa forma, a menos que examinemos a ligação causal, não obstante a acuidade da lógica dedutiva, estaremos lidando com correlações, não conseqüências. A adoção do nível de análise sistêmico, ainda, evita a complexidade da observação dos sub-sistemas nacionais, surgindo daí um modelo facilmente operacionalizável que requer muito menos sofisticação metodológica ou exaustivo empirismo do que os necessários para ir além do comportamento externo dos atores. Finalmente, esse nível de análise é uma base razoável para previsões, mesmo se estas forem além das características do sistema e buscarem antecipar o comportamento dos próprios atores (supondo-os semelhantes a “bolas de bilhar”).
Em seguida, Singer muda seu foco para o nível de análise nacional, sempre tendo em vista seu propósito de explicitar limites e particularidades de cada modelo analítico.
O “Estado Nacional como Nível de Análise” (ou nível nacional, sub-sistêmico) já era, desde antes da publicação desse artigo, o foco de análise predominante nos estudos em Relações Internacionais no Ocidente. Popular na época, como na atualidade, era a tese do Estado como ator central nas Relações Internacionais, não sendo, portanto surpreendente a preferência de muitos estudiosos por este nível de análise.
A vantagem mais óbvia da adoção desse nível de análise é permitir significativa diversificação dos agentes no sistema internacional – encorajando o pesquisador a estuda-los em detalhe. Singer afirma que é somente quando os atores são estudados em detalhe que se pode fazer generalizações válidas de natureza comparativa. Esse nível de análise evita as comparações “simplistas” baseadas em dimensões e características “brutas” do nível de análise do sistema internacional. Por outro lado, não há garantia que esse nível de análise produzirá um modelo sofisticado para o estudo comparativo da política externa (autor faz exceção ao trabalho de Haas e Whiting) . Tal constatação, para o autor, está mais relacionada com a pouca familiaridade dos estudiosos em Relações Internacionais com as “técnicas da Ciência Social avançada” do que com um problema específico desse nível de análise.
Ao mesmo tempo em que o nível nacional nos permite escapar da homogeneização exagerada do foco sistêmico, ele pode nos levar ao extremo oposto – o exagero na diferenciação entre os estados. Tal exagero pode inviabilizar a análise, dado que só podemos estabelecer comparações e contrastes se houver uniformidades observadas. Outro perigo considerável é o do “paroquialismo ptolomaico” – ou seja, o perigo que correm os estudiosos de observarem o mundo de um ponto de vista etnocêntrico, reservando as virtudes para seu estado de origem e os vícios para os demais. Outro ponto relevante: apenas no nível de análise dos sub-sistemas nacionais é possível a utilização das teorias de tomada de decisão (o que, dependendo do pesquisador, pode consistir em uma vantagem ou em um demérito para esse nível de análise).
O nível nacional traz também à tona as questões dos objetivos, motivações e propósitos das políticas externas nacionais (questões tradicionais na análise política nos estados ocidentais). Estas questões suscitam uma série de controvérsias. É necessário decidir se os formuladores de política externa têm objetivos concretos em mente quando a formulam (assim pode-se dizer que os estados sejam, indiretamente, levados a buscar objetivos) ou se a tese é fruto de uma tentativa de imputar à razão humana características que separem o mundo dos demais reinos da Natureza (!) – fazendo uma analogia antropomórfica entre os homens e as organizações que estes criam. Caberia, nesse segundo caso, determinar se os homens escolhem seus objetivos ou são propelidos a busca-los por forças além do seu controle (“meio”, História). O autor adota uma posição intermediária – postulando que os estados são impulsionados para resultados sobre os quais não têm controle e dos quais têm pouco conhecimento e que, não obstante, buscam resultados particulares através de estratégias conscientemente formuladas.
Outra questão é saber como e por quê certos estados buscam determinados resultados. Tal questão pode ser ignorada no nível de análise sistêmico, ou mesmo ser “resolvida” supondo-se que todos os estados são iguais para fins de pesquisa (no nível nacional, respostas insuficientes). O nível nacional demanda que investiguemos os processos pelos quais objetivos nacionais são selecionados, os fatores internos e externos que incidem sobre esses processos, e o contexto institucional do qual emergem. Análises dedutivas ou empíricas desses processos, não obstante a popularidade desse nível de análise nas Relações Internacionais, eram escassas à época. Novamente Singer aponta tais lacunas como relacionadas à inadequação de treinamento dos futuros estudiosos das Relações Internacionais, obstáculo, portanto superável no médio prazo.
Objetivos e motivações, em qualquer abordagem, são variáveis dependentes e independentes – não há como explicar a política exterior de um estado meramente postulando-os, afirma o autor. Torna-se necessário inquirir o surgimento desses objetivos e motivações, bem como o processo pelo qual afetam o comportamento estatal.
Um dos dilemas mais fundamentais com que se defrontam os estudiosos que adotam o nível nacional é o que Singer denomina “questão fenomenológica”. Podemos resumir essa questão na seguinte pergunta: “o analista examina fatores objetivos que influenciam o comportamento do agente ou os fatores que o agente percebe como incidindo diretamente sobre sua ação?” (op.cit., p.26) Cada uma dessas duas possibilidades parte de premissas incompatíveis. A “questão fenomenológica” está diretamente relacionada com o problema da causação nas Ciências Sociais. Por um lado, há os defensores da realidade objetiva – implicando um quase-determinismo dos relacionamentos sociais (à semelhança da Mecânica newtoniana). Por outro lado, para os defensores da realidade fenomenológica, os indivíduos são influenciados não por “forças objetivas e reais”, mas pela forma como essas “forças” são percebidas e avaliadas. Singer, novamente, adota uma “via média” entre essas visões concorrentes, entendendo que ambas influenciem em algum grau a decisão dos agentes.
O autor retira de suas considerações uma primeira condição fundamental para os adeptos da fenomenologia: se assumimos uma via fenomenológica de causação, tenderemos a utilizar um modelo fenomenológico para propósitos explicativos.
A segunda condição que incide sobre os adeptos da fenomenologia: qualquer análise de política externa deve levar em conta o ambiente externo no qual está inserido o estado (pressuposição metodológica). Não há, pois, como falar em “causas” da política externa de um estado sem levar em conta o “meio” através do qual condições externas e fatores são convertidos em decisões políticas. Na ausência de uma “cadeia causal” empírica que ligue as forças em ação no sistema internacional e o comportamento dos estados, qualquer correlação ou relação causal que fizermos permanecerá hipotético-dedutiva. Ou seja – mesmo se estivermos satisfeitos sem uma abordagem fenomenológica, poderemos ser forçados a lançar mão dela se pretendemos fazer progressos em termos de explicação.
Uma posição contrária sustenta que não devemos nos apegar a determinar toda a “cadeia causal” – tal percepção seria fruto de uma visão errônea das Ciências Sociais. Singer nos pergunta: “o que garantiria, afinal, que a empiria é um caminho mais válido para o conhecimento social do que a dedução informada, a inferência ou a analogia?” (op.cit., p.27).
A terceira premissa fundamental para uma abordagem fenomenológica diz respeito às dimensões e características do “campo fenomênico” dos estadistas: seriam estas empiricamente discerníveis? Podem percepções e crenças serem observados de maneira sistemática? Podemos ir além de uma simples tipologia destes, desvendando seus relacionamentos e revelando como e de onde emergem? Se acreditamos que esses elementos são válidos e possíveis de serem apreendidos em nossas análises, há sentido em derivar para uma análise fenomenológica. Do contrário, ou se estamos convencidos da inadequação ou caráter anti-econômico da acumulação de dados, ficaremos longe da fenomenologia.
O quarto item na questão fenomenológica diz respeito à própria idéia do estado como ator das Relações Internacionais. “O que é o estado? Uma entidade em si ou um aglomerado de outros elementos?” (op.cit., p.27) Aqui Singer debate a “metáfora antropomórfica” tão comum em muitas teorias das Relações Internacionais – o estado nacional entendido como um ente capaz, à semelhança dos homens, de tomar decisões autônomas.
Em suma, Singer nos aponta que, para rejeitar a abordagem fenomenológica por completo, é necessário:
(1) Postular que as forças sociais independem da percepção do agente;
(2) Postular que a explicação não necessita de incluir todas as etapas numa cadeia causal;
(3) Postular a dubiedade de se acumular dados fenomenológicos;
(4) Postular o estado como entidade distinta de seus constituintes.
Estas e outras considerações, para o autor, indicam que o nível de análise sub-sistêmico provêm descrições mais ricas e explicações mais satisfatórias (do ponto de vista empírico) das Relações Internacionais, ainda que seu poder de previsão não seja superior ao do nível de análise sistêmico. Tais vantagens, porém, só são conseguidas ao custo de maior complexidade metodológica.
A guisa de conclusão, Singer avalia a utilidade relativa de cada nível de análise e a propensão de cada um deles para promover aperfeiçoamento teórico no estudo das Relações Internacionais.
O autor considera que, em termos de descrição, o nível de análise sistêmico permite maior compreensividade, conquanto igualmente menor detalhamento; o nível de análise nacional, por sua vez, apresenta menor compreensividade e, compensando esta, maior nível de detalhamento. Em termos de explicação, o nível de análise sistêmico nos permite no máximo atingir correlações, enquanto que o nível de análise nacional nos permite fazer afirmações causais. Em termos de possibilitar previsões, ambos os níveis de análises possuem grau similar de eficácia.
Singer finaliza seu artigo com a seguinte pergunta: “essa avaliação comparativa faz com que sejamos mais favoráveis a um dos níveis de análise em particular?” (op.cit., p.28). O autor considera que a resposta seja negativa. A escolha do método depende fundamentalmente da necessidade da pesquisa de cada estudioso. O problema não é escolher o melhor nível, mas o nível mais adequado, portanto. E, uma vez escolhido o nível de análise, a pesquisa consistente não deverá mudar seu foco analítico - conquanto a pesquisa possa exigir tal mudança a qualquer tempo (op.cit., p.28). Somente assim, finaliza o autor, poderemos avançar na teorização das Relações Internacionais.
BIBLIOGRAFIA
HAAS, Ernest B. & WHITING, Allen S. Dynamics of International Relations. New York: 1956
MORGENTHAU, Hans. Politics Among Nations. Nova York: 1960, pp.5-7
SINGER, David (1969). The Level-Of-Analysis Problem in International Relations in ROSENAU, James (1969). International Politics and Foreign Policy. Nova York: The Free Press, pp. 20-29