Tarefa não desprezível, a do Analista de Relações Internacionais. Tal qual o titã Atlas – condenado pelo rei dos deuses gregos, Zeus, a carregar nas costas o pesado fardo do Mundo – não podemos fugir ao fato de que lidamos com uma “unidade de análise” monumental e de pesada complexidade (quiséramos nós que houvesse, como na mitologia grega, um Hércules que conosco resolvesse dividir o peso do Mundo, ao menos por alguns instantes). Mais que ser por nós carregado, o Mundo nos acompanha e nos ultrapassa – fardo de mil ardis – na sua constante dinâmica. Podemos dizer que, na melhor das hipóteses, ele está em nossas mãos por alguns instantes até que, escorregadio, escapa-nos aos dedos e vai se aninhar em outras órbitas, deixando-nos a sós com a tarefa de decifrar seus enigmas. Ente arredio, o Mundo se deixa desvelar nos padrões sutis de comportamento de seus componentes e nas trajetórias de longo curso que estes desenham diante de nós, se temos paciência e instrumentos de análise adequados para percebê-las, unindo os liames que construímos paulatinamente no contato com os fenômenos do Mundo.
Reputo que, muitas vezes, a paciência seja o elemento decisivo. O horizonte de análise temporal necessário pode ser enfadonho, desmesurado, desanimador, incômodo e mesmo incompreensível para grande parte de nossa sociedade, mas é parte de nosso fardo como Analistas. E de nosso paradoxo. Raramente temos tempo suficiente para analisar com propriedade um fenômeno internacional e, não raro, somos contemporâneos a este. Deve-se a esse fato a armadilha em que incorremos com freqüência – tomar como realidade o que julgamos ser uma tendência irrefreável no instante em que a análise é construída, imbuídos que estamos do impacto primordial do fenômeno em questão. Dizia Hobsbawn que o ofício do Historiador não é fazer previsões, como numa corrida de cavalos: “as únicas corridas de cavalos que interessam ao Historiador já estão encerradas”. No caso do Analista de Relações Internacionais, somos fadados, temerariamente, a narrar o final de uma corrida que pode sequer ter-se iniciado. Na ânsia de revelar o futuro que não “veio a ser”, nos detemos em detalhes que muitas vezes pouco impacto futuro terão, enquanto relegamos ao ostracismo elementos de importância futura considerável. Congelando a dinâmica internacional, podemos fechar nossos olhos para o caráter processual dos fenômenos que constituem nosso campo. Enfim, por vezes nos dedicamos com demasiado fervor à descrição, na tentativa de capturar de alguma forma o que “escapa aos olhos”, e nos esquecemos de estabelecer relações entre os elementos em questão – Relações Internacionais!
Dediquei as primeiras linhas desse artigo a incursões filosóficas “meta-analíticas” sobre as Relações Internacionais não apenas para suscitar nos caros leitores uma sadia reflexão a respeito desse tema. Acredito ser possível fazermos juntos tal reflexão, lançando mão de fenômenos internacionais nossos contemporâneos. Vejamos como a análise internacional pode nos levar a conclusões apressadas, num contexto de baixa disponibilidade de tempo para análise. Tomemos por exemplo a criação do Mercosul e suas implicações para a Política Externa Brasileira. Voltemos a 1991, portanto. Ao Tratado de Assunção.
As primeiras análises sobre o Mercosul (comecemos em 1991, sigamos por 1994...) enfatizavam que nosso país então culminava um processo de “integração” com seus vizinhos (superando rivalidades ancestrais) e, simultaneamente, colocava-se em compasso com a “globalização” característica de nossos tempos criando o bloco. Salientavam a celeridade do cronograma da “integração” (Mercado Comum em 1994, Tarifa Externa Comum sem exceções em 1997), a importância da criação do bloco para o fortalecimento do país nas negociações comerciais efetuadas no âmbito do GATT e os ganhos econômicos diretos (potenciais) da constituição do bloco, bem como a importante contribuição de diversos setores da sociedade nas negociações do bloco, como empresários e sindicalistas. Não podemos desprezar a influencia desse “otimismo primordial” nas análises que se seguiriam no futuro.
Sem maiores delongas sobre o que seja “globalização” (vide alguns de meus artigos sobre o tema), rapidamente podemos perceber que detalhes fundamentais passaram despercebidos pelos analistas de então (nem foram tomados em conjunto, examinados nos seus relacionamentos), tais como:
· A complementaridade (ou não) das economias envolvidas na negociação;
· O contexto em que se desenrolaria o processo integrativo (vale lembrar, economias altamente estatizadas em acelerado processo de privatização, rapidamente esgotariam os recursos advindos do citado processo – ficando assim cada vez mais dependentes de investimento externo direto e empréstimos de organismos financeiros internacionais para seus investimentos, uma vez que passava a vigorar a “austeridade nas contas públicas”);
· O limite dos ganhos diretos da integração (até quando haveria “ganho fácil” sem a necessidade de “mudanças de rota” e pesadas negociações?)
· A transposição de um “modelo de governo” comum vigente à época nos países envolvidos (Menem na Argentina, Collor no Brasil etc.) para um futuro em que não havia garantias de sua manutenção;
· As implicações de um processo de integração que se suponha sério (os “efeitos colaterais” e esforços a serem dependidos não foram comparados com os benefícios que se supunha obter nos foros multilaterais via negociação por blocos);
· A participação ativa de todos os setores das sociedades envolvidas no processo integrativo (que se supunha universal) ocorreria? De que forma?
· O “peso” de agentes externos no processo integrativo (como e em que medida a dinâmica da realidade internacional poderia favorecer ou prejudicar o processo integrativo?)
· Qual era (e seria) a ordem de prioridade do processo integrativo nas agendas políticas dos países envolvidos?
· Quais seriam os ajustes necessários para superação de “estrangulamentos” no processo integrativo? (por exemplo, menções a acordos como o Regime Automotivo Brasil-Argentina somente aparecem em análises bastante recentes);
· Os países envolvidos não poderiam manifestar interesses divergentes em outros foros internacionais e em algumas “áreas temáticas” especialmente? E caso isso ocorresse, o que fazer? (lembro que a Argentina pleiteou, pouco após 1991, sua entrada na OTAN; enviou um porta-aviões ao Golfo Pérsico na Operação Tempestade no Deserto e começou a defender sua inclusão como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, concorrendo diretamente com o Brasil).
Passados pouco mais de dez anos, a Argentina faliu, o Brasil experimentou momentos de considerável dificuldade e ainda há aqueles que analisam o Mercosul balizados nos mesmíssimos argumentos de 1991 e 1994! Isso consiste no que de pior podemos fazer com nosso Mundo, creio. Congelar nosso horizonte de análise, seja para referendar análises iniciais por demais prematuras e otimistas, seja para assumirmos uma posição fatalista, colocando os obstáculos do presente como inevitavelmente insuperáveis.
Podemos retirar desse breve episódio analítico diversas e importantes conclusões, mas gostaria de finalizar esse artigo com outra reflexão, outras metáforas. Vezes há em que, Analistas de Relações Internacionais padecendo sob o peso do Mundo, esperamos a vinda de um Hércules – sempre podemos contar com bons trabalhos de outros analistas. Vezes há em que deixamos o Mundo cair a nossos pés, exaustos por suster seu peso – e renovamos nosso ânimo por conhecê-lo, menos afoitos e mais cuidadosos, mais críticos e melhor munidos de instrumentos de análise. E vezes há em que, feito Drummond, acreditamos ter em nossas mãos “o sentimento do Mundo”, julgando conhecer tudo que há para se saber sobre este de uma só vez, imbuídos de um otimismo que eu diria temerário, influenciados pelo impacto inicial de um fenômeno internacional. Em seguida o Mundo, que nos parecia tão dócil e reduzidamente complicado, foge entre nossos dedos e nos faz correr em demasia para tentar compreendê-lo. Entra em funcionamento a complexa “máquina do Mundo” (novamente, retomo Drummond). Nesse momento, ao invés de analisarmos a corrida de cavalos, dela participamos, como todos os demais componentes de nossa sociedade. Sejamos, portanto, fortes frente à “sedução da simplicidade” que nos impele a respostas conclusivas de forma prematura. Sejamos sensatos, críticos, humildes até – e principalmente, pacientes. Assim não teremos de sair correndo atrás dos cavalos!