Clifford Geertz, no texto “O Impacto do Conceito de Cultura sobre o Conceito de Homem”, debruça-se sobre a história das respostas à pergunta “o que é a natureza humana ?”, passando pelo Iluminismo e pela Sociologia dos séculos XIX e XX (primeiras décadas). Após desconsiderar as respostas prévias à pergunta, Geertz afirma, então, que o único traço comum a todos os homens seria o fato de que somos todos ARTEFATOS CULTURAIS. A Cultura consistiria num “CONJUNTO DE MECANISMOS EXTRA-SOMÀTICOS CONTROLADORES DO COMPORTAMENTO HUMANO” e seu surgimento e desenvolvimento teria sido concomitante à evolução biológica verificada na passagem dos primeiros hominídeos aos homens atuais. Em suma, o Homem só se torna tal graças ao surgimento e desenvolvimento da Cultura, dado que, nas palavras de Geertz, o Homem é, dos animais, o mais frágil deles quando surge no mundo, pois não pode valer-se de INSTINTOS (mecanismos somáticos) para guiar seus passos durante sua existência. Necessitamos desesperadamente de algo que nos guie, algo muito além de nosso corpo (dos mais frágeis quando comparado ao de outros animais). Concorrem, portanto, para o surgimento do Homem a sua fragilidade física, manifesta numa inexistência de instintos efetivos, e um substrato cultural preexistente, que é assimilado gradualmente pelo indivíduo no desenrolar de sua vida. A Cultura não surge com o Homem – este surge como decorrência do desenvolvimento cultural experimentado por seus antepassados mais remotos.
Entretanto, Geertz postula, igualmente, o caráter infinitamente plástico do Homem. “Os homens surgem no mundo aptos a viver uma infinidade de vidas – mas, no entanto, vivem apenas uma vida no contexto de determinada cultura”. O Homem só surge com a Cultura – mas os homens, tomados individualmente, surgem quando inseridos no seio de uma cultura ESPECÍFICA. A diversidade cultural é traço característico da Humanidade; nossas diferenças culturais são o que de mais humano partilhamos, podemos inferir a partir dessa constatação. A diferença é o que nos une. Manifestas através do erguer de diversas “fronteiras simbólicas” entre os indivíduos, as culturas acabam por traçar “mapas de significados” que compartilhamos em grande medida com outros homens e que nos guiam existência adiante. É nesse ponto que desejo introduzir a questão da universalidade (ou não) dos Direitos Humanos. Se todos os homens só se tornam tais ao se imbuírem dos referenciais simbólicos de uma cultura particular, assumindo determinada visão de mundo, não seriam os Direitos Humanos algo muito pouco substancial e relativo?
Os Direitos Humanos tem por intuito, mais do que permitir a todos os seres humanos a sobrevivência, permitir a todos os seres humanos uma vida digna. Surgiram no Ocidente durante o Iluminismo, marcados pela idéia da existência de uma natureza humana atemporal e imutável (ligada à idéia de Razão). Compreendem, na atualidade, os chamados Direitos Civis (do indivíduo), Direitos Políticos e Direitos Sociais (debate-se contemporaneamente a inclusão de um quarto conjunto de direitos, os chamados Direitos das minorias). A noção do vínculo intrínseco entre os Direitos Humanos e a idéia de uma natureza humana atemporal e imutável, além da origem destes ter ocorrido no Ocidente durante a Modernidade permanece no coração das querelas entre 0os defensores e detratores dos Direitos Humanos. Tentarei demonstrar que os Direitos Humanos, contanto não sejam um instrumento ideal, podem se coadunar com os conceitos de Cultura e de Homem de Clifford Geertz de forma satisfatória.
Não obstante o viés racionalista, atemporal e imutável conferido aos Direitos Humanos por seus “criadores” desde o Iluminismo, sua pertinência não é incongruente com a idéia do Homem como “artefato cultural”, por alguns motivos. Primeiro, a origem ocidental dos Direitos Humanos seria um problema intransponível em termos de relativismo caso o SUBSTRATO dos Direitos Humanos, conquanto não remeta a uma natureza humana racional, atemporal e imutável, não guardasse traços comuns à totalidade das culturas humanas – por exemplo, a vida como um valor fundamental a ser defendido, a importância da provisão alimentar ser garantida para todos os membros de um grupo etc. Segundo, muito desse mesmo substrato está diretamente relacionado à inexistência ou inoperância dos instintos como “guia” e mantenedor dos homens em sua existência, daí a coerência em anunciar que todo ser humano tem direito à vida, à liberdade, a ser membro de uma cultura, a não sofrer discriminação em virtude de seu pertencimento a uma cultura ou a outra característica particular – sabendo que tais fatos são uma necessidade do ser humano enquanto animal desprovido de instintos eficientes, dependente de padrões de controle extra-somáticos para subsistir. Finalmente, críticos dos Direitos Humanos que se lançam mão do argumento do relativismo condenam sobremaneira a vinculação histórica dos Direitos Humanos à “natureza humana imutável e atemporal” do Iluminismo Ocidental– falhando em perceber que, não obstante esse “mal de origem”, os Direitos Humanos podem se coadunar com a idéia de Homem como “artefato cultural” em termos substanciais.
Os Direitos Humanos são, ainda, uma realidade social em construção – possuem algumas lacunas que, não obstante, vêm sendo lenta e gradualmente preenchidas por novos conjuntos de Direitos – e têm na sua implementação um problema de grandes proporções. Apesar dessas deficiências, não se pode dizer que sua importância seja pequena, ou que sua vinculação histórica ao Iluminismo torne-os inoperantes quando confrontados com a idéia do Homem como “artefato cultural”. Críticas aos Direitos Humanos são pertinentes, entretanto não nesses termos. Tendo em mente o fato de que a Declaração Universal de 1948 foi criada por 51 nações e que, nos anos posteriores, sua aceitação por um número cada vez maior destas ocorreu em ritmo acelerado, podemos ter uma noção, ainda que pequena e parcial, da pertinência da substância desses conjuntos de provisões para homens de nações e culturas as mais diversas...
BIBLIOGRAFIA:
GEERTZ, Clifford. O Impacto do Conceito de Cultura sobre o Conceito de Homem in A INTERPRETAÇÃO DAS CULTURAS. Rio: Jorge Zahar, 1995