Em artigo anterior, propus uma sumarização dos principais elementos do que entendo ser o Realismo nas Relações Interacionais – um programa de pesquisa. Vejamo-lo novamente, de forma breve:
“NÚCLEO DURO” DO PROGRAMA DE PESQUISA REALISTA (UMA PROPOSTA)
1. Suposição ontológica: caráter conflitivo da realidade, atemporal, universal;
2. Definição dos agentes privilegiados: estados nacionais soberanos;
3. Caracterização dos agentes privilegiados: “analogia antropomórfica”
3.1 Estados são, como os homens, entes racionais que maximizam sua autopreservação – comportamento de self-help
3.2 Estados são autônomos frente a seu “âmbito interno”, ou seja, agem e fazem estratégias sem serem coagidos por suas sociedades;
4. Definição do ambiente: anarquia (ausência de um poder superior ao dos estados)
5. Caracterização do ambiente: competição entre os estados, cujos termos são definidos pelos estados mais “dotados”, sendo os demais explicados a partir dos primeiros (bem como agentes não-estatais)
O esquema que propus difere do esquema, por exemplo, de Grieco, que reproduzo abaixo. Não creio que haja espaço para gradações ou considerações acerca de classificações “melhores” ou “piores”. Minha proposta pretende mostrar como os elementos do “núcleo duro” estão relacionados entre si, além do fato dele se estruturar segundo uma “lógica de derivação”, fazendo todos os elementos remontarem a uma suposição ontológica primordial. Diferentes abordagens têm diferentes contribuições para o trabalho comum de busca pelo conhecimento (diriam os autores pluralistas):
“NÚCLEO DURO” DO PROGRAMA DE PESQUISA REALISTA – GRIECO
1) Suposição da centralidade dos estados;
2) Suposição da racionalidade dos estados – os Estados também são atores unitários e autônomos, ou seja, são suficientemente autônomos com relação às suas sociedades nacionais para reconhecer e buscar o interesse da nação como um todo, e não somente o de grupos particulares;
3) Suposição da anarquia – os objetivos e estratégias dos Estados são moldados pelo contexto anárquico (GRIECO, op.cit: p.164-166).
Darei prioridade, em seguida, às críticas que se dirigiram diretamente ao programa de pesquisa realista, não deixando de notar, porém, que há críticas de outra natureza que indiretamente incidem sobre este programa de pesquisa – críticas essas que estão relacionadas com os muitos debates metodológicos e epistemológicos, relacionados com a natureza do conhecimento em Relações Internacionais. O escopo dessas últimas críticas torna difícil sua inclusão em profundidade nesse ensaio, conquanto estas não sejam de modo algum irrelevantes para a discussão em curso. Dou início às críticas com duas considerações feitas por um adepto do Realismo – o próprio Grieco. Este enfatiza como problemáticas ao programa de pesquisa:
a) A questão da mudança;
b) A questão das variáveis diretamente ligadas às unidades (estados);
c) A questão das instituições internacionais;
d) O contradição lógica presente em muitos autores – como coadunar a busca pelo poder com a busca pela segurança, em última instância, com a autopreservação? (GRIECO, op.cit: p.182-186).
Digno de nota é o fato de que Grieco não dá respostas conclusivas para nenhuma das quatro questões acima arroladas. De qualquer forma, fora dos adeptos do Realismo, a primeira crítica relevante ao programa de pesquisa é a feita pela chamada “Escola Inglesa” nas Relações Internacionais. Seus expoentes (Martin Wight, Hedley Bull etc.), buscando fundamentação no pensamento de Grotius e Locke, não consideram inevitável que, da anarquia, derive um cenário conflitivo. Além de considerações diversas acerca da “natureza humana”, esses autores trouxeram novos elementos que, de alguma forma, colocaram em questão elementos-chave do “núcleo duro” do programa de pesquisa realista. Ao relacionar diretamente as problemáticas da anarquia e da ordem, a Escola Inglesa aponta para resultados diversos, em vários sentidos, dos cenários traçados pelos muitos autores realistas.
Bull afirma que, por ordem, entende-se um padrão de relacionamento/comportamento entre os agentes de um determinado sistema social, sendo tal padrão orientado para a promoção de um conjunto de valores ditos básicos – responsáveis pelo estatuto mínimo da sociabilidade. Estes valores básicos (que Bull recupera de Locke e, antes desse, Hume) são a “vida” (necessária limitação da violência e suas conseqüências fatais ou danosas), “verdade” (o cumprimento necessário dos acordos estabelecidos entre si pelos agentes) e “propriedade” (garantia necessária das posses dos agentes).
Calcando seu raciocínio na “natureza humana” tal como entendida por Grotius e Locke (BULL, 1966), Bull afirma que os agentes são capazes de orientar suas ações para determinados fins, bem como são capazes de fazer julgamentos acerca da justiça dos meios e dos resultados de uma ação – mesmo na ausência de uma autoridade a eles superior, o que implica que os próprios agentes regularão seu “intercurso”. Imbuídos de valores comuns, os agentes criarão regras de conduta, adaptando-se às mudanças derivadas da própria interação social, bem como salvaguardarão os valores básicos através de normas, instituições e diversos mecanismos auto-impostos (no entanto, sem aqui estarmos necessariamente lidando com o “imperativo categórico” kantiano). Em outras palavras, Bull e a Escola Inglesa derivam da anarquia não o conflito, mas uma sociedade. Uma sociedade, nas Relações Internacionais, de estados, na qual vigem plenamente “a realidade da anarquia e o imperativo da ordem” (BULL, 1977, p.27).
Nesse sentido, a Escola Inglesa questiona, pela ordem: 1) A suposição ontológica do Realismo (realidade como não sendo sumamente conflitiva); 2) A “analogia antropomórfica” feita pelo Realismo (parte-se de uma concepção diversa da “natureza humana”); 3) A “amoralidade” do Estado que os Realistas recuperam de Maquiavel; 4) O caráter de “maximizadores de autopreservação” conferido pelos Realistas aos estados (a preservação de valores básicos e da própria sociedade internacional aparecem com destaque no cálculo da ação estatal, ao lado da “vida”, ou seja, da autopreservação do próprio estado); 5) O caráter competitivo da “realidade” internacional (haveria cooperação, mais que competição). Ainda pode-se afirmar que a Escola Inglesa “relaxa” as premissas do estado como agente privilegiado das Relações Internacionais e do estado como agente autônomo frente a seu âmbito “interno”. Tome-se a seguinte afirmação de Martin Wight:
“A Sociedade dos Estados… é a mais abrangente forma de sociedade entre os homens, mas é entre os homens que ela existe. Estados são seus membros imediatos, mas homens são seus membros mediatos. As obrigações e direitos dos estados são somente as obrigações e direitos dos homens que os compõe” (WIGHT, 1966: p.101-102).
Em seguida, temos a consideração do Realismo feita pela chamada Crítica Pluralista, corporificada a partir dos anos 50 do século passado nos estudos em Política Externa (em inglês, Foreign Policy Analysis – FPA) e nos estudos de Política Externa Comparada (em inglês, Comparative Foreign Policy – CFP) . A Crítica Pluralista – questiona, inicialmente, a premissa da autonomia estatal frente a seu âmbito interno – centrando seus estudos na análise da influência de processos, estruturas e agentes de toda sorte, nas decisões dos estadistas:
“Argumentava-se que a divisão entre política doméstica e política internacional parecia estar se erodindo e, como conseqüência, não apenas as fronteiras entre os estados se dissolviam, mas a política internacional pareceu tornar-se ‘doméstica’ no processo” (LITTLE, 1996: p.66)
A importância desse tipo de análise foi reconhecida até mesmo por autores realistas como Arnold Wolfers (este, longe de crer que a política internacional se tornava mais ‘doméstica, no entretanto, não abriu mão da perspectiva realista – ele entendia que havia “espaço” para ambas as abordagens no seio das Relações Internacionais) .
Em seguida, a Crítica Pluralista questiona a premissa da “analogia antropomórfica” dos Realistas, no sentido de que, nos homens, a “percepção” destes acerca de um determinado contexto influencia sobremaneira o curso de ação por estes adotado. O mesmo se daria para os estados, portanto esses não seriam adequadamente caracterizados como meramente “racionais” (SINGER, 1961: p.26). O terceiro ponto em que a Crítica Pluralista difere do Realismo: ela considera como insuficientemente reducionista a caracterização feita pelo Realismo acerca da “realidade” internacional, especialmente no tocante à existência de outros agentes e sua importância. Singer afirma que é “somente quando os atores são estudados em detalhe que se pode fazer generalizações válidas de natureza comparativa...evitando as comparações ‘simplistas’ das teorias sistêmicas da política internacional” (SINGER, op.cit.: p.23). Tais críticas desaguariam, na década de 1970, na crítica feita ao Realismo pela Teoria da Interdependência Complexa, capineada por Robert Keohane e Joseph Nye Jr. Finalmente, a Crítica Pluralista propõe-se a explicar o que o Realismo seria incapaz de fazer: o porquê do comportamento de estados ditos “semelhantes” diferir enormemente. Estes estudiosos, por assim dizer, “abrem” a “caixa-preta” do estado:
“...enquanto os realistas assumem que o estado é um ator unitário, muitos analistas de política externa abrem a ‘caixa-preta’ do estado para examinar as várias unidades que constituem seu aparato de tomada de decisão” (GROOM & LIGHT, 1994: p.93)
Em seguida, temos a crítica feita pelos autores relacionados com as teorias do chamado Funcionalismo e Neo-Funcionalismo em Relações Internacionais. Para estes autores (como David Mitrany e Ernst Haas) a cooperação internacional, principalmente a que se dá por meio de instituições, é capaz de resolver problemas que são comuns aos estados ou relacionados com a interação destes, limitando progressivamente o horizonte de disputas capazes de serem solucionadas via força. A idéia é que os indivíduos – bem como os Estados – não desejam a guerra e podem conviver pacificamente se suas necessidades forem atendidas a contento.
Taylor e Groom, ao fazerem um sumário dos mais relevantes princípios funcionalistas e neo-funcionalistas, afirmam que estes consistam em que:
1. O Estado-nação, embora ainda seja capaz de suprir boa parte da demanda dos indivíduos, tende a sacrificar o bem-estar público em prol da satisfação de interesses descolados do interesse dos indivíduos (como prestígio e conquistas militares);
2. As organizações internacionais, criadas para satisfazer às demandas individuais sem se prender a limitações de fronteira, podem produzir maiores benefícios aos indivíduos;
3. O trabalho das organizações pode acabar minando a lealdade dos indivíduos ao Estado através da implementação de um sistema de construção de paz e pela satisfação das demandas em bases não-nacionais (GROOM, A. J. & TAYLOR, 1975: p.1).
Nesse sentido, as muitas correntes funcionalistas e neofuncionalistas questionam a centralidade do estado nas Relações Internacionais, ao colocar a satisfação dos indivíduos como centro da problemática internacional, bem como rompem com a “analogia antropomórfica”, ao opor o interesse público dos indivíduos na Paz ao interesse dos estados em obter prestígio através da guerra. Ainda, os funcionalistas e neofuncionalistas atentam para o caráter dinâmico da “realidade” internacional, progressivamente substituindo o conflito e a anarquia por harmonia fundada em instituições multilaterais (idéia que tem algo em comum com o pensamento kantiano).
Amplo movimento de contestação das teses do Realismo teve lugar, a partir dos anos 70, conduzindo aos questionamentos levantados pela Teoria da Interdependência Complexa de Robert Keohane e Joseph Nye Jr. Nessa época, mudanças profundas na realidade internacional se repercutiram na produção do conhecimento. O Realismo perdeu parte de sua capacidade explicativa. Para tal contribuíram tanto o crescimento da importância de “novos agentes”, não-estatais (capazes, em certas situações, de “transcender” as fronteiras estatais, agindo através destas bem como no seu interior), quanto à emergência de “questões globais” que demandam soluções superiores à capacidade de resposta individual dos Estados nacionais soberanos e são, portanto, potenciais propulsoras da cooperação internacional, contrapondo-se à visão Realista de que os Estados não teriam incentivos “sistêmicos” para cooperar, vivendo em permanente situação de conflito, e confrontando uma visão “minimalista” dos relacionamentos internacionais. Elementos desse contexto de “mudança turbulenta” (Rosenau, 1990: p.295) são: o “desaquecimento” da Guerra Fria pós-1970, a derrota das superpotências no Vietnã e Afeganistão, o fim da paridade ouro-dólar, levando à erosão do sistema financeiro de Bretton Woods, a substituição do Fordismo por um modelo de produção flexível, a emergência da Ásia liderada pelo Japão, a unificação européia, o crescimento econômico cada vez mais desvinculado da atividade bélica, a emergência do “Terceiro Setor”, o incremento do fluxo transnacional de capital especulativo etc. Nesse contexto, emerge a Teoria da Interdependência Complexa.
Postulando que “existe interdependência entre agentes quando as ações de um agente influenciam o resultado das ações de outros agentes”, Keohane considera que um ambiente anárquico, marcado pela dupla ascensão em relevância – de agentes não-estatais e de áreas temáticas incapazes de serem solucionadas pela ação desconcertada dos estados (tais como as temáticas do Meio Ambiente e dos Direitos Humanos) – favorece rumos de ação cooperativos entre os estados e entre estes e outros agentes, mais que o conflito entre os estados. A “agenda internacional” não mais é monopolizada pelas questões relativas à Segurança e o uso da força armada torna-se crescentemente inadequado para a solução dos problemas mais urgentes no plano internacional (NYE JR & KEOHANE, 2000).
Daí a constatação de Keohane – a solução para os citados problemas está diretamente relacionada com a construção de instituições multilaterais, capazes de levar a cabo soluções concertadas entre estados e agentes não-estatais (daí derivando, futuramente, a Teoria dos Regimes internacionais). Tarefas associadas às instituições: compartilhar informações, reduzir os custos de transação, prover mecanismos para a resolução de disputas e formulação de decisões. Ainda, há que se considerar que a política mundial é feita a partir de três “vetores” – relações entre estados (interestatais), entre burocracias (intergovernamentais ou subgovernamentais) e relações que envolvam pelo menos um agente não-estatal ou não-soberano (transnacionais), sem que haja um monopólio da dita “agenda internacional” por qualquer área temática.
A Teoria da Interdependência Complexa coloca uma série de questionamentos incisivos ao Realismo. Em primeiro lugar, é questionada a suposição ontológica: a realidade comporta conflito e cooperação em proporções variáveis ao longo do tempo, sendo, portanto, uma realidade dinâmica e não necessariamente conflitiva. Em seguida, a “analogia antropomórfica” é novamente modificada – estados e agentes não-estatais são entes racionais e maximizadores, mas, entretanto não necessariamente maximizam autopreservação, mas sim “interesses” (consideração que fez Keohane e seus adeptos serem qualificados, numa analogia lockeana, como autores liberais). Em seguida, têm-se que o estado passa a compartilhar em relevância a cena internacional com outros agentes e com instituições internacionais, não sendo, pois, ator privilegiado das Relações Internacionais.
A “reação” Realista no campo das Relações Internacionais no final dos anos 70, na figura do Realismo Estrutural de Kenneth Waltz e sua obra capital “Theory of International Politics”, motivou Keohane a fazer uma série de críticas explícitas ao que ele considerava as suposições fundamentais do programa de pesquisa Realista:
NUCLEO DURO DO PROGRAMA DE PESQUISA REALISTA - KEOHANE
1) Suposição da centralidade dos estados – embora não sejam os únicos agentes, os Estados são ainda os principais “repositórios de autoridade” no sistema internacional;
2) Suposição da racionalidade dos estados – estes calculam os custos de cursos alternativos de ação e buscam maximizar a utilidade esperada, embora o façam sem possuir informações suficientes para calcular todos os possíveis cursos de ação, num ambiente de incerteza;
3) Suposição da busca por poder – o poder é um fim em si mesmo ou como um meio necessário para uma gama de outros fins (KEOHANE, 1986).
No entanto, Keohane estruturou tal análise a partir da análise das obras de Tucídides e de Morgenthau, não levando em conta o fato de que o Realismo Estrutural de Waltz difere destes em diversos pontos, como na ênfase fundamental na anarquia como elemento caracterizador do sistema internacional. Daí tem-se que Waltz consegue refutar várias das críticas de Keohane com relativa facilidade.
As principais críticas formuladas por Keohane (e as respectivas respostas de Waltz) foram:
1) Para Keohane, Waltz adota o pressuposto da racionalidade dos atores. Waltz afirma que usa o termo racionalidade com uma conotação diferente, em função do papel que confere ao processo de seletividade. Em sistemas competitivos, a racionalidade é a dos competidores bem-sucedidos e a seletividade se dá em função das conseqüências das ações (outros atores “emulam” a ação dos bem sucedidos);
2) Keohane afirma que, com o auxílio da premissa da racionalidade e partindo somente do interesse nacional, não é possível prever o curso de ação do estado (no que Waltz concorda, ressaltando a relevância das teorias do estado, não-sistêmicas, que lidam com o processo de tomada de decisões);
3) Keohane critica o conceito de poder e a crença neo-realista na sua fungibilidade, ou seja, a crença de que poder é um conceito intercambiável, a visão unitária de poder, homogênea e utilizável para uma variedade de propósitos. Waltz afirma que há uma fungibilidade relativa do conceito de poder (porém, não chega a refutar a colocação de Keohane);
4) Keohane refere-se à visão do Estado como maximizador de poder. Waltz critica essa perspectiva – o poder é um meio, não um fim para os estados. O fim é a autopreservação (self-help).
5) Uma crítica metodológica: Waltz se oporia ao chamado “falsificacionismo metodológico”. Para ele, a teoria pode ser testada através de testes confirmatórios e não apenas falsificatórios. Para Waltz, o que importa não é a falseabilidade da teoria, mas sua testabilidade. É melhor um pequeno número de casos difíceis bem estudados que confirmem a teoria. Se a teoria é confirmada em situações onde a probabilidade é de que ela seja dificilmente confirmada, então o teste é adequado.
6) A última crítica refere-se ao Neo-Realismo se mostrar inadequado ao estudo das mudanças pacíficas, subestimando o papel das normas, instituições e de atores não-estatais. Waltz apenas afirma que num sistema de auto-ajuda esses fatores são todos limitados por condicionantes estruturais, sendo extremamente difícil à cooperação entre os atores. Ou seja, de fato ele indica que sua teoria não lida com tais fatores.
É notável, enfim, a resiliência de muitas das críticas feitas pela Interdependência Complexa em meados dos anos 70 às premissas realistas, bem como as poucas críticas que Keohane conseguiu adicionar a estas após o surgimento do Neo-Realismo. Tais críticas apontam diretamente para o “núcleo duro” do programa de pesquisa – questionando sua suposição ontológica da realidade, a definição dos atores principais etc.
Em seguida, há que se levar em conta as críticas feitas ao Realismo por autores como Mohamed Ayoob e Carlos Escudé, autores que curiosamente buscavam tornar mais explicativo esse programa de pesquisa (agregando a este, por exemplo, uma explicação mais satisfatória do comportamento dos estados ditos “periféricos” no sistema internacional), mas que, questionando severamente seu “núcleo duro”, acabaram por erguer construtos teóricos que não eram, de fato, realistas, no máximo constituindo “teorias correlatas”.
Ayoob afirma que uma das grandes falhas do Realismo e de outras teorias ditas “dominantes”, junto com sua dificuldade em lidar com as mudanças, é seu “esquecimento” da periferia do sistema internacional. O foco destas nas grandes potências implica favorecimento de questões como o equilíbrio de poder e a competição entre estados, marginalizando na análise a quase totalidade dos estados – o Terceiro Mundo, esses tidos como agentes não-influentes emuladores dos poderosos. Outra falha se localiza na premissa de que todos os Estados seriam iguais, bem como na dicotomia entre ordem doméstica e anarquia internacional, a qual coloca fora da análise os estados “em processo de constituição”. Há que se levar em conta as variáveis domésticas.
Ayoob, enfim, acaba por propor um novo modelo de teoria – que ele denomina “Realismo Subalterno”. Para tal, ele recupera o argumento hobbesiano da construção do estado, afirmando que Hobbes não analisou o cenário internacional desconectado de sua análise do cenário doméstico (AYOOB, 1998: p.39). Uma tese certamente acurada – Ayoob, entretanto, não atentou para o fato de que o Realismo opera uma transformação nesse ponto específico do “edifício político hobbesiano”, separando as esferas doméstica e internacional (questão já trabalhada no curso desse ensaio). Dessa forma, para os propósitos desse ensaio, sem nos determos às minúcias da Teoria do “Realismo Subalterno”, basta que seja levada em conta essa afirmação do autor para entender a profundidade de sua crítica ao programa de pesquisa:
“De fato, estas reflexões (Realismo Subalterno) questionam as premissas básicas do pensamento do mainstream como os conceitos de anarquia, sistema internacional, Estado, soberania, alianças e escolha racional. O Terceiro Mundo passa a não ser mais mero produto das políticas das potências” (AYOOB, op.cit: p.47).
Nesse sentido, as críticas de Ayoob, não obstante possam ser pertinentes no questionamento do “núcleo duro” realista, de fato não conferem a este maior capacidade explicativa, constituindo uma teoria concorrente, não pertencente, ao citado programa de pesquisa.
O mesmo fato ocorre com Carlos Escudé e sua teoria do “Realismo Periférico” (a qual, de fato, é mais voltada para os países latino-americanos do que para a totalidade dos ditos “periféricos”), outra tentativa de adequar o instrumental realista à realidade de estados do Terceiro Mundo. Suas teses podem ser resumidas nos seguintes pontos:
1) A política externa de um país periférico deve servir aos cidadãos (ou seja, deve implicar crescimento/desenvolvimento econômico);
2) O “interesse nacional” passa a ser definido em termos de desenvolvimento econômico, especialmente para os países que não enfrentam ameaças externas imediatas;
3) Visto de uma perspectiva não-doméstica, os Estados Unidos são a maior limitação a uma política externa dos países latino-americanos. Assim sendo, é imperativo para os países dessa região que estes mantenham boas relações com a potência, sempre que estas não implicarem prejuízo ao crescimento/desenvolvimento econômico dos mesmos (ESCUDÉ, 1997 & 2002).
Escudé, não obstante reconheça algumas das premissas fundamentais do programa de pesquisa realista – como a suposição ontológica da realidade como conflitiva – critica outras frontalmente, em especial a “analogia antropomórfica” (que ele qualifica de “falácia antropomórfica”) e a anarquia sistêmica (que ele vê mais bem caracterizada como uma anarquia entre grandes potências e uma hierarquia entre estas e a periferia, implicando que as últimas são levadas a se alinhar às primeiras). Desse modo, não obstante a acidez (e acuidade) de suas críticas ao Realismo, ele não pode ser considerado um autor pertencente a este programa de pesquisa. Seu intento de conferir maior capacidade explicativa ao programa de pesquisa acabou por criar hipóteses auxiliares que minam o “núcleo duro”.
Finalmente, em caráter breve, algumas menções a críticas que não diretamente orientadas ao programa de pesquisa realista, mas que sobre ele incidem, estando relacionadas com debates “mais amplos” sobre a natureza do conhecimento em Relações Internacionais. Max Horkheimer,um dos autores mais destacados da chamada “Escola de Frankfurt” das Ciências Sociais, faz, em sua obra “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”, uma distinção entre teorias tradicionais (que, ao separarem o papel do cientista do contexto social em que ele está inserido, são reprodutoras do “status quo”) e teorias críticas (as quais afirmam o relacionamento intrínseco da atividade científica com o contexto social na qual esta se insere, afirmando o papel fundamental do cientista como promotor da emancipação social). O programa de pesquisa realista encaixa-se na primeira definição de teoria:
“Na medida em que o conceito de teoria é independentizado, como que possuindo uma fundamentação a-histórica, ele se transforma em uma categoria coisificada e, por isso, ideológica” (HORKHEIMER, op. cit. p. 129).
“O cientista e sua ciência estão atrelados ao aparelho social, suas realizações constituem um momento de autopreservação e da reprodução contínua do existente, independente daquilo que imaginam a respeito disso” (HORKHEIMER, op. cit. pág. 131)
Karl Mannheim, por sua vez, ao fundar a disciplina da Sociologia do Conhecimento, destaca que as “idéias” são uma função de quem as mantém, assim como de sua posição no meio social. Seguindo esta abordagem, podemos dizer que todas as verdades são apenas as idéias de uma determinada pessoa e que estas as idéias refletem posições sociais e experiências determinadas. Nesse sentido, todo o conhecimento seria ideológico e quanto mais conscientes nos tornamos das pressuposições por trás de nosso pensamento, no interesse de uma pesquisa empírica, mais se evidencia que este procedimento empírico só pode ser executado com base em certos juízos metafísicos, ontológicos e meta-empíricos e nas expectativas e hipóteses que deles decorrem. O que, pois, confirma a idéia de existência de uma suposição ontológica na base do programa de pesquisa realista (MANNHEIM, 1976).
Por fim Mark Neufeld, um autor dito pós-positivista, lida com perspectivas “interpretativistas” nas Ciências Sociais, endereçando parte de suas críticas ao Realismo. Para ele, “a objeção realista ao desenvolvimento de abordagens progressistas na política internacional está não somente na natureza essencialmente conflituosa da política internacional, mas na caracterização da ordem internacional como fundamentalmente imutável” (NEUFELD, 1993: p.57). Dada esta imutabilidade do “real” para os realistas, Neufeld argumenta que “...a teoria das relações internacionais nunca poderá ser a teoria da “boa vida” mas, na melhor das hipóteses, a teoria da sobrevivência” (NEUFELD, op.cit: p.57). O que, pois, confirma a importância da autopreservação como fim último dos agentes, como mencionei anteriormente.
Ainda a este respeito, Neufeld afirma que uma abordagem interpretativa pode trazer um antídoto ao “pessimismo” do Realismo sobre a possibilidade de progresso. A ciência social interpretativa sustenta afirma que toda a ordem política e social é produto de práticas sociais. Alexander Wendt expressou com exatidão a profundidade da colocação de Neufeld ao afirmar que “a anarquia é o que os estados fazem dela” (WENDT, 1992).
Retomando, enfim, o argumento de Horkheimer e Manheim, Neufeld afirma que “é possível perceber a teoria positivista de relações internacionais não como corpo neutro de conhecimento, mas como uma forma de ‘teoria tradicional’ que tem por função facilitar a ‘adaptação’ da humanidade à suas circunstâncias básicas. Assim, o mainstream positivista das relações internacionais pode ser visto como a força social que mais contribui para a manutenção da “relação de dependência congelada ideologicamente”, reificando a ordem global, apresentando-a como algo à parte da ação e do desejo e independente da ação ou do desejo humano” (NEUFELD, op.cit: p.59).
A guisa de conclusão cabe a constatação de que, não obstante a miríade de argumentos extremamente pertinentes e contundentes quanto aos problemas do programa de pesquisa realista (através desse ensaio, espero ter contribuído para a compreensão desse processo), este ainda constitui um dos corpos teóricos de maior relevância no estudo das Relações Internacionais. Programas de pesquisa concorrentes vêm, no entanto, se mostrando crescentemente relevantes no provimento das respostas que não têm sido encontradas no Realismo.
BIBLIOGRAFIA
ARON, Raymond. Paz e Guerra Entre as Nações. Brasília: Editora da UnB, 1986.
AYOOB, Mohamed. “Subaltern Realism: International Relations Theory Meets the Third World”. In:
NEUMAN, Stephanie G. (ed.). International Relations Theory and the Third World. London: Macmillan Press, 1998.
BANKS, Michael. “The Inter-Paradigm Debate”, in M.Light & A.J.R.Groom (eds) International Relations – A handbook of current theory. Pinter Publ. 1985.
BOUCHER, David. “Hobebs” in Political Theories of International Relations, Oxford, OUP, 1998
BROWN, Chris. Understanding International Relations. London, Macmillan, 1997.
BULL, Hedley. The Anarchical Society. New York: Columbia University Press, 1977.
BULL, Hedley. “The Grotian Conception of International Society”, in H.Butterfield & M.Wight (eds) Diplomatic Investigations. London, George Allen & Unwin Ltd, 1966
CARR, Edward. The Twenty Years Crisis, Haper Torchbooks, 1964, part II (The International Crisis)
ESCUDÉ, Carlos. Foreign policy theory in Menem’s Argentina. Gainesville: University Press of Florida, 1997.
ESCUDÉ, Carlos. “An Introduction to Peripheral Realism and Its Implications for the Interstate System: Argentina and the Cóndor II Missile Project” in NEUMAN, Stephanie G. (ed.). International Relations Theory and the Third World. London: Macmillan Press, 1998.
GRIECO, Joseph M. “Realist International Theory and the Study of World Politics”. In: DOYLE, Michael W. & IKENBERRY, G. John (eds.). New Thinking in International Relations Theory. Westview Press, 1997.
GROTIUS, H. “War, Peace and the Law of Nations” in VIOTTI, P. & KAUPPI, M. International Relations Theory. New York, Macmillan Publishing Co., 1993.
GROOM, A.J. & TAYLOR, Paul. “Introduction: Funcionalism and International Relations”, in A. J. Groom & Paul Taylor (eds) Functionalism – Theory and Practice in International Relations. NY, Crane, Russak & Co., 1975.
GROOM, A.J. & LIGHT, Margot (eds) Contemporary International Relations: a guide to Theory, London, Pinter Publishers Ltd. 1994.
HALLIDAY, Fred. Repensando as Relações Internacionais. Porto Alegre, Ed. UFRGS, 1999.
HEISS, Hans. Kant: Political Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.
HOBBES, Thomas. “Da condição natural da humanidade relativamente à sua felicidade e miséria”, Leviatã. Os Pensadores, Abril Cultural, 2000.
HORKHEIMER, Max (1983), Teoria Tradicional e Teoria Crítica. In: Os Pensadores. São Paulo, Abril.
KANT, Immanuel. “Morality, Politics, and Perpetual Peace” in VIOTTI, P. & KAUPPI, M. International Relations Theory, New York, Macmillan Publishing Company, 1993.
KEOHANE, Robert O. “Theory of World Politics: Structural Realism and Beyond”. In: KEOHANE, Robert O. (ed.). Neorealism and Its Critics. New York: Columbia University Press, 1986.
KEOHANE, Robert & NYE JR, Joseph. Power and Interdependence in the information age in FOREIGN AFFAIRS, v.77, n5, 1998.
KHALER, Miles. “Inventing International Relations”, in M.W.Doyle & G.J.Ikenberry (eds) New Thinking in International Theory. Westview Press, 1997.
LAKATOS, Imre. “O Falseamento e a Metodologia dos Programas de Pesquisa Científica”. In: LAKATOS, Imre & MUSGRAVE, Alan (eds.). A Crítica e o Desenvolvimento Científico. São Paulo: Editora Cultrix/Editora da USP, 1979.
LITTLE, Richard. “The Growing Relevance of Pluralism?” in Steve Smith, Ken Booth, Marysia Zalewski (eds) International Theory Positivism and Beyond. Cambridge: Cambridbe University Press, 1996.
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1976.
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo, Editora Cultrix, 1977.
MORGENTHAU, Hans. Política Entre las Naciones – La lucha por el poder y la paz. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1986.
NAVARI, Cornelia. “Hobbes, the state of Nature and the Laws of Nature”, in Ian Clark (ed.) Classical Theories of International Relations, London, Macmillan Press, 1996.
NEUFELD, Mark. “Interpretation and the Science of International Relations” in Review of International Studies, v.19, 1993.
NEUMAN, Stephanie G. “International Relations Theory and the Third World: An Oxymoron?” In:
NEUMAN, Stephanie G. (ed.). International Relations Theory and the Third World. London: Macmillan Press, 1998.
NYE JR., Joseph S. & KEOHANE, Robert O. “Introduction” in NYE JR., Joseph S. & DONAHUE, John D. (editores). Governance in a globalizing world. Washington: Brookings Institution Press, 2000.
ROSENAU, James N. Studying Structures – The Two Worlds of World Politics in ROSENAU, James N. Turbulence in World Politics: a theory of change and continuity. Princeton: Princeton University Press, 1990.
ROSENAU, James N. “Governança, Ordem e Transformação na Política Mundial” in ROSENAU, James N. Governança sem governo: ordem e transformação na política mundial. Brasília: UnB, 2000.
SINGER, David (1969). The Level-Of-Analysis Problem in International Relations in ROSENAU, James (1969). International Politics and Foreign Policy. Nova York: The Free Press, pp. 20-29
SMITH, Steve. “The Self-Images of a Discipline: A Genealogy of International Relations Theory”, in K.Booth & S.Smith International Relations Theory Today, University Park, Pennsylvannia, The Pennsylvannia State University Press, 1995.
TUCÍDIDES. The Melian Dialogue, in History of the Peloponnesian War. In VIOTTI, P. & KAUPPI, M. International Relations Theory. NY: Macmillan Publ. Co., 1993.
WALTZ, Kenneth. Theory of International Politics. Reading, Massachusets: Addison-Wesley, 1983.
WALTZ, Kenneth. “Reflections on Theory of International Politics: A Response to my Critics”, in Robert Keohane (ed.) Neo-realism and its critics, New York, Columbia University Press, 1986.
WENDT, Alexander E., “The agent-structure problem in international relations theory” in International Organization 41, 3, Summer 1987.
WENDT, Alexander E., “Anarchy Is What States Make of It: The Social Construction of Power Politics” in International Organization 46, 1992.
WIGHT, Martin. “Western Values in International Relations”. In: BUTTERFIELD, Herbert & WIGHT,
Martin (eds.) Diplomatic Investigations. London: George Allen & Unwin Ltd., 1966.
WIGHT, Martin. International Theory – The Three Traditions. Leicester & London: Leicester University Press, 1991.
WILLIAMS, Howard & BOOTH, Ken. “Kant – Theorists Beyond Limits”, in Ian Clark (ed.) Classical Theories of International Relations, London, Macmillan Press, 1996.
WOLFERS, Arnold. Discord and Collaboration: Essays on International Politics, Baltimore, The John Hopkins University, 1962.