Horas atrás, teve lugar no Iraque acontecimento insólito, capaz de mesmerizar aqueles que, como eu, viveram os duros dias da Guerra Fria. Um destacamento do exército da Polônia (pouco mais de uma década atrás, um dos satélites mais fiéis do Socialismo da União Soviética) recebeu o controle de uma região no interior do ocupado Iraque, pelas mãos camaradas (trocadilho sugestivo?) dos próprios invasores – os Estados Unidos, virtuais candidatos a Império global (antes, temia-se o “Império do Mal”), parceiros dos poloneses na OTAN e na empreitada de “libertação do povo iraquiano”. Ao mesmo tempo, o presidente George W.Bush acena com a possibilidade, enfim, de “aceitar” um papel significativo para a ONU no processo de “reconstrução” do Iraque.
À parte o simbolismo pós-Guerra Fria desse momento (capaz de elucidar muito a respeito dos dias que correm), o que de mais valioso pude apreender do mesmo passou despercebido para muitos, senão a extensa maioria dos comentadores. Esse fato consiste em novo deslocamento do “pêndulo” da política externa norte-americana, algo que tem conseqüências não-desprezíveis para que avaliemos, por exemplo, os prospectos acerca da relevância das instituições internacionais para a “nova ordem mundial” atualmente sendo forjada, para o bem ou o mal.
Grosso modo, pode-se localizar a política externa de nosso “grande irmão do Norte”, desde os tempos do general Washington e dos “pais fundadores”, oscilando entre dois pólos. Nenhum dos dois está descolado da busca pela solidificação do “papel dos Estados Unidos no mundo” ou, numa leitura mais direta do “Destino Manifesto”, de como ensejar (e gerir, nos nossos dias e nos que virão) a supremacia dos Estados Unidos em nosso planeta. Duas diferentes respostas foram dadas para o “problema da perpetuação do poder norte-americano”.
A primeira delas, associada aos segmentos conservadores da política norte-americano, vê a supremacia norte-americano sob o prisma do “poder” – superioridade em recursos, em armamentos, em tecnologia etc. Acreditam seus defensores que a supremacia norte-americana estará tão mais assegurada quanto mais distante do “acervo de recursos” norte-americano os demais estados tiverem. É nesse contexto que ganham sentido afirmações de John Mearshaimer tais como: “todos os estados gostariam de ser o estado mais poderoso de todos” e “a sobrevivência de um estado está diretamente relacionada com o aumento de sua ‘posição de poder’ em relação aos demais”. Dessa forma, o emprego ativo pelos Estados Unidos de superioridade de recursos é visto não apenas com bons olhos, mas como uma necessidade imperiosa em determinados contextos. A despeito do “dano reputacional” que possa ser causado aos Estados Unidos ou da vigorosa oposição que atos unilaterais possam suscitar em outros estados ou na proverbial “opinião pública internacional”, bem como provocar turbulência no funcionamento de instituições internacionais, a estratégia adotada é a de “imposição da supremacia”, custe o que custar (no final, o resultado, dizem , será mais que compensador). A invasão ao Iraque está diretamente relacionada com essa primeira vertente.
A segunda visão, fundada nos segmentos liberais da política norte-americano, reza pela cartilha do que Joseph Nye Jr. denominaria “poder suave”, relacionando diretamente a promoção dos interesses norte-americanos com a construção de instituições globais. A estas, caberiam, entre outras tarefas, influenciar a forma como outros estados definem seus interesses (redirecionando-os, pois), promover a “ordem” e reduzir os custos da manutenção desta para os Estados Unidos, satisfazer na medida do possível os interesses de outros estados sem colocar em risco um ambiente propício para a reprodução do “estado de coisas” no plano internacional. Para tal, tem-se que tais instituições, longe de serem alheias às “realidades do poder”, devem ser permeáveis a este, permitindo que os interesses dos Estados Unidos sejam promovidos, explicita ou sub-repticiamente (ponto que muitos analistas não percebem, associando a empreitada de construção de instituições com uma visão dita “utópica” das Relações Internacionais). Exemplos abundam – as chamadas “instituições de Bretton Woods” (FMI, Banco Mundial), a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização dos Estados Americanos (OEA), Organização Mundial do Comércio (OMC) etc. Seus defensores, mais que simples paladinos da supremacia norte-americano, buscam conferir a esta legitimidade no plano internacional, através de ações concertadas com outros estados, de forma institucionalizada. Em outras palavras, eles buscam converter supremacia em verdadeira hegemonia – o exercício contínuo e legítimo da liderança no plano internacional. Manifestação clássica desse segundo pólo foram as propostas do então presidente Woodrow Wilson, no imediato pós-Primeira Guerra Mundial, relacionados com a construção de um “sistema de segurança coletivo” e com o erigir da Liga das Nações, espelhados posteriormente por Franklin Roosevelt quando da construção da ONU e das instituições que herdamos do período da Guerra Fria.
Moral da história: George W. Bush passa o bastão para Woodrow Wilson, reconhecendo o fracasso da ação militar no Iraque e a necessidade de reforço das instituições internacionais, provando o “gosto amargo” do unilateralismo e, pois, fazendo uma concessão de relevo ao multilateralismo? Não confiramos ao quadro tintas por demais róseas. Bush Júnior se encontra, pela ordem: 1) pressionado pelo eleitorado doméstico às vésperas de mais um pleito nacional (basicamente, volta dos soldados para casa, fugindo dos cada vez mais constantes ataques de guerrilhas e terroristas e estancamento da “sangria” de dólares que se tornou a operação militar no Iraque, ao custo de 4 bilhões de dólares mensais); 2) desejoso de que mais países “invistam” na chamada “construção da Paz” uma vez finda a guerra; e 3) ciente da posição de crescente isolamento que seu país assume num momento em que os próprios Estados Unidos declaram “Guerra mundial ao Terrorismo”.
Nesse contexto (e uma vez que a fragilidade da presença da própria ONU em solo iraquiano salta aos olhos, haja vista a facilidade com que se perpetrou o atentado que vitimou Sérgio Vieira de Mello), Bush Júnior simplesmente desloca para a “esquerda” o pêndulo da política externa norte-americano. Um “recuo estratégico” (fundado em atos simbólicos, como a “cessão do controle” de porções do território iraquiano para estados com pretensões modestas, como a Polônia) sobre o qual pairam dúvidas quanto à eficácia. As instituições, não obstante fundadas sobre a “realidade do poder”, têm algum efeito autônomo sobre os acontecimentos sobre os quais incidem (lembrem-se do “jogo de cintura” durante meses dos Estados Unidos e Reino Unido no Conselho de Segurança da ONU, capaz de adiar e mesmo mudar os rumos da operação militar que depois ocorreria). Não há, porém, dúvidas quanto ao caráter da “mudança de rumo” de Bush, muito menos radical do que a mudança da Polônia socialista de dantes para a Polônia da OTAN dos dias que correm – essa atitude relaciona-se com a sustentação da supremacia (e promoção da hegemonia) dos Estados Unidos no globo. Como já dizia Lampedusa (em “O Leopardo”), algo tem que mudar para que tudo fique no mesmo lugar – sejam mãos ou províncias no interior do Iraque.