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Artigos-->INSTITUIÇÕES NO JOGO DO PODER GLOBAL – A CARTADA DE BUSH -- 10/09/2003 - 01:59 (Carlos Frederico Pereira da Silva Gama) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Dias atrás, teve lugar no Iraque acontecimento insólito, capaz de mesmerizar aqueles que, como eu, viveram os dias (mesmo sendo os últimos) da Guerra Fria. Um destacamento do exército da Polônia (pouco mais de uma década atrás, um dos mais fiéis satélites da União Soviética) recebeu o controle de uma região no interior do ocupado Iraque, pelas mãos camaradas (trocadilho sugestivo?) dos próprios invasores – os Estados Unidos, virtuais candidatos a Império global (antes, temia-se o “Império do Mal”), parceiros dos poloneses na OTAN e na empreitada de “libertação do povo iraquiano”. Ao mesmo tempo, o presidente George W. Bush acenou com a possibilidade, enfim, de “aceitar” um papel significativo para a ONU no processo de “reconstrução” do Iraque.



À parte o simbolismo pós-Guerra Fria desse momento (capaz de elucidar muito a respeito dos dias que correm), o que de mais valioso pude apreender do mesmo passou despercebido para muitos, senão a extensa maioria dos comentadores. Esse fato consiste em novo deslocamento do “pêndulo” da política externa norte-americana, algo que tem conseqüências não-desprezíveis para que avaliemos, por exemplo, os prospectos acerca da relevância das Instituições Internacionais para a “nova ordem mundial” atualmente sendo forjada, para o bem ou o mal.



Grosso modo, pode-se localizar a política externa de nosso “grande irmão do Norte”, desde os tempos do general Washington e dos “pais fundadores”, oscilando entre dois pólos. Nenhum dos dois está descolado da busca pela solidificação do “papel dos Estados Unidos no mundo” ou, numa leitura mais direta do “Destino Manifesto”, de como ensejar (e gerir, nos nossos dias e nos que virão) a supremacia dos Estados Unidos em nosso planeta. Duas diferentes respostas foram dadas para o “problema da perpetuação do poder norte-americano”.



A primeira delas, associada aos segmentos conservadores da política norte-americano, vê a supremacia norte-americano sob o prisma do “poder” – superioridade em recursos, em armamentos, em tecnologia etc. Acreditam seus defensores que a supremacia norte-americana estará tão mais assegurada quanto mais distante do “acervo de recursos” norte-americano os demais estados tiverem. É nesse contexto que ganham sentido afirmações de John Mearshaimer (em seu famigerado artigo “The False Promise of International Institutions”) tais como: “todos os estados gostariam de ser o estado mais poderoso de todos” e “a sobrevivência de um estado está diretamente relacionada com o aumento de sua “posição de poder” em relação aos demais”. Dessa forma, o emprego ativo pelos Estados Unidos de superioridade de recursos é visto não apenas com bons olhos, mas como uma necessidade imperiosa em determinados contextos. A despeito do “dano reputacional” que possa ser causado aos Estados Unidos ou da vigorosa oposição que atos unilaterais possam suscitar em outros estados ou na proverbial “opinião pública internacional”, bem como provocar turbulência no funcionamento de Instituições Internacionais, a estratégia adotada é a de “imposição da supremacia”, custe o que custar (no final, o resultado, dizem, será mais que compensador). A invasão ao Iraque está diretamente relacionada com essa primeira vertente.



A segunda visão, fundada nos segmentos liberais da política norte-americano, reza pela cartilha do que Joseph Nye Jr. denominaria “poder suave”, relacionando diretamente a promoção dos interesses norte-americanos com a construção de instituições globais. A estas, caberiam, entre outras tarefas, influenciar a forma como outros estados definem seus interesses (redirecionando-os, pois), promover a “ordem” e reduzir os custos da manutenção desta para os Estados Unidos, satisfazer na medida do possível os interesses de outros estados sem colocar em risco um ambiente propício para a reprodução do “estado de coisas” no plano internacional. Para tal, tem-se que tais instituições, longe de serem alheias às “realidades do poder”, devem ser permeáveis a este, permitindo que os interesses dos Estados Unidos sejam promovidos, explicita ou sub-repticiamente (ponto que muitos analistas não percebem, associando a empreitada de construção de instituições com uma visão dita “utópica” das Relações Internacionais). Exemplos abundam – as chamadas “instituições de Bretton Woods” (FMI, Banco Mundial), a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização dos Estados Americanos (OEA), Organização Mundial do Comércio (OMC) etc. Seus defensores, mais que simples paladinos da supremacia norte-americano, buscam conferir a esta legitimidade no plano internacional, através de ações concertadas com outros estados, de forma institucionalizada. Em outras palavras, eles buscam converter supremacia em verdadeira hegemonia – o exercício contínuo e legítimo da liderança no plano internacional. Manifestação clássica desse segundo pólo foram às propostas do então presidente Woodrow Wilson, no imediato pós-Primeira Guerra Mundial, relacionados com a construção de um “sistema de segurança coletivo” e com o erigir da Liga das Nações, espelhados posteriormente por Franklin Roosevelt quando da construção da ONU e das instituições que herdamos do período da Guerra Fria.



Moral da história: George W. Bush passa o bastão para Woodrow Wilson, reconhecendo o fracasso da ação militar no Iraque e a necessidade de reforço das Instituições Internacionais, provando o “gosto amargo” do unilateralismo e, pois, fazendo uma concessão de relevo ao multilateralismo? Não confiramos ao quadro tintas por demais róseas. Bush Júnior se encontra, pela ordem: 1) pressionado pelo eleitorado doméstico às vésperas de mais um pleito nacional (basicamente, volta dos soldados para casa, fugindo dos cada vez mais constantes ataques de guerrilhas e terroristas e estancamento da “sangria” de dólares que se tornou à operação militar no Iraque, ao custo de 4 bilhões de dólares mensais); 2) desejoso de que mais países “invistam” na chamada “construção da Paz” uma vez finda a guerra; e 3) ciente da posição de crescente isolamento que seu país assume num momento em que os próprios Estados Unidos declaram “Guerra mundial ao Terrorismo”.



Nesse contexto (e uma vez que a fragilidade da presença da própria ONU em solo iraquiano salta aos olhos, haja vista a facilidade com que se perpetrou o atentado que vitimou Sérgio Vieira de Mello), Bush Júnior simplesmente desloca para a “esquerda” o pêndulo da política externa norte-americano. Um “recuo estratégico” (fundado em atos simbólicos, como a “cessão do controle” de porções do território iraquiano para estados com pretensões modestas, como a Polônia) sobre o qual pairam dúvidas quanto à eficácia. As instituições, não obstante fundadas sobre a “realidade do poder”, têm algum efeito autônomo sobre os acontecimentos sobre os quais incidem (lembrem-se do “jogo de cintura” durante meses dos Estados Unidos e Reino Unido no Conselho de Segurança da ONU, capaz de adiar e mesmo mudar os rumos da operação militar que depois ocorreria). Não há, porém, dúvidas quanto ao caráter da “mudança de rumo” de Bush, muito menos radical do que a mudança da Polônia socialista de dantes para a Polônia da OTAN dos dias que correm – essa atitude relaciona-se com a sustentação da supremacia (e promoção da hegemonia) dos Estados Unidos no globo. Como já dizia Lampedusa (em “O Leopardo”), algo tem que mudar para que tudo fique no mesmo lugar – sejam mãos ou províncias no interior do Iraque.



Enquanto isso, a Europa diz “NÃO!”. A “recuada estratégica rumo às instituições” de George W. Bush acabaria por sofrer seu primeiro revés logo em seguida. Previsivelmente, alguns dos estados europeus mais importantes no Conselho de Segurança da ONU (França, possuidora do “poder de veto” e Alemanha) rejeitaram proposta norte-americana de constituição de uma “força de paz internacional” para pacificar o Iraque pós-Saddam, antes mesmo que esta fosse colocada em votação.



Analistas de matriz realista, como Robert Kagan no quimérico artigo “Power And Weakness”, apressam-se em dizer que norte-americanos e europeus não apenas diferem nas suas visões do “poder”, como sequer “vivem no mesmo mundo”. Os europeus teriam optado por construir “castelos de areia” fundados na Paz kantiana, afastando-se da Realpolitik, enquanto que os norte-americanos, menos ingênuos, teriam optado pela transposição do “Realismo ofensivo” de Mearsheimer para o plano internacional, agindo em defesa de suas “posições de poder” e da manutenção do próprio sistema, abandonado pelos “fleumáticos” europeus, apegados às “ilusórias” Instituições Internacionais. No limite, os americanos fariam o “serviço sujo” e os europeus, desimportantes, poderiam se deleitar eternamente em “berço esplêndido”, voltados para seus queijos e trufas. Nada mais banalmente simplista, sensacionalista e despido de verossimilhança do que tal análise.



O primeiro equívoco de tal análise, sendo informada por uma matriz Realista, é considerar que os europeus poderiam simplesmente “dar as costas“ para questões de segurança internacional, se evadindo destas – o que contradiz flagrantemente o suposto realista do constrangimento sistêmico sobre as ações dos atores (um erro no qual Mearsheimer também incorre, na seção final de “The False Promise of International Institutions”). Em seguida, torna-se patente o acentuado viés de ingenuidade política que informa a análise de Kagan, ao acenar com a possibilidade de que os europeus desejem um tal caminho. Nada indica que os europeus tenham adentrado um “paraíso kantiano” no pós-1945, ou que estes tenham optado por deixar de buscar “posições de poder” mais privilegiadas no longo prazo (houve diversos momentos, na História, em que “a Europa”, tomada como uma unidade, esteve colocada de forma desfavorável no jogo de poder global). Um “horizonte de análise” de menos de um século me parece extremamente precário, uma vez que todos nós estamos cientes de que a manutenção de “posições de poder”, no sistema internacional hodierno, parece algo menos durável do que se imagina – ainda carecem de explicação acurada os acontecimentos de 1989-1991. Ademais, os “apologetas do poder” costumam dar com os burros n’água quando se dão à tarefa de predizer (haja vista o infame artigo “Back To The Future” de Mearsheimer, no qual este “prediz”, em 1990, o fim da União Européia e da OTAN). Ainda, tal segunda consideração é motivada por uma visão deveras simplista do papel das Instituições Internacionais no jogo do poder global – uma visão que não encontra suporte, inclusive, na forma como os Estados Unidos lidam com elas (e as utilizam).



Os europeus, um dia virtuais “donos do mundo” que chegaram a retalhar continentes inteiros em seus jogos de guerra e conquista (a infame Conferência de Berlim, 1884-1885), não teriam nada a ganhar num tacanho “desafio explícito” à vigente supremacia norte-americana. Nas entrelinhas – e, mais do que ninguém, sabedores da relevância das Instituições Internacionais nesse “jogo de poder” global, pois foram seus criadores – os europeus buscam construir uma alternativa à vigente supremacia da Águia. Curiosamente, foi este o comportamento dos Estados Unidos no ocaso do poder europeu, no bojo de duas guerras mundiais – construção lenta, paulatina de “bases de poder”, cautela nas ações externas e, acima de tudo, não ensejar o desperdício de oportunidades de redefinir o sistema a seu favor. Nesse ponto em especial, o papel das instituições assume caráter decisivo. No dizer de Lisa Martin e Beth Simmons (em “Theories and Empirical Studies of International Institutions”), elas constituem “causa e efeito da ação estratégica dos estados”. Uma vez criadas para resolver determinados problemas, elas constrangerão, moldarão o comportamento dos estados, mesmo constantemente desafiadas e reformadas pelos mesmos. Às instituições estão associados determinados efeitos, muitos deles previsíveis (resultado da convergência da ação dos estados envolvidos), mas alguns deles imprevistos. Elas são simultaneamente instrumentos de manutenção do “status quo” e instrumentos de alteração do mesmo.



Os europeus não apenas têm ciência dos jogos de poder internacionais, de hoje e de ontem – eles sabem o contexto em que Bush Júnior “conclama” os estados a cooperar com a “reconstrução” do Iraque, sempre cientes do papel que as instituições desempenham neste. França e Alemanha, ademais, virtuais “líderes” da União Européia, estão empenhados na tarefa de constituição de uma força militar continental descolada da influência norte-americana (ou seja, capaz de se contrapor à OTAN). Nesse quesito em especial, mas em muitos outros, sabem França e Alemanha que pouco ou nada podem contar com o Reino Unido de Tony Blair, em sua eterna “dobradinha” com os ditames de Washington. Não há, a rigor, surpresas na decisão desses países em “barrar” a proposta norte-americana na ONU, ainda mais quando nos lembramos dos embates testemunhados entre eles e os Estados Unidos, antes da invasão. Nada surpreendente ainda, a adesão da Rússia ao “bloco europeu” no Conselho de Segurança da ONU – um estado que, como a Europa, busca se re-inserir de forma que julga mais adequada na “nova ordem mundial”, aproveitando prerrogativas institucionais tais como o “veto” no Conselho de Segurança.



As cartas estão, lentamente, às vezes contra a vontade de alguns jogadores, sendo colocadas na mesa. Os europeus, buscando construir “alternativa global” ao quase-imperial poder norte-americano. Todos os envolvidos sabem que as instituições são um “trunfo” de extrema relevância nessa disputa. A ONU, colocada no centro desse cuidadoso “xadrez” diplomático, pode auferir ganhos em termos de seu “papel” na ordem mundial em reconstrução. No momento, aguarda ela os próximos movimentos dos “jogadores”. Como todos nós, exceção feita aos “apologetas do poder”, que já sabem (ou crêem saber) todos os resultados! Aguardemos, pois, as próximas “jogadas” e descaminhos do poder no plano internacional.

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