O Brasil teve várias revoltas e insurreições depois da proclamação da República pelo Exército. Quem leu um pouco de História, sabe que Canudos foi uma das primeiras. Houve outra menores, mas não se destacaram nos livros pela gravidade e pelo tamanho da coragem e do poderio bélico dos revoltosos de Canudos, cuja saga conseguiu ofuscar todos os relatos sobre as revoltas no Brasil republicano.
Estruturada basicamente sobre as injustiças sociais gritantes e deprimentes da época, aliada a um forte sentimento religioso, a guerra de Canudos explodiu no sertão baiano, durante o governo de Prudente de Moraes, o qual sem nenhuma cerimônia contemplava os grandes fazendeiros com enormes áreas de terras, no intuito exclusivo de plantarem café. Era o assentamento rápido e eficaz dos poderosos no campo, pela expulsão dos pobres, donos de pequenas áreas.
Naqueles tempos, até certo ponto ingênuos, não se conheciam com mais técnicas, mesmo próximas às da engenharia agrônoma de hoje, os lugares mais adequados além de São Paulo, Rio e Minas para o maior crescimento do plantio de cafeeiros. Sabia-se que, com o café, o dinheiro chegava rápido, mas os espaços iam se apertando também com rapidez. Era mais ou menos o que ocorre hoje com relação à soja, cuja adaptação às diversas regiões vai se confirmando. Da mesma forma, também os poderosos de hoje recebem gordas subvenções agrícolas, através dos bancos e principalmente dos diversos governos, que passam pela República, no intuito de adquirirem máquinas agrícolas e áreas enormes de terras para o plantio da soja, cujo investimento, a exemplo dos bons tempos do café, tem retorno mais do que certo.
Caracteriza-se em nosso país como sempre a monocultura e o objetivo claro de se obter renda em excesso para alguns, em detrimento de uma agricultura diversificada e socialmente mais útil. Poucos ganham muito e não geram os empregos proporcionais ao ganho. Já os rejeitados pela sociedade, em razão da pobreza, não conseguem nem uma chácara de quinhentos metros quadrados para o plantio do necessário e aplacarem a fome. Pelo menos até hoje tem sido assim, desde o descobrimento. Como se a pobreza fossem um crime a merecer odiosos castigos.
O mesmo sentimento que tem hoje quem passa prementes necessidades é tal e qual o sentimento daqueles que se aliaram ao Antônio Conselheiro e construíram Canudos. Com a agravante da histeria religiosa e a miséria sem precedentes na história da humanidade. Se esta mesma miséria convive e vai conviver com a maioria dos brasileiros, como sempre ocorreu, não teremos apenas uma Canudos. Virão outras e outras. Claro que com outras nomenclaturas. Se não for o José Rainha serão outras pessoas, outros líderes. Canudos não está morta. Nem as batalhas intermináveis por mais de três anos, o eco dos canhões em meio às caatingas, nem a degola de milhares de velhos, mulheres e crianças, que as elites de hoje não querem relembrar, conseguiram matar Canudos. Ela dorme um sono latente, na riqueza de detalhes euclidiana, na própria solidão do escritor, que era uma pessoa alegre quando partiu para os sertões e voltou, encarnando outra personalidade cabisbaixa e deprimida pelo que viu e ouviu.
Passaram-se mais de cem anos do conflito de Canudos e as coisas não mudaram nada. A questão fundiária ainda é basicamente a mesma. Há uma sensível melhora quando o proprietário rural consciente faz no campo o papel de agricultor, industrial e comerciante, o que chamam hoje de "agronegócio". Porém, isso ainda é algo nascente e não tem espaço para os trabalhadores rurais sem recursos. Pela via legal, jamais uma pessoa sem recursos, mesmo sendo um bom profissional rural, conseguirá um pedaço de terra. O tempo tem comprovado isso. Daí a certeza do MST de que terra para pobre somente com luta, mesmo estando Lula hoje no poder. E para quem tínhamos a esperança de um Brasil bem melhor com ele, cada dia nos decepcionamos porque não quer, de jeito nenhum, descer do palanque.
Ninguém se lembra mais da Revolta do Contestado, lá no sul, entre Santa Catarina e Paraná. Foi uma segunda Canudos com os mesmos propósitos: terra para plantar. Teve início um ano antes de explodir a Primeira Guerra Mundial na Europa, em 1914. As notícias daquele continente obliteravam as informações sobre a revolta do contestado. Então, o governo da República deitou e rolou sobre os camponeses, massacrando-os de forma terrível, inclusive com os mesmos carrascos degoladores de Canudos. Milhares foram mortos.
Lutar pelo direito de viver melhor é chamado hoje de cidadania. A verdade é que a cidadania no Brasil pode ser questionada. Depende de quem está exercendo essa tal cidadania. Se for pobre será sem dúvida exterminado. Mas, oshomens e mulheres que lutaram e lutam hoje como ontem podem não ser lembrados em suas respectivas épocas. Serão, entretanto lembrados no futuro. Assim como hoje é lembrado Antônio Conselheiro e sua plêiade de heróis sem capas e sem espadas, com seus rostos e seus nomes incritos na épica narração de Euclides da Cunha.
Daí a nossa certeza absoluta de que é mais fácil um burro galgar um telhado de uma casa do que a reforma agrária, tão badalada por tantos governos, tornar-se uma realidade no Brasil.
(Jeovah de Moura Nunes)
(publicado em vários jornais do interior paulista e do nordeste)