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Artigos-->Esquerda e Direita, obsoletas, na Política pós-Moderna -- 04/10/2003 - 23:06 (Carlos Frederico Pereira da Silva Gama) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Jean-Paul Sarte afirmou de certa feita: “O Inferno são os outros”. Estava certo, no tocante à dicotomia Esquerda-Direita que ainda é revestida de prestígio nas análises da Política, em suas diversas dimensões. Vejamos: tanto Esquerda quanto Direita, quando não estão no poder, tratam de lançar aos quatro ventos prédicas da iminente chegada do Apocalipse. Estaríamos vivendo o pior dos tempos e tudo deveria mudar, pois tudo caminha para o abismo (se lá já não chegamos)! Uma vez no poder, entretanto, o mundo deixa de ser problematizado para esquerdistas e direitistas. Ao invés do “fim dos tempos”, tudo se torna “uma questão de tempo”. Mas, e “os outros”?



Ao invés de seguir o conselho da rainha francesa Maria Antonieta nas vésperas da Revolução de 1789 e irem “comer brioches”, o restante das populações, vivencia as agruras do dia-a-dia, para além dos rótulos e parvoíces de facção. Grupos mais e menos organizados lutam por seus interesses, em todos as dimensões da Política. O tempo dos embates sociais que rege tais processos não é o dos profetas apocalípticos nem tampouco dos tecnocratas otimistas. E o tempo, senhor da razão, nos conduz a constatações interessantes sobre “o estado de coisas” político. Tomemos, por exemplo, o cenário político brasileiro.



O governo Lula, a rigor, não é nem muito pior, nem muito melhor, que o governo pregresso de FHC. Saltam aos olhos as flagrantes similaridades entre os governos citados: das propostas desfiguradas no Congresso passando pelas nem tanto diversas táticas de “convencimento” de parlamentares para votá-las, chegando ao prestígio que ambos desfrutaram no plano internacional (especialmente no tocante à ONU) e aos constrangimentos impostos pelo cenário externo na condução da Economia brasileira. Para além dos ocupantes da cadeira presidencial e de suas idiossincrasias, prevaleceram os constrangimentos maiores do cenário interno e externo, as contradições e desafios de nosso complexo Brasil (para frustração dos estudiosos políticos adeptos de análises personalistas do poder).



Daí a constatação de que ambos os governos caminharam (até onde se sabe) na corda bamba de enfrentamentos diversos para colher os frutos do possível, tanto o do presidente Phd quanto o do presidente sem diploma. Aliás, a mera ênfase dada nessa dicotomia escolar por parte de diversos analistas (de direita) é de uma infelicidade e pobreza intelectuais extremas, uma vez que esta questão nada tem a dizer sobre a superação dos estrangulamentos enfrentados por uma democracia (pós-)moderna como a nossa, tratando-se, em suma, de puro preconceito aristocrático-elitista, mal-curado resquício de platonismo em busca de um “Rei-Filósofo”. Para dizer o mínimo, a Política sobreviveu e superou em muito a problemática de Platão.



Não obstante essa constatação, utópicos de Direita e Esquerda constroem castelos nas nuvens e pintam quadros expressionistas do momento atual (com cores festivas ou tenebrosas). Enquanto isso, no complexo mundo real...Nada muda. Ao menos, para “os outros”. Os gargalos políticos perduram, como os embates. Além deles, perdura um cenário de abissal exclusão nos planos interno e global. Para muitos analistas, o fato de que “os outros” ajam dessa forma não faz diferença, uma vez que perdurem as utopias. Para esse que vos fala, entretanto, isso diz muito a respeito do mundo pós-moderno em que vivemos (mundo este que conhece bem do que são capazes as Utopias, especialmente quando entram em disputa).



Edward Carr também tem uma afirmação deveras interessante sobre a Política: a complexidade do mundo incomoda a Utopia. Para além das agruras do dia-a-dia e do caráter multifacetado do “real”, como dito por Heráclito, em constante dinâmica, a Utopia caminha em busca de soluções simples, universais, atemporais e unas para todo o conjunto da população humana. Tivemos notícia dos resultados desses “projetos totalizantes” nos últimos 500 anos – trata-se da própria tragédia da Modernidade. Bilhões de pessoas desprovidas de condições mínimas de subsistência. Miríades de culturas devastadas no altar das Utopias redutoras e de suas “verdades”. Morticínio em massa, no plano interno e nas guerras continentais e mundiais que tiveram lugar, não muito tempo atrás. Exclusão de diversas formas, perpetuada seja pela força dos ordenamentos jurídicos, seja pelas armas, seja pelo silêncio dos “livros sagrados” de cada utopia a respeito. Esquerda e Direita pouco têm a dizer sobre exclusão fundada em gênero, etnia etc. Resta-nos então a contabilidade da tragédia – decidir quantos esqueletos se acumularam nos armários das utopias modernas, de Esquerda e Direita.



Rejeito, pois, essa tarefa de “coveiro político” voluntariamente. Além de considerar fútil a “contabilidade dos mortos” entre Direita e Esquerda, estou ciente de que não há um caminho privilegiado ou único que conduza “à verdade”, tanto no plano político quanto em outras dimensões da existência humana, na pós-Modernidade. Compartilho da visão de Andrew Linklater de que não há um “ponto moral Arquimediano capaz de transcender as distorções espaço-temporais” (LINKLATER, A. (1998). The Transformation of Political Community: Ethical Foundations of the Post-Westphalian Era. Columbia, University of South Carolina Press, p.63.) para que atinjamos a verdade. Numa constatação pós-moderna, pós-totalizante, diria que, assim como os problemas, caminhos há muitos. Como diria o poeta espanhol António Machado, “Caminante, no hay camino. Camino se hace al caminar”. Não há soluções neutras, pré-fabricadas e infalíveis. Nossos embates políticos são processuais e ocorrem a partir de um determinado “lugar” dentro de um cenário pré-estabelecido. São necessárias múltiplas soluções, visando atender ao critério fundamental das diferenças, para atender a contento o “caminar” da vida política doméstica e global que, certamente, não corresponde ao “fim da História”. Essa caminhada, vale dizer, é construída na senda do pragmatismo. Não advogo, entretanto, a incomensurabilidade das diferenças, afirmando, como Thomas Kuhn, que vivemos em mundos diferentes e não podemos, pois, dialogar para além do “diálogo de surdos”. Faço minhas as palavras do filósofo pós-moderno Richard Rorty: “o progresso em direção a uma moralidade mais humana está centrado na convicção de que as diferenças entre os grupos são, em última instância, menos importantes que a experiência compartilhada da dor e da humilhação” (RORTY, R. “Filosophy and the mirror of Nature”. Princeton, Princeton University Press, 1979).



Voltemos à dicotomia moderna Esquerda e Direita. Tão digno do adjetivo “risível” quanto o projeto de fundamentalistas islâmicos instaurarem um “califado global” (agradeço ao colega Marcelo de Araújo pela menção oportuna do termo, em debate prévio na PUC-RJ) buscando reconstruir as instituições políticas (que julgam ser típicas) do tempo do profeta Maomé, são os castelos nas nuvens da Direita e Esquerda. Nossos direitistas, buscando ressuscitar os “federalistas” estadunidenses para viver no “estado mínimo” de Adam Smith. Nossos esquerdistas, por seu turno, têm como modelo (dado que a União Soviética “saiu de moda” com a queda do Muro) o socialismo “para capitalista ver” chinês e a “democracia” cubana de Fidel & camarilha. Por sinal, irônica é a constatação de que, ao mesmo tempo em que filósofos direitistas tupiniquins associam o capitalismo à felicidade humana, ecoando John Stuart Mill e Friedrich August Von Hayek, o capitalismo hodierno é mais pujante num país dito socialista e certamente não-democrático como a China. Esperemos nossos arautos liberais tecerem loas à felicidade dos chineses! Mais irônico ainda seria constatar que o capitalismo pujante dos séculos XVII e XIX, tempos da Revolução Industrial, ocorreram num cenário não-democrático (mesmo a vetusta Grã-Bretanha vitoriana, paraíso liberal, só adotaria o sufrágio universal nas primeiras décadas do século XX – menos de 30% da população desfrutava do estatuto da cidadania política previamente).



Ironias à parte, nossos caros filósofos “ilustrados” ou “engajados” poderiam deixar os escritos de outrora de lado para dar uma olhada em nosso complexo, idiossincrático e mais próximo Brasil (o que equivale a levar em consideração “os outros”). Longe de uma “tabula rasa” de matriz lockeana, ele é grassado por desigualdades sociais profundas à espera de soluções, que impactam significativamente sua capacidade de ser “algo mais” em termos de pujança econômica, só para citar uma dimensão da Política. Nenhuma nação do globo, em nenhuma época, se desenvolveu continuamente sem mitigar, pouco ou muito, suas desigualdades materiais (este foi um dos vetores da “revolução democrática das massas” no século XX, sendo o outro as lutas e movimentos sociais). Já fomos longe demais no século XX (haja vista os dados do IBGE) sem mudar significativamente, só para citar um, o problema da distribuição de renda. E, quanto a isso, nem o bolo crescido de Delfim concentrado pelos governos militares tampouco as guerrilhas do Araguaia apresentam soluções dignas do nome. Nem tanto ao Mar, tampouco à Terra. Revolução e Contra-Revolução, com suas vanguardas, muito bem sabe o século XX, terminaram irmanadas em Exclusão e tragédia para “os outros”, nas suas mais diversas formas. Esquerdistas e direitistas, via de regra, não morreram, como Sócrates, em nome de suas “verdades”. Historicamente, são “os outros” que têm o cálice amargo da cicuta vertido em suas goelas.



Em suma, temos que a tão propalada “morte do Ego transcendental” dos pós-modernos poderia ser também traduzida como o fim das dicotomias utópicas, das “verdades absolutas” em Política. O descrédito das utopias pré-fabricadas modernas aponta para a constatação de que caminhos, muitos os há – mas nem todos eles levam à Roma da “boa vida”. Esses muitos caminhos, pragmaticamente, estão sendo construídos dia a dia, alheio às querelas performáticas das facções políticas da Modernidade. Para além dos rótulos, abundam os projetos de mudança da “comunidade política”, bem como pululam interesses os mais diversos e conflitantes. O mundo futuro ainda não começou, existe em potencial (sem analogias hegelianas totalizantes, porém). Dessa forma, optar por Esquerda e Direita, nos dias que correm, equivale a rearranjar as cadeiras no convés do Titanic (expressão pioneiramente empregada, com outro sentido, por Lisa Martin & Beth Simmons, em seu artigo “Theories and Empirical Studies of International Institutions”. International Organization 52(4): p.739).



O Brasil, antes de ser o de Lula e FHC ou das facções, é o Brasil de cada um de nós – nosso veículo na vaga complexa da transnacionalização/globalização, lutando por um “lugar ao Sol” mais digno, lentamente. Um de nossos múltiplos canais numa vasta teia simbólico-material da pós-modernidade, de contínua construção e re-construção “do real” e de nós mesmos, na condição de sujeitos, agentes e atores. E, mais que nunca, repetindo o velho chavão, o Brasil “é um país plural”. Um Brasil de muitos brasis e de muitas possibilidades e problemas a serem resolvidos. Uma vez que as soluções para os mencionados problemas efetuam “cortes nevrálgicos” no tecido político que transcendem os rótulos e as panacéias modernas, nada mais justo que reiterar concluindo, assim, que Sartre tinha razão – o Inferno (pós-moderno), para Esquerda e Direita, são mesmo “os outros”!

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