A vitória de Lula : as novas potencialidades políticas da democracia de massas no Brasil.
Pedro Cláudio Cunca Bocayuva e Jorge Eduardo S. Durão (Diretores da FASE)
A vitória de Lula com mais de 60% dos votos para Presidente da República e o aumento significativo da bancada de esquerda e progressista no parlamento nacional abrem espaço para o aprofundamento da democracia no Brasil, para a construção de uma esfera pública de participação ampliada através de um novo pacto nacional e para a realização de reformas econômicas, sociais e políticas. Os limites e as possibilidades dessa empreitada estão inscritos nos modos de fazer política e na experiência acumulada ao longo dos últimos 20 anos que combinaram: as estratégias de mobilização social de classe através dos ciclos de luta grevista e reivindicação econômica, as experiências de democratização da participação política direta nos governos locais e nos conselhos de políticas públicas em todos os níveis inscritos na Constituição de 1988 (para a implementação dos direitos econômicos, sociais, ambientais, culturais, civis e políticos), a difusão de uma dinâmica organizacional e associativa de movimentos sociais de classe, de gênero, de geração, de etnias, etc; ao lado da emergência de ONG’s e entidades dedicadas aos temas mais variados de fortalecimento da atuação da cidadania, de produtores e de consumidores.
Mas esse acúmulo de forças, na sociedade civil e na sociedade política, não teria sido vitorioso diante dos limites da transição democrática e da sociedade política institucionalizada se não tivéssemos construído novas dinâmicas partidárias e novas esferas públicas e comunicacionais. Os sujeitos coletivos e o protesto social geraram redes de operação política que se manifestaram como resistência objetiva e subjetiva aos ciclos neoliberais de Collor e FHC. O processo estratégico de acúmulo de forças que operou sobre a base de ações coletivas, movimentos cívicos, ações públicas de justiciabilidade e demanda por direitos conseguiu manter os conteúdos democráticos inscritos no potencial da constituição cidadã de 1988 e no uso do voto como um instrumento massivo de pressão pela mudança. A derrocada de Collor através do seu impedimento, a luta contra a fome e as caravanas da cidadania, a manutenção das lutas sociais pela reforma urbana e pela reforma agrária, as lutas pelos direitos humanos na sua integralidade, os conflitos sociais de juventude, a luta das mulheres e dos aposentados abriu brechas na unidade do bloco no poder.
A estabilização econômica de vitória política do bloco no poder tornou-se um mecanismo insuficiente para obscurecer a necessidade de um novo rumo na economia e nas formas de redistribuição com geração de trabalho e renda. O ciclo de estabilização cobrou o preço através da crise cambial e do aprofundamento e do conflito com a dinâmica internacional de ajuste e liberalização estrutural da economia. A desigualdade aumentou no segundo mandato de FHC com os impactos da perda da base material de sustentação do padrão de inserção internacional do país, em função da vulnerabilidade diante da dinâmica especulativa, o que permitiu que a crítica social e política convergissem para a necessidade de uma nova política de desenvolvimento.
A relação entre a crise estrutural geral do modo de produção e reprodução da desigualdade se manifestou numa conjuntura institucional vantajosa para a oposição, diante da crise do bloco de sustentação governamental e numa lógica afirmativa e propositiva do PT, que buscou romper o isolamento político através da atração das forças e das posturas das posições de centro. Articular a esquerda com um discurso e uma prática de atração do centro se tornou a virtude e o limite para a construção de uma nova maioria política no país. A liderança política do PT e de Lula colocou-se dentro de uma perspectiva de atuação voltada para construir as bases de uma vitória eleitoral disputando o legado do caráter inconcluso dos compromissos sociais e econômicos que a centro-direita liberal deixou de realizar. Os discursos de campanha de FHC afirmavam que o ponto de partida seria a estabilização macroeconômica e o ponto de chegada seria a realização de uma política social de centro-esquerda, mas sua política não produziu esse resultado deixando para o PT e as demais forças de oposição uma grande brecha de atuação, que se ampliava com a crise do emprego, da violência, da corrupção e do Estado. Num quadro em que retrocediam as políticas ativas e sociais bloqueadas pela subordinação ao receituário do "consenso de Washington".
A confiança política gerada por uma articulação entre competência política, capacidade de governar e um estilo de comunicação social quebrou ao longo do processo eleitoral preconceitos em relação ao papel de Lula como um operário estadista, surtindo os efeitos esperados de afirmação da sua liderança. As manobras politicas de isolamento e as tentativas de criar novas candidaturas que implodiram ou se revelaram limitadas, por força do seu artificialismo, permitiu que o esforço de construção de alianças e o corpo a corpo com diversos setores sociais alcançassem um resultado surpreendente. O diálogo direto a transparência no estabelecimento de acordos e o convite para a negociação ganharam força. A figura de Lula, negociador e promotor do pacto sócio-produtivo, foi ganhando força, ao lado da aliança com setores do empresariado produtivo e a partir da definição do candidato a vice-presidente José Alencar (do Partido Liberal, empresário do setor têxtil).
A capacidade de superar adversidades como a especulação através da crise cambial, a capacidade de se colocar diante das provocações e problemas da negociação externa como o novo acordo com o FMI, a capacidade de afirmar a necessidade de uma estratégia de soberania sem ruptura de contratos, combinou-se com um estilo político de "paz e amor" sem perda da presença direta, de Lula, em todos os cantos do país reafirmando os compromissos básicos e esclarecendo os limites e o ritmo para a realização de reformas. Ambivalências e tensões foram projetadas para adiante como questões públicas que serão disputadas dentro do governo, nos espaços institucionais e públicos que se abrirão a partir mesmo dos compromissos afirmados na primeira hora da vitória.
Fome zero, reforma agrária pacífica, crédito popular, cooperativismo, políticas ativas de desenvolvimento, pacto sócio-produtivo, compromissos com a integração regional, disputa soberana nos marcos dos acordos comerciais, afirmação de uma posição de paz no sistema internacional, são temas definidos nos novos compromissos do governo eleito em dois turnos e que alcançou mais de 50 milhões de voto contra o candidato do governo.
As tensões e limites do candidato oficial e o afastamento do próprio FHC da campanha acabaram acelerando a noção da urgência de uma transição e fortalecendo uma disputa entre a "pressão do mercado" e a urgência de definições das bases para novas políticas. Os métodos de articulação e interlocução política e a ação dos novos porta-vozes do PT se abrem em várias direções, na proposta do Conselho Econômico Social, na formação de uma equipe técnica que não se renda aos desígnios do mercado, na negociação com as forças de apoio do
primeiro (PT, PCdoB, PL, PCB, PMN) e do segundo turno (PPS, PTB, PDT e PSB) na negociação interna com as correntes do PT, na busca de um diálogo para medidas de sustentação e prioridades para o novo governo, junto a FHC e junto aos setores do velho bloco no poder que tiveram diferentes atuações ao longo das eleições.
O processo político brasileiro apresentou uma força centrípeta de convergência para a figura do Presidente Lula, que foi muito além de um esforço de convergência do PT para o centro, como mostram os apoios dos ex-presidentes Itamar Franco (PMDB), José Sarney (PMDB) e mesmo de Antonio Carlos Magalhães (PFL), lideranças de centro e de direta que romperam com seus partidos, cujo apoio acabou por ser uma manifestação do deslocamento brutal de forças que a sociedade brasileira foi assistindo. A operação política do ano de 2002 acabou unificando os vários sinais de mudança dentro dos limites e possibilidades de uma estratégia republicano social com bases no programa inscrito na constituição de 1988. Não serão poucos as contradições e os desafios para imprimir um ritmo para as reformas esperadas pela população, não serão pequenos os custos das alianças e acordos políticos realizados ao longo do processo eleitoral, mas o compromisso do pacto social que se pretende está inscrito dentro do ciclo geral de radicalização democrática que tem marcado a sociedade brasileira e, por isso se abre agora um ciclo marcado pela esperança.
Um grande desafio para mudar o Brasil abrindo caminho para um projeto nacional de uma sociedade mais justa e solidária é o de enfrentar um cenário internacional que talvez seja o cenário mais adverso que o capitalismo mundial já ofereceu aos países da sua periferia. Está evidente que não faz parte da estratégia americana facilitar em nada o desenvolvimento do Brasil na medida em que este constitui um possível contrapeso à sua influência hegemônica no continente e que a economia brasileira é mais competitiva do que complementar à economia norte-americana. Os primeiros passos do presidente Lula na cena internacional, antes mesmo de sua posse, refletem essas contradições e a delicadeza da situação. Com intencionalidade explícita Lula fará a sua primeira viagem ao exterior, depois da sua eleição, a Buenos Aires, com o objetivo de marcar renovada ênfase no projeto do Mercosul que precisa ser elevado à condição de um verdadeiro mercado comum. Lula deverá aprofundar o compromisso já assumido pelo presidente Cardoso de se empenhar ao máximo na mobilização do apoio internacional para a superação da crise Argentina. Ainda em dezembro, Lula se encontrará com George Bush, encontro este já precedido do anúncio do endurecimento das negociações comerciais entre os dois países, na perspectiva de uma queda de braços em torno da ALCA que, nos termos atualmente propostos pelos EUA – inclusive porque o Congresso norte-americano com a TPA (mecanismo que substitui a “fast track”) deu pouca margem de negociação para o governo Bush -, dificilmente chegará a uma conclusão até 2005.
A afirmação de uma posição de paz no sistema internacional – na tradição da diplomacia brasileira - também não é um objetivo tranqüilo, pois a neutralidade frente ao conflito com o Iraque e, sobretudo, a eventual busca de uma solução negociada para o conflito colombiano ou a resistência do governo brasileiro à militarização dos conflitos na América do Sul e à crescente presença norte-americana no subcontinente tendem a ser encaradas pelo governo Bush como posições quase hostis na lógica imperial segundo a qual “quem não está comigo está contra mim”.
Finalmente, não podemos ignorar as expectativas criadas na América Latina a partir da eleição de Lula, não apenas do ponto de vista do reflexo imediato (e certamente limitado) que poderá ter sobre as eleições previstas para o futuro próximo em outros países da região, mas sobretudo pelos desafios para o governo Lula que derivam da necessidade de estreitar os vínculos com outros governos latino-americanos sem cometer o erro de desconhecer as profundas diferenças entre os processos políticos internos – por exemplo entre o Brasil e a Venezuela -, o que poderia levar à subestimação da importância extraordinária que tem, no caso brasileiro, a ampla e consistente base para a governabilidade decorrente da consolidação do processo democrático.