O assassinato brutal de um casal de namorados, friamente planejado por um menor, chocou o Brasil, despertando reações passionais, bem como a defesa da adoção da Pena de Morte e da redução da idade penal mínima de 18 para 16 anos.
Sou visceralmente contrário a estas medidas. Não faltando argumentos para tal, lançarei os mais óbvios.
Aos que criticam os Direitos Humanos por serem usados para proteger “sub-humanos ou não-humanos”, bandidos sanguinários desprovidos de qualquer humanidade, respondo com o caso dos Estados Unidos.
Esse país tem uma das mais rigorosas legislações penais do mundo. A Pena de Morte existe em boa parte dos estados que compõe o país, bem como a idade penal mínima é menor do que a existente no Brasil. Não surpreendentemente, os Estados Unidos têm a maior população carcerária do mundo, bem como, exceção feita à sanguinária ditadura chinesa, são o país que mais executa prisioneiros.
Uma análise desprovida de sofisticação revela que 70% da população carcerária estadunidense são negros e 20%, hispânicos (proporção muito superior.à participação dessas etnias no conjunto da população daquele país). As proporções são ainda maiores, referentes aos condenados à Pena Capital.
Ou seja, negros e hispânicos seriam, em geral, “menos humanos” ou “mais sub-humanos” do que os demais? Teriam eles tendências inerentes ao crime?
Dessa forma, a menos que confirmemos os argumentos racistas de neo-hitleristas (alguns mal-disfarçados racistas de direita decerto o farão), teremos que considerar o crime como um fenômeno eminentemente SOCIAL. Constatação que só ganha consistência quando verificamos que as etnias que predominam nas cadeias são especialmente aquelas mais desfavorecidas socialmente. Curioso, ainda, pensar que os Estados Unidos, não obstantes o país mais rico de todo o globo, têm índices de violência alarmantes quando comparados com nações européias com legislações mais brandas. A Pena de Morte não se provou, em nenhum quesito, uma solução eficiente, tampouco desejável senão como escoadouro tétrico das paixões exacerbadas de uma sociedade dividida e desigual. E no Brasil? O quadro só assume feições mais dramáticas.
Chega a ser piada contrapor, em nosso país, os Direitos Humanos aos “humanos direitos”. 95% dos presos no país pertencem às classes ditas desfavorecidas, aquelas para as quais pobreza e miséria não são slogans em programas governamentais. No ato de sua prisão ou imediatamente após esta, esses 95%, via de regra, têm sua integridade física e psíquica violadas brutalmente. Relatórios da ONU e de ONGs são quase redundantes na confirmação do reinado da tortura, das chacinas, dos estupros na máquina da segurança pública brasileira, sem falar nas propinas, na corrupção desenfreada e no acobertamento vantajoso de atividades criminosas que também lá tem lugar.
Nesse contexto, assume feições tragicômicas a defesa da redução da idade penal, bem como da Pena Capital. Temos o duvidoso “privilégio” de contar, como no futebol, com verdadeiras “categorias de base” para formação de criminosos, dado que uma das instituições centrais de nosso “sistema de reabilitação” de menores, as FEBEMS, são verdadeiras penitenciárias em miniatura, que reproduzem passo a passo a lógica da exclusão social e do desrespeito dos Direitos Humanos, moldando no adolescente pobre de hoje o criminoso de amanhã (isto é, se este sobreviver a alguma provável chacina quando for “devolvido” às ruas). Nesse sentido, o debate sobre a redução da idade penal assemelha-se à determinação do sexo dos anjos. Quanto à Pena de Morte, esta tem lugar diariamente, à revelia dos olhos da população (socialmente privilegiada) e em números abrumadores. Trata-se de um mecanismo de “eliminação dos indesejáveis”...
No campo político, o desrespeito aos Direitos Humanos no Brasil deita raízes históricas deveras extensas. À parte nossos 500 anos de imorais e flagrantes desigualdades sociais que negam por completo um componente fundamental dos Direitos Humanos (Direitos Sociais – alimentação, moradia, emprego etc.) à imensa maioria da população, os muitos períodos de autoritarismo civil e militar se notabilizaram pelo desrespeito aos direitos civis e políticos que também conformam parte dos Direitos Humanos. Paralelamente à institucionalização da desigualdade social, institucionalizaram-se as práticas da tortura e do assassinado, no aparato de segurança estatal, bem como a idéia de que o crime é privilégio dos pobres e a segurança, dos ricos.
Tal clivagem social aflora, de tempos em tempos, de forma travestida quando um evento isolado é apropriado pelos estratos dominantes para acobertar as muitas falhas de uma engrenagem social desgastada, intolerável, colocada a serviço de uma minoria e carente de mudanças profundas. Um crime de impacto torna-se “bode expiatório” para a manipulação consciente do imaginário social na direção do aprofundamento do sistema vigente, tornando invisível o restante do quadro social, mais complexo e mais dramático. A guinada rumo à repressão (típica de sociedades nas quais o indivíduo torna-se um escravo das instituições políticas – caso da China, Cuba e da ex-União Soviética) torna-se o brado das massas e o alimento do populismo fácil, não somente mas inclusive dos egressos dos regimes autoritários de outrora. Ao invés da Segurança ser vista como uma política pública, torna-se instrumento para o esvaziamento da esfera pública de ação política, contribuindo com a exclusão social (e no limite, física) de muitos a quem deveria servir. O crime, tornado espetáculo para as massas, é esvaziado de seu conteúdo socialmente complexo e denunciador, que clama por soluções. A midiatização do crime é perpetuada como mecanismo de perpetuação dos sistemas de poder (inclusive no plano simbólico) vigentes e impede, no limite, a eliminação dos elementos que ensejam o próprio crime.
Em suma, curioso notar que as elites que negam ao restante da população quase a integridade do que se têm por Direitos Humanos justificarem, indiretamente, tal curso de ação moldando os criminosos como “seres sub-humanos ou não-humanos”, numa tonitruante profecia auto-realizável que sempre traz à tona o clássico epíteto “Você sabe com quem está falando?” característico de nossas elites, articulado por Roberto Da Matta. Irônico, ainda, notar que a guinada repressiva irmana nossos direitistas de plantão, egressos ou não dos regimes autoritários de outrora, com o totalitarismo maoísta-leninista-fidelista que ainda vige em alguns pontos do planeta, na defesa da eliminação física dos criminosos ou do reforço da repressão, tornando crescentemente mais jovem nossa população criminosa.
Este é o simulacro de solução que é contraposto à mudanças sociais de vero, no curto, médio e longo prazo, relacionadas com a progressiva ampliação da esfera pública de ação política (cidadania) e com o efetivo respeito aos Direitos Humanos (civis, políticos e sociais), reformando profundamente nossas instituições, não somente de Segurança. Torna-se mister pensarmos em que país desejamos viver – numa sociedade governada midiaticamente pelos gêmeos do medo e da exclusão, em benefício de poucos ou numa sociedade mais justa, humana e segura para todos, na qual a Política seja um vetor de aprimoramento das relações sociais e não um instrumento de desmantelamento destas. No primeiro caso, o assassinato ritual dos bodes expiatórios, perpetuando o medo e a exclusão ad infinitum, bem como o deleite de poucos privilegiados. No segundo caso, estaríamos debatendo a reformulação de nossas instituições, bem como ativamente defendendo a devida condução dos processos, inquéritos, punições adequadas aos criminosos e a tentativa de reabilitação destes no longo prazo – promoção da cidadania e dos Direitos Humanos não estão relacionados com a impunidade que vige em nosso país. Antes, muito pelo contrário!