“Essa poesia que está aí me parece muito fechada em si mesma, muito ilhada. Parece coisa de autista. Muitos caíram na armadilha da metalinguagem e não sabem como sair daí”, disse Affonso Romano de S’Anna. É o caso de um bom número de poetas da geração de Wanderson Lima e da geração anterior, digo eu. Não é o caso de Wanderson Lima, nascido em 1975, na cidade Valença do Piauí, formado em Letras, professor de língua e literatura.
A coisa, a discrepância entre matéria e forma vem de longe. O bom poema é aquele que ajusta o dito ao como foi dito, tal como a mão se ajusta à luva. E há que dizer alguma coisa do mundo, interpretando-o, sentindo, fazendo que outros sintam também. O mundo que não é o real mas o que seria. A poesia refugiou-se na universidade e a universidade perdeu a sua universalidade que é, em suma, incluir o local, a aldeia, o povo.
Tomando-se o livro de estréia de Wanderson Lima, “ESCOLA DE ÍCARO”, Teresina, 2000, encontra-se um lírico não muito diferente dos líricos anteriores, das outras gerações. A diferença é que ele se esforça para renovar, resiste ao já dito e ao já feito, procura meios de expressão bastante pessoais: “O Delírio de Hebe”, “Duas Promessas de Chuva e Sol” e “Poema para o Ratinho que Mora Comigo” são efetivamente peças bem construídas, sem sair da linha que me parece se propõe e vai alcançando, uma linha que estabelece elos com as outras gerações, sem contudo descuidar-se da reinvenção, da mais autêntica criatividade. Algumas vezes, entretanto, ao borboletear por formas estranhas, escolhendo vocábulos chocantes, para acompanhar a moda, então a emblemática dissolve os enigmas. É que o Autor ainda não está liberto para o discurso que pretende, caindo em lugares comuns e enumerações (vide poema “Homem do Sertão”). Outros exemplos: os sonetos pós-modernos, talvez apresentados inadvertidamente como nova invenção. Encontram-se o “ranger de dentes” o “cansaço do corpo”, “o peso da hora”, “pálida sombra”, embora que de forma eventual no percurso de “ESCOLA DE ÍCARO”, justificável num primeiro livro, ainda não homogêneo, compacto, o que viria a alcançar no seguinte, garantindo um lugar de destaque em sua geração. Peças como “Canção” – e há inúmeras iguais a ela, em “MORFOLOGIA DA NOITE” – comprovam o que afirmo. Por isto peço licença ao leitor para recitá-la: “Vai canção-de-dor / pousar nalguma pedra./ Vai esta canção-de-dor / pousar nalgum deserto. // Vai esta canção-de-dor / cheia de palavras / suja de metáforas / aumentar o mundo.// Vai, canção-de-dor, / a um coração sem nome / saciar a fome / de pãolavras.// Vai, canção-de-doce.” Também “Dies Nefastus”, “Entre Pregos e Sonhos”, “Canção do Cansaço” deveriam ser mostrados, se houvesse aqui espaço.
Pode-se afirmar, enfim, sem medo de erro, que “MORFOLOGIA DA NOITE.” é um livro em que o poeta realiza as pretensões que estariam apenas esboçadas na obra anterior. Sem deixar de ser um lírico, sem sentimentalismos nem adocicamentos, Wanderson Lima vai versando a vida, o amor e o horror, num discurso poético que o aponta para um futuro já começado: “O homem devassa a vida de Deus / e machuca o dedo // o homem sonha a eternidade / com uma flor na boca.”
Que belos versos fortes, demonstrativos de um forte poeta!
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*Francisco Miguel de Moura é escritor, membro da APL e do CEC.