Rir é um troço muito sério. Em sua obra “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento”, o teórico russo Mikhail Bakhtin chamava atenção para as profundas mudanças que os autores do renascimento como Rabelais, Cervantes e Shakespeare trouxeram à história do riso. Segundo Bakhtin, e permitam-me citá-lo: “A atitude do Renascimento em relação ao riso pode ser caracterizada, de maneira geral e preliminar, da seguinte maneira: o riso tem um profundo valor de concepção de mundo, é uma das formas capitais pelas quais se exprime a verdade sobre o mundo na sua totalidade, sobre a história, sobre o homem; é um ponto de vista particular e universal sobre o mundo, que percebe de forma diferente, embora não menos importante (talvez mais) do que o sério; por isso, a grande literatura ( que coloca por outro lado problemas universais) deve admiti-lo da mesma forma que ao sério: somente o riso, com efeito, pode ter acesso a certos aspectos extremamente importantes do mundo”(1). Rabelais é um dos exemplos deste riso sem peias do Renascimento, um riso que, ligado, por outro lado, a tradições populares e eruditas antiqüíssimas, guarda uma dilacerante força subversiva; através do cômico, do descontrole, da inversão do alto e do baixo, entrevia-se uma espécie de igualdade que era vedada na reprodução social cotidiana, com suas hierarquias e constrangimentos. A inversão de alto e baixo talvez seja um dos aspectos principais do potencial subversivo do riso de Rabelais, escritor que, na décima que precede Gargantua, retomando a tradicional formulação do De Anima de Aristóteles, segundo a qual o homem é o único ser vivente que ri, pôde assim expressar-se: “Melhor é de risos que de lágrimas escrever / porque o riso é a marca do homem”(2). E as formulações irônicas e cômicas presentes em tantas obras de Karl Marx não apontam também para esta grande afinidade entre riso e crítica, riso e subversão?
Eichmann em Jerusalém talvez tenha sido um dos livros mais polêmicos dentre os escritos na segunda metade do século XX. Sua autora, Hannah Arendt, em uma entrevista a Günter Gaus, assim expressava-se a respeito do processo de composição deste livro eminentemente crítico: “De minha parte, estava efetivamente convencida de que Eichmann era um palhaço: li com atenção seu interrogatório na polícia, de 3.600 páginas, e não poderia dizer quantas vezes ri, ri às gargalhadas! E quanto a isso, não posso fazer nada. Mas uma coisa é certa: provavelmente eu também teria rido três minutos antes de minha própria morte. E nisso reside, para você, o tom. O tom é certamente irônico. Isso é verdade”.(3)
Em 1516, aparecia o livro de um tal “Clarissimo”, cujo título era o seguinte: “Libelus vere aureus necminus salutaris quam festivus
de optimo republicae statu deque nova insula Utopia”. O mesmo livro que discorria a respeito de um assunto sério (de optimo republicae statu) era também um livro “festivus”: a Utopia de Thomas Morus.
Portanto, seja como um descanso ao espírito (função já lembrada pelo monge dominicano Tomás de Aquino) , seja como uma forma de distanciamento e crítica (Arendt, Marx, Rabelais etc), o riso é uma coisa muito séria. E, segundo um outro autor, desconhecido do mundo e conhecido da Usina, o “riso é sempre sintoma de vida inteligente, bem como sinal mais do que evidente da proximidade ameaçadora da truculência sempre por irromper. Mas, para essa caterva que tomou conta da esquina, inaugurada por aquele que nela se instalou, já de chegada, como um monumento inaugural, paladino de tudo isso que, depois dele, veio acontecendo em nome do "mercado", a palavra inteligência só tenha valor adjetivo, claro, bajulatório”. O autor dessas linhas: ZPA.
E o que dizer agora que ZPA está impossibilitado de publicar suas sátiras ? A cada tentativa de publicação, o autor de Teatro do Minuto, U-zine e de tantas belas traduções recebe em seu monitor o seguinte aviso: “assinatura bloqueada”. No entanto, ZPA não é assinante da Usina. Descartando-se a hipótese de mera falha no sistema, sobra-nos a desconfiança de que o site pretenda manter em seus quadros apenas escritores assinantes. Trocando em graúdos, é a morte do riso na Usina. E não terá sido essa mensagem também profundamente cômica? Vejam só o ridículo até constrangedor de se chamar a autoridade de Bakhtin, Arendt e Rabelais para discutir a situação de um site brasileiro de quinta, entre cujas características principais certamente não estão o talento, a inteligência e a qualidade. Depois da deserção geral do talento, será que também o riso nos abandonará? Em vez de sermos involuntariamente ridículos como o autor dessa mensagem, que tal trazermos o veneno do riso a nossa consciência, tirando dele sua força reativa e crítica? Peço – e outros tantos pedem comigo – a volta de ZPA. Se é que o pedido de um autor não-assinante ainda vale alguma coisa...
(1) Bakhtin, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais, Ed. Hucitec, 5a Edição, São Paulo/SP, 2002, 57.
(2) Op. cit, p. 59.
(3) Arendt Hannah, A Dignidade da Política , Ed. Relume Dumará, 3a Edição, Rio de Janeiro/RJ, 2002, p.137.