Ele, dois casamento desfeitos, sem filhos, charmoso, nem feio nem bonito, meio fora de forma, sedutor todo o tempo, duas carteiras de Holywood por dia que estranhamente amassava quase as destruindo, antes do primeiro cigarro.
Tinha aprendido assim com um primo nordestino, contemplativo, ardoroso fã de Fernando Pessoa, de touradas e Passo Dobles, sem nunca ter ido à Espanha, apenas pelas leituras de Hemingway e os poemas de Lorca.Um enfarto quase matou esse guru da adolescência.Precisava parar de fumar, afinal não tinha mais aquela saúde animal que resistia a todos os porres, de rum e cachaças especiais e a toda nicotina possível de se tragar em 24 horas.Engraçado, antigamente cigarro não matava, tudo que é bom faz mal, quase nada faz bem, fora do padrão atleta, asceta perfeito.Detestava caminhar, era um cultivador de gente, um voiyer da alma humana que, aliás, considerava a obra prima da natureza.
Madeleine Peyroux era uma cantora francesa,americana ,talvez ou canadense , semi-obscura, nos anos sessenta,com ritmo e voz suaves, inigualáveis .Uma musa que permaneceu da juventude, sua companheira de solidão, junto com os chiados dos antigos vinis que insistia em ouvir, por nunca comportarem silêncios absolutos.Vinil era o final da evolução da tecnologia em som, o resto era continuação, o CD destruía sua ligação com o artesanal da música, do autor, do intérprete. As agulhas para seu toca discos eram cada vez mais raras, tinha-as estocadas.Compunha como e para Madeleine.
Estudara sociologia na Nacional, in na época, revolucionária nos anos de Jango, resistente na ditadura.Não tinha partido para o Araguaia com amigos, não por falta de coragem, por preguiça mesmo, medo do desconforto, também.Esteve na preparação de um ou outro seqüestro ou assalto, mas não suportava a solidão da clandestinidade.
Como era possível a vida sem os filmes do Paissandu, e o papo posterior no boteco ao lado?Como era possível a vida sem uma Brahma gelada.Afinal, porque a Brahma casco escuro era melhor que a de casco claro? Diferente era.Paulinho um cara da turma, com olhos fechados separava em 10 copos os cascos, escuros dos claros.Como era possível? Aliás, por que uma cerveja brasileira tinha o nome de um Deus indiano?Ninguém sabia.
Permanecia desde aquela época, à esquerda, mais pelos ideais de liberdade, justiça e, fraternidade, que por qualquer outra coisa, votava sempre em Lula e no PT, a não ser que algum conhecido fosse candidato.
Na política e na vida havia os que admirava, mas não gostava, os que gostava, mas não admirava, os que gostava e que admirava e principalmente, os de quem não gostava nem admirava.Estava naquela fase que não admitia novos amigos nem novos inimigos, não lhe importavam muito os outros, era feliz a seu modo, com as depressões ocasionais.Sexo já não era uma obsessão, passava bem sem, nem mesmo se cobrava.Começara a escrever alguns contos eróticos, mas era difícil ser original nessa área.
Na música não, as fazia diferentes, suaves, doces e pequenas, cool, tinha sido esse seu destino.João Gilberto e Chet Baker seus ídolos, sabiam tudo, mas não conheciam a voz rouca e as divisões de Madeleine, como ele.
Compunha pouco e bem, os amigos adoravam os finais de festa com seu violão afinado, sua voz pequena, suas músicas, que todos entoavam juntos, em coro, quase uma prece uníssona.Sempre era muito bom para todos, unia-os.
Ana e Gustavo faziam parte dos amigos mais próximos, Ana apresentou-lhe a amiga de tempos idos, que voltara ao Rio.
Ela, Bertha; um casamento, viúva, não tão moça, mas no máximo, madura, classuda, bonita, culta, elegante, rica, muito rica.
Fora casada com Rudy, aliás, Rudolph von Hoestch, alemão de origem e fortuna duvidosas, que aportara pelos lados do Paraná, depois da guerra.Multiplicou a fortuna com rede de supermercados.Conheceu a maravilhosa Bertha, da colônia alemã do estado e casaram-se.Nunca tiveram filhos, aproveitavam a vida no chamado jet set internacional.Até que um dia numa praia do Caribe ou em Sumatra, Rudy saiu para passear e nunca mais voltou.Falou-se em vingança tardia do Mossad, suicídio, simples afogamento,enfim qualquer coisa,pois nem o corpo nem Rudy jamais foram encontrados.
A bela Bertha desfez-se de todos os negócios e passou a tentar, sem sucesso, gastar sua interminável fortuna.Voltou para o Rio e procurando os amigos, encontrou aquela figura, frágil, gentil, de canto, fala e música doce.Ensinou-lhe e aprendeu muito, afinal Rudy era um poço de ortodoxia, inclusive na cama.Bertha acendera o amante e o poeta adormecidos.Tornaram-se necessários um ao outro.Cativaram-se.
Cada vez mais próximos, fizeram sua primeira viagem juntos num cruzeiro pelo Báltico.Maravilhados ficaram com tudo, sobretudo um com o outro.Numa segunda vez, como era bom ter dinheiro,pensava ele,ficaram entre a Turquia e a Grécia por quinze dias.Numa noite, tocou seu violão e cantou suas músicas,num bar do navio , suavemente, como Madeleine lhe ensinara.Nunca mais deixou os barcos, viajando e cantando por todos os oceanos conhecidos.Sua rainha o acompanhava de longe, encontravam-se quando e onde queriam,sempre com o frisson do reencontro,milhares de milhas passadas.
O emprego público na Biblioteca Nacional ficou para trás.Os amigos, via-os no verão quando um dos barcos passava pelo Brasil em direção à Patagônia.
Bertha não era um porto, o que seria incoerente para um, agora, homem dos sete mares.
Bertha era também um barco, que por amor o seguia, assim como ele seguia o verão, seguindo o sol.
ANTONIO LUIZ RAMALHO CAMPOS-BRASILIA ,NOVEMBRO /2003