No dia seguinte, sábado, às dezesseis horas, Christine já nadava com suas amigas e namorados numa piscina natural de águas límpidas e correntes, apesar de mansas e repletas de peixes, na região do Pantanal. Chegaram pela manhã num vôo fretado. O fim de semana de Christine prometia.
Luciana voltava novamente do trabalho para sua casa. Havia labutado desde cedo no corte de cana. Estava "quebrada". Doíam-lhe as pernas. Não por causa do trabalho, mas pela gravidez já em seu sexto mês, que ela ardilosamente procurava esconder do "gato", senão não trabalharia. Sua irmã e suas amigas davam-lhe apoio. O pai da criança desaparecera, sem deixar vestígios.
Domingo, dezesseis horas. Christine com suas amigas conversavam e descansavam depois de uma noitada e parte do dia de muita farra com sexo e "comes e bebes" à vontade. Aproveitavam agora para pegar um bronzeado sob o forte sol mato-grossense. Seus namorados bebiam uísque uns, cerveja outros, enquanto assavam uma picanha, naturalmente assessorados por três garçons, que faziam as gentilezas do misto de hotel cinco estrela, estância e casa de repouso.
Luciana, às dezesseis horas do domingo, estava ainda curtindo as últimas horas livres, aproveitando para limpar a casa toda. Recebia a ajuda da irmã. Findado o serviço, foram conversar e beber um pouco de pinga, enquanto fumavam e falavam de seus problemas. Depois de uma janta com as sobras do almoço assistiriam TV na casa da vizinha e iriam dormir, porque a segunda-feira já se prenunciava.
Segunda, dezesseis horas. Christine embarca no jatinho de volta ao Estado de São Paulo, juntamente com seu namorado, suas amigas e os namorados das amigas. Estavam felizes. Porém, precisaram de mais dinheiro, e o pai de Christine enviou mais dez mil reais via cartão.
Naquela mesma hora, Luciana deu a última facãozada no feixe de cana. Estava exausta e enegrecida como sempre em suas roupas, metade de homem e metade de mulher. Seu chapéu, equilibrado por um lenço rosa, destacava seu rosto magro, sofrido, necessitado, em cujo brilho de seu olhar podia ser vista a desesperança de seu futuro: negro como o carvão das palhas de cana que aderiam ao seu corpo.
Os alegres e tristes fatos contrastantes um com o outro nesta crônica, bem como suas personagens, são fictícios. Quaisquer semelhanças serão apenas meras coincidências. Entretanto, as "Christines" da vida nem sempre sabem que o luxo e as extravagâncias delas são sustentados pelas heróicas "Lucianas", por ganharem um salário vil, exíguo, vergonhoso e o mais escravizante que o mundo já viu, desde a época do império. Podemos afirmar, sem medo de errar, que a evolução social no Brasil até agora foi apenas a extinção do chicote, também chamado de relho, largamente usado no Brasil até meados do século XX.
(Jeovah de Moura Nunes)
publicado no jornal "Comércio do Jahu" de 23.10.2003