RESUMO: Viver solidariamente, trabalhar, compartilhar alegrias e tristezas, fomentar relacionamentos, sofrer rompimentos, consolar-se com seus pares, esse parece ser o destino dos homens nas organizações. Estamos sempre cercados de grupos, sejam eles empresas, igrejas, colégios, famílias, comunidades. Nesses espaços, durante todo o tempo, exercitamos formatos cordiais de representação social, de maneira a preservarmos a paz e a ordem. Entretanto, tais estruturas são frágeis e estão sujeitas à inoperância em situações de crise. Para isso, os mitos e os ritos mantidos pelas organizações proporcionam uma velada “pax” organizacional que preserva, às custas de muito sofrimento e autodisciplina, um ambiente “saudável” e impermeável a alguns vícios demasiadamente humanos. O “profissionalismo” é uma das estruturas que sustenta a ordem. A comunicação organizacional é o lugar onde se travam essas lutas e onde se negocia a paz.
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Uma das práticas mais comuns do cotidiano das pessoas que habitam os centros urbanos é a convivência em organizações. Grande parte dessas pessoas passa mais da metade de suas vidas vinculadas a algum tipo de organização, seja ela uma empresa capitalista, seja uma entidade sem fins lucrativos ou mesmo uma instituição pública ou privada.
O comércio, os bancos, as universidades e faculdades, as empresas de transporte, de prestação de serviços, a indústria em todas as suas modalidades, os tribunais e ministérios, as religiões, os meios de comunicação, os exércitos e as associações de voluntariado, enfim, todas essas formas de associação com fins produtivos são lugares que se organizam em torno de pressupostos e fundamentos relativamente simples em sua concepção, mas extremamente complexos em suas ramificações e conseqüências.
A rotina nesses ambientes é mantida – dentre outros recursos – mediante a utilização de práticas rituais. Tais práticas estão a serviço da estabilização e da manutenção da ordem, colaborando, assim para a preservação do poder constituído. Os processos em que os rituais são demandados, normalmente são potencialmente conflituosos; os momentos ritualizados impedem a eclosão dos conflitos, apaziguando e dissolvendo atritos que, se não tratados, podem trazer conseqüências nefastas para os sujeitos e para a s organizações.
A vida nos escritórios e repartições públicas é uma das mais duras experiências a que nos submetemos. Rotineira por natureza, repetitiva e pontuada por signos desgastados, essas práticas cotidianas produzem conseqüências agradáveis, desagradáveis, compensadores ou danosas que contaminam todas as dimensões da vida de um sujeito. Seus afetos, preferências, decisões, crenças e temores estarão irremediavelmente condicionados pelos humores, sabores e dissabores experimentados na sua vida “profissional”. Até mesmo as rejeições ou adesões incondicionais a essas influencias possuem vetores claramente determinados pelos mesmos fatores que desejam afastar.
As organizações possuem, assim, papel fundamental na vida dos indivíduos e não há como fugir do seu poder coercitivo. Conforme nos diz Richard Hall, um estudioso da antropologia das organizações, desde que nascemos estamos vinculados a alguma instituição: o nascimento é registrado num cartório, seguido de um rito religioso de iniciação e adesão institucional. A família, em sua conformação tradicional, funciona à moda de uma organização formalmente constituída. O colégio, a universidade, os grupos musicais, de amizade, esportivos, são lugares de vida organizada e parametrizada em normas, regras, hábitos consuetudinais. O primeiro emprego e a primeira demissão, a inclusão e a exclusão em grupos de afinidade, as estratégias e as farsas de dominação nos relacionamentos profissionais são, dentre outras, situações nas quais o indivíduo experimenta o quão árdua e depressiva pode ser a dependência das organizações.
Para muitos, viver em organizações é essencial para assegurar condições físicas e psicológicas de subsistência e prazer. O prazer do reconhecimento, a retribuição e o sucesso das estratégias de dominação constituem motivos mais que suficientes para permanecerem nas organizações e cultivarem ali os sentidos maiores de suas vidas. Para esses, os revezes necessitam ser entendidos como acidentes de percurso, conseqüências inevitáveis de um jogo no qual seus parceiros são também seus opositores ou mesmo condições inevitáveis de aprendizagem e crescimento.
Nenhum tipo de organização pode prescindir da comunicação, condição fundamental para que as pessoas compartilhem objetivos comuns e estabeleçam estratégicas consensuais para atingi-los. E não só as pessoas, como também todo ser vivo necessita celebrar pactos para instaurar situações comunicativas na vida em comum. Segundo o Boris Cyrulnik, um semioticista interessado em entender linguagens pouco ortodoxas, quando o ritual não consegue ser implementado, irrompe a violência, a maldade corre solta .. tudo em nome da sobrevivência nas organizações.
Os comportamentos rituais são, porém, coisa antiga. Eles remontam às práticas religiosas e, não raro, estão presentes onde quer que haja gente reunida periodicamente. São constituídos de atividades eminentemente culturais através das quais se crê ser possível resolver problemas que de outra forma resultariam insolúveis e de difícil convivência.
O estudioso tcheco da escola semiótica da cultura, Ivan Bystrina, denomina o ambiente da cultura como uma “segunda realidade” na qual tudo pode ser resolvido graças à competência simbólica que o homem desenvolveu para recriar e superar, em outras esferas, suas impossibilidades.
A “primeira realidade” é formada pelas dimensões biológicas e sociais da vida (não apenas humana) nas quais a comunicação é realizada pela ação dos códigos hipolingüais (biológicos) e dos códigos linguais (sociais). A “segunda realidade”, a realidade da cultura, é onde se dão os ritos, os mitos, as invenções, alucinações, criações imaginárias, enfim toda a produção simbólica do ser humano, único animal dotado de metaconsciência e, portanto, capaz de abstrair e sonhar acordado.
As organizações se mantêm nesses dois níveis: são constructos sociais (pela definição sociológica) e ambientes culturais (pelo entendimento antropológico e semiótico), nos quais se constrói, se destrói e se mantém convicções, crenças, fundamentos e pilares simbólicos capazes de sustentar a coesão, a ação solidária de tantos quantos delas fazem parte.
Nelas vigoram aqueles signos que Bystrina denomina “terciários ou hiperlingüais”. São os códigos responsáveis pelos arranjos sígnicos e textuais que vão além da técnica, do utilitarismo e das necessidades biológicas. Porém, esses códigos são centrípetos; não se referem ao mundo exterior, mas apontam para si mesmos, criando realidades que, do ponto de vista das necessidades materiais, não têm utilidade alguma. São aquilo que Bystrina chama de textos criativos/imaginativos: as obras de arte, todos os fenômenos e objetos estéticos, as sensações, loucuras de todos os gêneros, as especulações filosóficas e as crenças religiosas, o fundamentalismo, os fanatismos políticos, religiosos e corporativos, enfim, tudo o que é baseado em signos de sensação, qualidade de sentimento..
Se prescindíveis do ponto de vista material, esses textos são imprescindíveis à sobrevivência cultural: pertencem a esse território “hiperlingüístico” todas as criações simbólicas do homem para superar os problemas trazidos pela ação dos códigos hipolingüais e lingüísticos, tais como as estruturas de consolação, os mitos, os rituais, as ideologias de qualquer espécie, as religiões, a educação, os meios de comunicação de massa, etc.
Nas organizações, os ritos não só assumem função privilegiada na instauração e manutenção da coesão solidária dos grupos, como também são fundamentais para que as estruturas de poder sejam capazes de manter em funcionamento os diversos níveis de dependência (hierarquias) nos quais se instalam os vínculos entre as pessoas . E é aí que entra o mito e o culto dele, o rito.
A relação entre mito e rito é bastante estreita. O filósofo Eudoro de Souza diz que o mito é a narrativa de um tempo, um fato ancestral, exemplar ou paradigmático, que precisa ser lembrado e atualizado pelo rito. Assim, os ritos são lugares e tempos de reificação de mitos.
Alinhado com Eudoro de Souza, Mircea Eliade afirma que “rito” e “mito” são elementos complementares e interdependentes que formam uma unidade complexa, unidade essa que é a responsável pelas características individualizantes de uma dada cultura.
Em qualquer organização, os momentos ritualizados ocorrem mais freqüentemente do que imaginamos e sua contribuição para a formação da identidade e da imagem do grupo é bem mais intensa quanto mais impregnado de signos simbólicos forem as cerimônias institucionais.
Podemos observá-los quando, por exemplo, da assinatura de convênios, parcerias, lançamento de novos produtos, ao final de um exercício contábil (balanços), na apresentação dos resultados financeiros, nas comemorações de datas importantes para a organização, na inauguração de uma nova obra, um novo prédio, uma nova agência, quando da estréia da empresa num novo mercado, nas aberturas de novas frentes de comércio, etc.
Na base dessas festividades, tácita ou estridentemente são revividos alguns mitos de autoridade e de poder encarnados na história da empresa, na figura de seus fundadores, pioneiros, principais empreendedores, etc.
Há também relações intensas entre mitos modernos e mitos arcaicos. Um exemplo muito interessante de algumas presenças míticas nos rituais organizacionais/administrativos comuns nas empresas atuais pode ser encontrado em “Deuses da Administração”, de Charles Handy. O autor compara o que ele denomina “filosofias de administração” aos deuses gregos Zeus, Apolo, Atena e Dionísio. Tais “filosofias” são modelos culturais nos quais as organizações, segundo o autor, se enquadram.
Nas analogias de Handy observamos claramente as relações que interligam mitos aos ritos. Tudo o que força e atualiza um crença apolínea ou dionisíaca, por exemplo, merece e precisa ser comemorado ritualmente para que a organização reforce seus fundamentos e mantenha-se, assim, com força coercitiva capaz de não permitir que seus integrantes se desagreguem.
Zeus, o administrador que detém as soluções, paternaliza empregados e clientes. A relação mantida com o personagem é mediada por elementos rituais que se manifestam, por exemplo, numa forma atípica de cumprimentar (ritos de saudação), de se comportar, de responder e dirigir o olhar, de reagir em adesão, etc. Apolo, filho de Zeus, ilumina (medeia) as relações nas organizações e é esse o fundamento de suas funções: é o gerente/organizador que seleciona o que deve ser feito para promover a passagem do impossível (ou difícil) para o possível (atingível). Atena, também filha de Zeus, desloca a mediação para o trabalho que realiza, tecendo a rede que busca soluções simbólicas para os problemas do cotidiano e Dionísio, nascido da coxa de Zeus, subverte o princípio do trabalho para a organização (o corpo da cultura) colocando-a a serviço do indivíduo (a organização trabalha para o sujeito).
Nesse último caso, a organização assume o lugar de Apolo ou de Atena. Somente através dela e por ela o sujeito consegue superar (pelo consenso simbólico coletivo) os problemas do cotidiano. É importante ressaltar que o nepotismo presente na analogia de Handy (talvez não por coincidência) mantém muita relação com a prática das empresas, tanto públicas quanto privadas.
Além de costumeiros e usuais na marcação de diversos estilos de relacionamento nas organizações, os ritos aparecem com muita força nos momentos em que acontecem mudanças, em que há passagem de uma situação a outra. Esses “momentos” podem ocorrer quando ocorre agregação (entrada), desagregação (separação, saída) ou indefinição (saída, marginalização).
Arnold Van Gennep, um antropólogo alemão que estudou os rituais de passagem em grupos arcaicos, diz que os ritos de desagregação sinalizam a saída do indivíduo de um grupo, de uma situação ou de um estado para outro e são muito comuns nas organizações. Eles reaparecem como solenidades de despedida, cheias de emocionalidades, rememorações de fatos e sensações passadas. Normalmente são recheadas de discursos nos quais as estruturas de consolação (referidas por Eco em Socialismo y Consolación, obra de 1970) imperam como justificativa e explicação para a separação. Tais solenidades são – como ademais todos os ritos – bastante previsíveis, redundantes e essencialmente afirmativas. Os discursos são acompanhados de linguagens gestuais, corporais pouco flexíveis, olhares padronizados e ritmicamente sincopatizados para produzir efeitos paradoxais/padronizados de lástima e alegria, frustração e otimismo. Por mais que predominem nesses rituais um ou outro sentimento mais extremado, a tendência é encerrar-se em resignação, conforto e consolação, “azeitando” a organização para entender, assimilar, superar e esquecer rapidamente o acontecimento.
Os ritos de agregação preparam a organização para a novidade, de forma a preservá-la de perigos que possam desestabilizar seu funcionamento. Tem como objetivo integrar indivíduos e situações novas com um mínimo de custo emocional/psicológico, preservando o equilíbrio do sistema. As cerimônias de posse são marcadas, normalmente, por olhares e atitudes receptivas, discursos verbais nos quais predomina a adesão às causas do sistema, anúncio de mudanças suaves, promessas de continuidade e de correspondências às expectativas dos integrantes do grupo. Os rituais de agregação, segundo Van Gennep denominados “pós-liminares” têm a finalidade primordial de integrar e garantir a continuidade dos sistemas que já estavam em funcionamento antes da novidade. Servem assim à preservação das estruturas constituídas do poder, caracterizando-se fortemente pelas intenções conservadoras e reacionárias.
Já os ritos de indefinição (de margem, de saída) são marcados pela dúvida e pela transição, pela provisoriedade e pela indefinição. São chamados de ritos liminares pois evidenciam a posição intermediária do objeto ritualizado, tendendo a estabilizá-lo em locais de passagem, de transição, de espera. Os rituais dessa natureza tendem a acentuar a perda da situação anterior e as possibilidades futuras (ainda incertas) com algum grau de garantia, ainda que paradoxalmente “duvidosa”. As mensagens são carregadas de “desejos” e “expectativas” de confirmação, têm caráter reticencioso, não negam nem afirmam, demonstram alento e ansiedade, transparecendo certas tendências oscilantes entre pólos negativos e positivos. As vantagens de estar “dentro” ou estar “fora” são relativizadas em vantagem de um certo alívio pela perda da fidelidade a um ou a outro sistema. Os comportamentos rituais, nesses casos, são evasivos, dissimulados, marcados por um certo incômodo indisfarçável e, até mesmo, assumido como natural.
De modo geral, nessas ocasiões, alguns sintomas evidenciam o esforço de passagem como o enfrentamento corajoso de um desafio, Passar de uma situação a outra, de um sistema conhecido a um outro desconhecido (ou pouco conhecido), de uma certeza para uma dúvida (ou vice-versa) não é algo que possa ser suportado sem um mínimo de stress, de ansiedade e temor.
As manifestações rituais precisam, por isso, incorporar marcas físicas que reforcem e representem simbolicamente o discurso da transição. Os estandartes, tapetes vermelhos, carros de luxo, trajes cerimoniais, bottons, insígnias, galhardetes, a farta exposição de marcas-símbolo e cores institucionais, almoços ou jantares solenes, shows artísticos, distribuição de brindes, presentes, ornamentação ostensiva dos ambientes são algumas marcas que incorporam a lembrança e os propósitos formalmente instituídos no ritual. Até mesmo o “cafezinho” de negócios ou a caneta que foi utilizada para assinar o contrato, constituem signos rituais de primeira ordem, sem os quais a força da passagem não teria como ser dissolvida , amenizando o incômodo da mudança.
Os rituais, portanto, se prestam a fortalecer as marcas da passagem, não deixando dúvidas quanto à consagração de uma mudança, qualquer que ela seja. A ausência desses pequenos ou grandes cerimoniais pode comprometer as relações, afrouxar os laços de um acordo ou mesmo desacreditá-lo, não somente perante as leis instituídas, mas também – e principalmente – entre as partes que promovem o encontro.
Os ritos preenchem aquelas regiões – que o comunicador alemão Harry Pross denomina “zonas cinzentas” – com os signos dos sistemas vizinhos envolvidos em seus limites, dificultando ou mesmo inviabilizando o conflito resultante de uma provisória desorientação sígnica.
Porém, nem sempre as zonas de passagem são ritualizadas. Harry Pross, em seu “Estructura Simbólica del Poder” (até hoje só traduzido do alemão para o espanhol e publicado pela Gustavo Gilli, de Barcelona, em 1980) nos lembra que esse comportamento gera a constituição de lugares de encontro não reconhecíveis, transgressivos e à margem do reconhecimento. Entretanto, esses espaços são lugares privilegiados da formação de massa crítica para os sistemas que não conseguem abarcá-los:
Para a política e a publicidade, o espaço intermediário como zona a meio do caminho entre a comunicação orientada ao domínio e a tendência à publicação, é indispensável. Corredores, passagens estreitas, ante-salas, vãos de escada, encontros no trem, viagens casuais em comum, são lugares e ocasiões onde pode surgir um intercâmbio, já que nenhum dos interlocutores está sujeito à coação simbólica da ordem fechada que o separa do exterior. Os verdadeiros lugares de encontro são os intervalos, os espaços e tempos intermediários da praxis (PROSS 1980:67).
A comunicação que acontece fora dos espaços circunscritos pelas intenções do discurso das organizações são, normalmente, instigadas pela surpresa de encontros fortuitos. As zonas intermediárias entre um sistema e outro, estão, de cerca forma, descomprometidas com as coações de qualquer sistema e são, portanto, lugares onde tudo é possível. Elas acontecem em diversos momentos do dia-a-dia e podem nos levar a senti-las como desorientação. Assim, é comum nos lembrarmos, nos corredores, de algo que deveríamos ter dito ou observado quando estávamos “dentro” do ambiente, do sistema.
Da mesma forma, não é tão raro ocorrer uma lembrança inusitada no caminho de casa para o trabalho, do trabalho para casa, do escritório da empresa para a agência do banco, e assim em inúmeras situações de trânsito. É preciso notar que o trânsito de automóveis, por exemplo, é também ritualizado e constitui, portanto, um sistema. Mas como “sistema” interposto para passagem entre outros dois sistemas (o trabalho e o lar, por exemplo), permite um certo relaxamento das tensões que os ambientes de saída e de chegada nos impõem.
Quando Pross se refere ao fato de que, para as ações políticas e publicitárias, os espaços intermediários são indispensáveis, ele está afirmando, de outra maneira, que essas atividades não podem prescindir dos novos significados gerados fora de seu controle. As organizações, ao ritualizarem seus momentos de passagem, tentam obstruir a entrada de contribuições marginais ou estranhas ao sistema, mas não podem impedir que elas penetrem pelas fendas que o próprio sistema não tem condições de controlar. É por esses lugares que ele respira e areja suas ideologias, ainda que necessite demonstrar força repressiva para preservar o poder do núcleo organizador.
É nesse sentido que as ritualizações servem ao poder instituído nas organizações, sejam empresas, autarquias, entidades públicas, grupos informais ou organizações voluntárias. Os ritos são, em todas essas organizações, ferramentas compreensivelmente eficazes de manutenção das estruturas do poder.
Porém, é preciso lembrar que os ritos só se prestam a evitar atritos porque estão a serviço de uma tendência manifesta no comportamento demasiado humano: o de preservação da vida, da espécie, das rotinas e das garantias, ainda que ilusórias, de segurança.
Assim como o fenômeno da comunicação, os ritos atuam nivelando e apaziguando diferenças . O necessário trânsito entre afinidades, diferenças e indiferenças não pode se dar sem cuidados especiais. Tais cuidados, ainda que não despersonalizem a novidade que vem de fora ou o incômodo que é banido de dentro, tornam a passagem menos onerosa, suportável.
Mircea Eliade, Van Gennep, Ernest Cassirer Roger Caillois, dentre outros, são bastante criteriosos aos vincular a necessidade de mitos e ritos à uma certa tendência unificadora que move o espírito humano, tão castigado pela consciência da falta e pelas sucessivas experiências de dissolução e separação.
É o genial Antonio Medina Rodrigues, num texto intitulado “Afinidades e Diferenças”, de 1992 (não publicado porque escrito apenas para orientar suas aulas de semiótica na PUC de São Paulo), que nos dá um indicador bastante seguro para entendermos não apenas as tendências unificadoras do logos humano, mas também, por extensão, as características e pacificadoras dos ritos e dos mitos:
Uma das características da vida cotidiana está na afinidade que encontramos entre coisas, pessoas e fenômenos (...) Essa experiência, sem dúvida uma das mais importantes da órbita humana, esse reinado quase absoluto da afinidade encaminha, de certa forma, nossas paixões, nosso afeto, dando forma e peso a cada um (...) o logos grego nada mais é do que a projeção das simpatias e das semelhanças que os homens estabelecem ao longo da existência. Nos seus limites mais amplos, esta afinidade está de mãos dadas com o sentido e totalização.
Mitos e ritos constituem parte e processo de chegada a esse logos ao qual Medina Rodrigues se refere, esse telos que se coloca como inatingível, mas desafiadoramente provocante na ordem natural do eventos organizacionais:
O mundo, ao que parece, tem um sentido unificador, tem um movimento fisicamente determinado, um telos, uma ordem natural dos eventos que não podem se atropelar. Não é possível haver saltos nessa dinâmica; se algum salto existe na natureza ele está previsto pela própria natureza. (Medina Rodrigues, 1992)
Com base nas idéias de Medina Rodrigues, arriscamo-nos a afirmar que os saltos da imprevisibilidade, os tropeços e abreviamentos súbitos do transcurso natural dos eventos, da periodicidade esperada nos planejamentos organizacionais são acidentes (também naturais) que não podem ser razoabilizados senão pela interferência dos ritos.
Assim, ao evocarem mitos que restabelecem, em outro lugar (sagrado, arcaico, fundante), a unidade aparentemente perdida, os ritos funcionam como conjunções que devolvem à frase do fenômeno ou do acontecimento a sua plástica natural e possível (porque esperada e assimilável por aqueles que integram o ambiente no qual ela atua), preservando a gramática e a ordem de que todo sistema necessita. Está assegura a pax organizacional.
Bibliografia
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CYRULNIK, Boris. Memória de Homem, Palavra de Macaco. Piaget. Lisboa: 1994.
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HANDY, Charles. Os Deuses da Administração. Saraiva. São Paulo:1991.
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IASBECK, Luiz Carlos Assis. A Arte dos Slogans. Annablume. São Paulo: 2002.
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JABLIN e PUTNAM (orgs).The New Handbook of Organizational Communication. Sage Publications. Califórnia:2000.
MEDINA RODRIGUES, Antonio. Afinidades e Diferenças – texto-aula Sistemas Intersemióticos I. Programa de Pós-Graduação PUC/SP. São Paulo:1992
PROSS, Harry. Estructuras Simbólicas Del Poder. Ed. Gustavo Gilli. Barcelona:1980
PROSS, Harry. La Violência de los Símbolos Sociales.Antrophos. Barcelona:1983
SOUZA, Eudoro de. Mitologia I e II (2 vols.). Editora UnB. Brasília:1995.
VAN GENNEP, Arnold. Os Ritos de Passagem.Vozes.Petrópolis:1978.