Na fachada de uma creche, administrada pela Prefeitura do Rio de Janeiro e situada no morro da Casa Branca, líderes do tráfico de entorpecentes instalaram um enorme letreiro em néon, iluminando a noite da favela com duas letras emblemáticas que poderiam muito bem significar terror e custódia: TC, as iniciais do temido e sagrado Terceiro Comando das favelas cariocas, que divide com o Comando Vermelho o império das drogas em terras cariocas.
A inscrição em néon verde, de 3 metros de largura por 2 de comprimento ali apareceu no Natal, como uma estrela a anunciar a presença de tantas crianças recém-nascidas em manjedouras e berços pobres à espera de mães ausentes e pais desconhecidos.
Se ali estivessem, essas crianças receberiam a visita irada do Secretário de Segurança do Estado carioca, que mandou retirar o letreiro, após constatar que ele estava ligado numa tomada do porão da creche. Portanto, alimentado com a energia elétrica paga pelo Estado para iluminar o ambiente das crianças pobres.
A coordenadora da creche, em depoimento na 19° Delegacia de Polícia, disse que não viu o letreiro porque não teve tempo de olhar para cima. O líder da favela afirmou que ninguém impediu a instalação do letreiro, por medo. O prefeito César Maia deixou claro que a Prefeitura não pode ser acusada de estar em conluio com o tráfico, pois a creche estava fechada.
A creche Paulo Freire viveu momentos de glória, ostentando o símbolo da discórdia e do medo, da proteção e do poder. Durante alguns dias, foi a portadora de um signo que incomoda e acomoda poderosos no morro, nas delegacias e nas repartições públicas.
As agressões simbólicas podem ser consideradas uma novidade no ambiente social das favelas cariocas e arredores luxuosos da classe média endividada. Normalmente, rios de sangue, restos de cérebro e corpos em decomposição constituem a linguagem rotineira de uma paisagem marcada pela miséria econômica e humana. A nova tendência carioca aponta para a estilização do crime, para a sofisticação da ameaça e para a semiotização do terror, moda mundialmente lançada no ano passado pelos ataques terroristas nos Estados Unidos.
Os transgressores demonstram conhecer e saber articular códigos metalinguísticos. As figuras de estilo mais utilizadas são a ironia, a hipérbole e as metonímias. O enorme letreiro, em cor verde néon, foi erguido sobre uma casa de crianças, administrada pela Prefeitura, próxima a uma delegacia, brilhando escancarado para milhares e milhares de janelas e telhados de zinco. Uma marca que indica posse, poder e controle sobre a vida de milhares de pessoas que não têm muito a esperar de um feliz natal e muito menos de um próspero ano novo.
Enquanto tudo isso acontecia, num pequeno hotel do Flamengo, um mensageiro aconselhava-me a não deixar o carro estacionado na rua, porque poderia ser roubado. Segundo o rapaz, isso é rotineiro e bastante comum ali ao lado do palácio do Catete. Com a melhor das intenções, ofereceu-me uma garagem de aluguel a um preço infinitamente superior a que qualquer ser urbano brasileiro poderia imaginar. Educadamente, respondi-lhe que não seria preciso, pois tinha convicção de que não roubariam meu carro ... e o preço do aluguel era muito alto! Foi quando o atencioso e dedicado mensageiro ofereceu-me ticketes de metrô para assistir a passagem do ano em Copacabana, por um preço 3000% acima do cobrado nas bilheterias do tímido metropolitano carioca. Também rejeitei.... disse não, obrigado!
Lamentavelmente, não consegui ler a mensagem sutil da semioticidade carioca contemporânea. Quando retornei das festas de passagem do ano, o automóvel ainda estava estacionado em frente à portaria do Hotel. Dormi, acordei e encontrei o carro ... depenado! Que pena ... um prejuízo muito maior do que o aluguel da garagem e o milionário ticket de metrô! O vidente mensageiro carioca acertou em cheio. Poderia ir à TV (Globo, evidentemente) tentar previsões para 2002. Tudo aconteceu como ele havia anunciado, coincidentemente logo depois de iniciado seu período de trabalho naquela manhã do dia primeiro de janeiro, naquele pequeno e singelo hotel do Flamengo. Solidário, o performático mensageiro lamentou comigo o incidente.
Esses dois episódios ilustram a evolução da cultura carioca rumo à sutileza e à sofisticação da metalinguagem. Nessa nova era, metáforas e uma centena de figuras de linguagem podem estar camufladas sob o som de um singular mermão ou do sibilar de um issssperto.
Os cariocas descobriram o símbolo. Deixaram de lado os índices tão manjados da criminalidade para operarem nos limites do quase-signo icônico. A miséria que leva à corrupção crônica, alimentada pela ganância dos ricos e festejados emergentes que comemoram a passagem de ano no edifício Chopin, precisa expressar-se de outras formas. Precisa criar novas motivação, novos fluxos e refluxos capazes de surpreender e assaltar a previsibilidade do mais desconfiado mineiro, do mais descansado baiano ou do mais colorido e avermelhado turista americano.
Os novos cariocas que povoam os condomínios-favela verticais de classe média, próximos às praias da Barra da Tijuca, já descobriram como confundir a sanha subtraidora dos necessitados das favelas da Rocinha e do Vidigal, seus vizinhos: usam as mesmas roupas que seus algozes, bermuda chinelo de dedo e camiseta. Nada mais. Ali não há mais distinção, roupa de griffe, arrogância ou prepotência econômica. Caminhar pela orla da praia da Barra da Tijuca é estar ao lado de milhares e milhares de potenciais assaltantes misturados a potenciais assaltáveis, uma massa disforme, inindentificável e sudorenta de corajosos e medrosos, ricos gananciosos e miseráveis famintos. Uma fórmula semiótica bastante eficiente de eliminar índices pela amplificação de signos degenerados, que comumente denominamos símbolos ... signos estereotipados, incapazes de gerar possibilidades interpretantes.
Assim, a força bruta tradicionalmente utilizada para demonstrar poder cede espaços aos comportamentos emblemáticos, repletos de múltiplas possibilidades de leitura. Se, por um lado isso não diminui em nada a violência do ensolarado e aquecido mundo carioca, por outro, estimula a evolução do abandonado néo-cortex, massageando células adormecidas e já descrentes de uma revolução sináptica-neuronal na fisiologia cerebral dos isssspertos.
Tal fenômeno deverá ter seu apogeu no verão carioca deste ano, recém-iniciado. E vai exigir de todos nós – mas, sobretudo da perplexa mídia sibilosa – novos paradigmas, novas referências e modelos de decifração.
O que não falta é desafio ao exercício semiótico. Proponho que os interessados no assunto comecem a exercitar sua competência metalingüística tentando entender que sentidos ocultos ou que mensagens subliminares estão sendo transmitidas pelo governo Garotinho (um nome, um emblema!). Ele subvenciona o almoço e o jantar dos desempregados e desocupados famintos ao módico preço de 1 real ... num local bem próximo a um restaurante/bar freqüentado pelos tediosos intelectuais-alcólatras cariocas da classe média decadente do Leblon.
Assim nas favelas como nos hotéis, a criminalidade assume nova linguagem e se esparrama democraticamente por toda a cidade do Rio de Janeiro. Ela está nos restaurantes de luxo e nos buracos quentes dos morros cariocas, nos pontos de visitação turística e nos supermercados apertados e fedorentos da zona sul, na prostituição institucional gerenciada pelas casas noturnas e nas galerias de arte dos points gays de Ipanema.
Extremamente comunicativo, o povo carioca não lhe dá a liberdade de omitir-se. Lá, como no reino de Bush, quem não entende, dança. Quem não faz coro, está contra. Quem não compreende, paga caro a conta da confiança.
Assim, em sua próxima viagem ao Rio de Janeiro, aguce a percepção, leia nas entrelinhas e procure chifre em cabeça de cavalo.
Para sobreviver ao verão carioca, só mesmo com muita e ... muita semiótica!