Quando falamos em Jornalismo Cultural, de imediato somos levados a associá-lo aos cadernos de cultura dos grandes jornais, aqueles lugares privilegiados aos quais nos recorremos para programar as atividades “culturais” do final de semana ou de uma jornada de férias. Uma distorção ... pelo menos para aqueles que se debruçam a estudar essa manifestação mediática como produção semiótica multimídia de elevada metalinguagem.
É ainda recente a iniciativa de Geane Alzamora e de outros estudiosos do jornalismo cultural que instituíram uma lista de discussão na Internet para, dentre outros objetivos, descobrirem novos objetos e leituras dessa especificidade jornalística. Acompanhando essa lista durante quase mais de um ano, podemos perceber que os interessados no tema possuem compreensões bastante variadas do que vem a ser jornalismo e do que vem a ser cultura. Não poderíamos esperar nada diferente, uma vez que a complexidade assumida pelas ciências não nos permite mais a simplicidade dos enunciados gerais, de ampla compreensão e pequena extensão.
Inspirado nas discussões havidas naquele fórum e sem nenhuma pretensão de obter unanimidade (ou nostalgicamente buscar a simplicidade), entendemos necessário repensar algumas obviedades que estão na base de elaborações sofisticadas, retóricas eloqüentes e/ou críticas inflamadas.
Dentre as “obviedades” mais fundamentais, ressalto que o conceito de cultura tem sido bordado e abordado por diversos flancos que vão desde a reedição de antigos embates sobre a indústria cultural, passando pela cultura de massa e desaguando numa ainda desfigurada cultura mediática, estampada nos tais jornalismos culturais. E nesse particular, a crítica de arte tem destaque especial.
Cultura, Cultura e Cultura
A denominada “Semiótica da Cultura” é uma vertente dos estudos semióticos gerais que se desenvolveu a partir de textos fundamentais (e inaugurais) de semioticistas eslavos – liderados por Yuri Lotman e V.V. Ivanov, das esoclas de Tartu e Moscou – na primeira metade do século passado e que chegou até nós na década de 70, patrocinada pelos estudiosos da literatura russa. Dentre eles, um manifesto em forma de “teses” inaugurou as bases de um novo pensamento sobre a cultura e seus movimentos.
Mais recentemente, o tcheco Ivan Bystrina, estudioso da comunicação e da cultura, reuniu trabalhos esparsos desse grupo pouco coeso – mas bastante produtivo – e releu seus pressupostos, organizando um acervo de novos entendimentos sobre comunicação e cultura, ainda não publicados em língua portuguesa. Sua obra - Semiotik der Kultur - e as aulas lecionadas no Programa de Pós-Graduação da PUC de São Paulo, a convite do Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura (CISC), são algumas das poucas oportunidades que temos de estudar um pensamento pouco ortodoxo sobre “cultura” e de grande pertinência semiótica.
Além de Bystrina, teóricos como Harry Pross, Dietmar Kamper, Vicente Romano e Vilém Flusser se perfilam no rol dos pensadores que acordam em alguns pontos basilares para a compreensão de como acontece a dimensão cultural na vida dos indivíduos. Bem recentemente, Irene Machado publicou um livro sobre a Escola Semiótica da Cultura com o sugestivo nome “Escola de Semiótica” (Ateliê Editorial, São Paulo), no qual divulga as famosas “teses russas para uma análise semiótica da cultura”, que circulavam pelos subterrâneos da PUC de São Paulo nos anos 90, em versão não-autorizada.
Entretanto, foi Norval Baitello Júnior, discípulo de Bystrina e Pross na Universidade Livre de Berlim, quem introduziu esses pensadores na linha de pesquisa “Semiótica da Cultura” do curso de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC/SP e organizou suas obras fundamentais para servirem de campo de experimentação por parte dos alunos pesquisadores do CISC. Em seu singelo, emblemático e denso “O Animal que Parou os Relógios” (Ed. Annablume, São Paulo:1997), Norval Baitello Júnior assim explica o conceito de “cultura”:
“a amplitude e a complexidade do conceito “cultura” já estão registradas em suas remotas origens. O substantivo latino “cultura” significa, em seu uso primeiro e mais concreto, cultura agrícola, plantação, cuidados requeridos pelo cultivo (...) transposto à esfera humana e, agora, em sentido figurativo, vai significar a cultura do espírito (...) a formação intelectual do homem por meio da filosofia, da ciência, da ética e da arte” (Baitello 1997:25)
O competência adquirida e desenvolvida pelos seres humanos de abstrair, de elaborar metalinguagem, de pensar o pensamento é considerada, modernamente, a distinção mais cabal que os separam dos demais seres vivos não-humanos. A etologia e a zoosemiótica já nos demonstraram – sobejamente – que os animais são também seres racionais que aprendem, apreendem e compreendem a lógica básica do pensamento racional. Não são capazes, entretanto, de conceber algo em ausência do estímulo, não desenvolveram linguagens mais sofisticadas que dessem conta de símbolos complexos de múltiplos interpretantes.
A cultura é, assim, o diferencial, a dimensão visível de superação de um mundo utilitário e lógico para um extrato por vezes alógico, analógico, fantasioso, mágico. Bystrina (1995) denomina a cultura “segunda realidade”, a realidade das trocas simbólicas, criativas e imaginativas, em contraposição à “primeira realidade”, a realidade físico-biológica e social, das trocas instrumentais e utilitárias. E para não ficarmos apenas com pensadores e pensamentos estrangeiros (talvez “estranhos”), é bom lembrar que Paulo Leminski formulou uma curiosa “teoria” da inutilidade da poesia, uma das mais caras produções da cultura: “poesia é inutensílio”.
Talvez a poesia tenha uma função no quadro das artes e da cultura: a de ser manifestação inútil sem presença nos dia-a-dia das pessoas, o que lhe confere liberdade e arbitrariedade. Poesia não tem valor de troca... (Regis Bonvicino, em A Necessidade Atual da Inútil Poesia, especial para a Folha de São Paulo, 26/1/97)
As produções de nossa competência de fazer cultura, para Bystrina, são necessárias para que “superemos” simbolicamente problemas advindos da primeira realidade. Só assim poderíamos injetar alguma “utilidade” no fazer artístico. E ninguém duvida de que só na fantasia da imaginação religiosa e/ou artística superamos a irreversibilidade do tempo que nos leva para a morte (o maior de todos os problemas da primeira realidade), as separações, as perdas, as derrotas, empreendimentos fracassados, frustrações, etc...
A cultura está, dessa maneira, comprometida com uma dimensão psicológica, espiritual, imaginativa e criativa do ser humano, tornando-se indispensável para sua sobrevivência psíquica. Os loucos, os artistas, os sonhadores ... são esses que abrem caminhos impossíveis para os pragmáticos que só admitem a realidade dos “fatos e dados”. A cultura supera, pois, a ingenuidade semiótica de se obter “verdades” ou de se dominar “realidades”, possibilitando ao “ser de cultura” o preenchimento de um vazio utilitário por um bem simbólico muito mais consistente e duradouro.
Os Movimentos da Cultura e os Movimentos Culturais
O ponto de partida para a compreensão da cultura, segundo os russos que assinam as “teses”, é o pressuposto de que “toda atividade humana referente ao processamento, à troca e à conservação de informação possui uma certa unidade” (tese 1.0.0). Isso significa que não podemos nos referir à cultura de modo esparso sem especificarmos à qual cultura estamos nos referindo. Uma cultura disforme não pode ser percebida como unidade e muito menos nos franqueia acesso ao seu fluxo interno de informações.
É justamente essa dificuldade que vai levar os semioticistas russos a concluírem pela impossibilidade da cultura fora do texto. O conceito de TEXTO é fundamental nessa semiótica, pois vai substitui – para fins operativos e epistemológicos – o conceito de signo.
Eles entendem que o texto (tese 3.1.0) é um signo integral ou o resultado de uma sequência estruturada de signos com significação integral. Em “A Estrutura do Texto Artístico” (1987), Lotman nos dirá que todo texto se compõe, obrigatoriamente de uma estrutura, uma expressão e delimitações peculiares; só assim ele assumirá o caráter de um todo organizado e coerente e, portanto, estará apto a produzir sentidos integrais e singulares.
A cultura, desse modo, só pode ser entendida como um recorte, uma unidade delimitada, com fronteiras definidas e identificáveis, do ponto de vista interno e do ponto de vista externo. Sua estrutura e sua expressão próprias é que darão conformidade ao sentido (ou aos sentidos), produzindo possibilidades interpretantes ampliadas em contato com outros textos que não fazem parte de sua composição.
Uma cultura pode ser, então, vista como um texto ou como um conjunto de textos num texto maior. De qualquer modo, sempre terá uma unidade. E o fato de apresentar-se como “algo” e não “nada” ( Pross, 1987) confere a qualquer configuração cultural um certo aspecto homogêneo, ainda que comporte contradições e paradoxos internos. Por isso podemos falar de uma cultura brasileira, de uma cultura baiana, afro-brasileira, de uma cultura musical ou de uma cultura midiática, por exemplo. A decisão de conformar diversos signos/textos em blocos identificáveis e delimitáveis de elementos integrais é que configura o aparecimento de “cultura” onde quer que estejamos dispostos a percebê-la ... ou estudá-la.
Cada um desses conjuntos textuais deve possuir a competência de interagir com outros blocos que lhes são estranhos. Porém, cada cultura, ao olhar para for de si, estará dialogando ou buscando estímulos em elementos de sua correspondente “não-cultura”.
O conceito de “não-cultura” é também essencial para que compreendamos a importância dos diálogos intertextuais para o arejamento de cada cultura particular (tese 1.1.0). É por esse motivo que Lotmann e seus correligionários das escolas de Tartu e Moscou apostam na necessidade de se “enxergar” a cultura por, pelo menos, duas posições num mesmo plano: de dentro e de fora. Vista de dentro, toda cultura possui características, comportamentos, ritos e mitos que são aceitos como “normais e justificáveis”. Porém, o grau de aceitação e inclusão desses valores e fatores precisa ser reforçado com a contrapartida da exclusão daqueles valores/fatores que lhes são adversos, opostos. Assim, a tudo o que é incluído/aceito correspondem uma ou várias exclusões/rejeições
Todas as culturas se movimentam interna e externamente. Internamente, no intenso diálogo travado entre textos intestinos ( intratextuais) que proliferam sentidos e alteram – de forma sistêmica e dinâmica – todo o acervo até então instituído. Externamente, pela ampliação ou redução de sua configuração, nos diálogos com elementos da não-cultura.
Tais movimentos não permitem que uma dada cultura possa ser estudada sem que seja, didaticamente, congelada e seccionada sincronicamente. O estacionamento de um dado espectro de cultura corresponde, portanto, a uma ficção necessária de paralisação do tempo, uma vez que seria impossível a qualquer pesquisador ou observador de mídia perceber a configuração de uma cultura em todos os seus dinâmicos movimentos de retração e expansão. A multidimensionalidade dos diálogos intertextuais ( Kristeva) não nos permite, senão acompanhar alguns feixes de sentido, de forma precária e cientificamente inconsistente
Os movimentos da cultura são inerentes à própria composição de sua trama textual. E é a partir de movimentos localizados que toda a rede se balança, dando ao todo da trama configurações alteradas e individuais, no tempo e no espaço.
Vistos, agora, sob tal espectro teórico, os movimentos culturais – tão caros ao jornalismo cultural – não passam de dinâmicas naturais de perpetuação de vida de cada cultura. São golfadas de vitalidade textual que se abastecem nos diálogos internos e estabelecem novos vínculos e conexões com dinâmicas externas (da não-cultura) para assegurarem sua permanência no mundo da cultura.
Falar de uma cultura global, nesse quadro teórico, significa admitir a existência (lógica) de outras culturas extra-globais nas quais tudo o que não cabe naquela dada cultura possa abrigar-se para atormentar, de tempos em tempos, a regularidade da rotina global.
Movimentos culturais são também, na acepção do jornalismo cultural, eventos de arte (teatrais, cinematográficos, de artes plásticas, musicais, etc.). Nesse caso, o conceito de cultura está ligado ao desenvolvimento de um fazer artístico, de caráter simbólico e promocional, acessível a uma parcela de espectadores/fruidores capaz de se sensibilizar com o evento.
Tudo leva a crer que estamos falando de fenômenos absolutamente diferentes ou até mesmo incongruentes. Movimentos culturais parecem ser momentos de expressão de valores/crenças/convicções, modos de ser, agir e reagir de grupos identificados. Tendem a buscar referência no público que se sente atraído por eles e a influenciarem positivamente tal público com as possibilidades das novas leituras que irradiam.
O Jornalismo da Cultura
Fazer jornalismo é buscar informação útil (notícia), selecioná-las, organizá-las, publicá-las, armazená-las e descartá-las, quando obsoletas. O referencial do jornalismo é – ou tem sido – os interesses localizados do grupo empresarial que mantém a organização jornalística, traduzidos, acomodados eufemizados e/ou distorcidos pelos editores-chefes, pauteiros, editores de cadernos, etc. Afora isto, o jornalista pauta-se no suposto interesse do seu suposto público.
Embora seja, hoje, bastante mais simples que antigamente aferir a audiência de um programa de rádio ou de TV, a circulação de um jornal ou de uma revista, o número de visitantes de um site ou de freqüentadores de um chat, não foi abolida a figura ideal do leitor, do telespectador e do internauta que cada produtor de informação interioriza pela lógica do dialogismo bakthiniano.
O receptor idealizado pelo jornalismo cultural pode ser descrito de inúmeras maneiras, porém manterá inalterado, em todas as versões possíveis, seu pendor pelas produções simbólicas da cultura, sua curiosidade pela decifração de códigos emblemáticos e pela intimidade de culturas que lhe são estranhas.
Além dos óbvios interesses mercadológicos dos promotores dos eventos culturais (sejam quais forem), o suposto interesse desse receptor movimenta o produtor da informação na direção de um texto final capaz de conciliar ou de partilhar eventuais conflitos e recompensas.
Independentemente, porém, dessas considerações de caráter político/mercadológico, o texto cultural do jornalismo cultural não corresponde ao texto da cultura tal como defendido pelos semioticistas eslavos. O própria natureza do conceito de “notícia” retira do texto jornalístico a possibilidade de produzir a carga simbólica de que nenhuma cultura pode prescindir.
Por isso, o jornalismo cultural gira em torno da crítica, mas parece preferir o entretenimento; por isso as matérias em profundidade dos cadernos culturais não conseguem se entregar à arte da desutilidade; por isso o lugar do jornal ( seja na TV, seja no rádio, seja no papel) não pode substituir o lugar do evento ou da manifestação cultural, sendo, por si só, a notícia do evento e da manifestação.. quando muito, um aperitivo para motivar o leitor/teleespectador.
Bibliografia
Lotman, Yuri. A Estrutura do Texto Artístico. Ed. Estampa. Lisboa: 1987
Machado, Irene. Escola de Semiótica. Ateliê Editorial, São Paulo:2003
Schnaidermann, Boris. Semiótica Russa. Ed. Perspectiva. São Paulo: 1991
Leach, Edmund. Cultura e Comunicação. Zahar Editores. São Paulo: 1981
Baitello Jr. Norval. O Animal que Parou os Relógios. Annablume. São Paulo: 1997
Flusser, Vilém. A Fenomenologia do Brasileiro. Ed. UERJ. Rio: 1998
Bystrina, Ivan. Lições de Semiótica da Cultura. Pré-Print do CISC, PUC/SP. 1996
Iasbeck, Luiz C.A. A Arte dos Slogans. Ed. Annablume. São Paulo: 1997
Pross, Harry. La Estructura Simbólica del Poder. Gustavo Gilli. Barcelona: 1987.