No marketing empresarial e no âmbito das organizações, fala-se muito em “trabalhar a imagem” como se fosse possível determinar a priori, pelo discurso empresarial - e com segurança - um atributo que se forma fora dele, na mente do receptor. Desconsidera-se, nesses casos, que os textos gerados por qualquer discurso sofrem um intenso processo de relativização e revitalização crítica, consciente ou inconsciente, quando são confrontados com a experiência, o repertório, os valores e crenças do indivíduo ou do grupo de indivíduos que os recebem.
Assim, ingenuamente, os setores de comunicação e marketing investem, com pouco retorno, muito dinheiro no desenvolvimento de estratégias sofisticadas de “construção” da imagem institucional e as demais “sub-imagens” que são penduradas no guarda-chuva institucional, tais como: imagem de marca, de produto, de serviço, imagem corporativa. O instrumento mais utilizado para aferir essas “imagens” são as pesquisas de opinião (qualitativas e quantitativas), normalmente encomendadas (“brifadas”) a agências especializadas. Nesse processo, após a consolidação dos dados, procede-se à fase de adequação dos resultados às intenções do discurso com a finalidade de apaziguar discrepâncias ou, na melhor das hipóteses – quando é impossível a conciliação -, de justificar o não-atingimento das metas que orientaram a produção do discurso.
Normalmente, em caso de resultados incômodos à organização, as pesquisas apontam as “falhas na comunicação” como responsáveis pela imagem negativa. Por “comunicação”, os administradores normalmente entendem as estratégias de colocação do discurso na mídia. Em poucas oportunidades os produtores do discurso se dão ao trabalho de reavaliar a diversidade dos textos que produzem, centrados que estão nas “boas intenções” que os orientam.
Neste trabalho propomo-nos a ampliar o conhecimento das peculiaridades da “imagem”, de como é idealizada, construída, modificada e fomentada nas organizações e, finalmente, demonstrar que ela se forma no território da recepção, apesar de todos os esforços para fazer valê-la no âmbito da produção do discurso empresarial.
De início, necessitamos explicitar a qual concepção de “imagem” nos referimos. E estaremos nos dirigindo a uma acepção muito específica: a imagem que se forma na mente do receptor a partir de seu contato com o discurso da empresa, considerados todos os elementos significativos que aí interagem: informações verbais e não-verbais estocadas na memória, captadas pelos órgãos dos sentidos e percebidas seletivamente segundo a intensidade dos estímulos externos e das necessidades internas, individuais ou coletivas.
A imagem “mental” é assunto antigo na história da filosofia. Para Platão, o mundo das idéias consistia de palavras (logos) e de imagens, sendo que estas são posteriores, ou seja, o logos estimularia a formação de imagens mentais. As imagens, por sua vez, não tinham origem nas impressões captadas pelos sentidos, mas surgiam da própria alma, o que aproxima muito o conceito de imagem à idéia do ícone de Peirce, como veremos logo a seguir.
Aristóteles acreditava que “sem imagem não há pensamento”, dando início a uma tradição empiricista que acreditava serem as imagens mentais cópias do mundo real (simulacros): os fenômenos e os objetos emitem sinais que são captados pelos sentidos em forma de “imagem”. Essa ligação física entre objeto e signo será também comentada nesta monografia, quando nos referirmos ao signo indicial peirceano.
David Hume, no século XVIII, relaciona imagens a idéias e impressões (pensamentos), considerando que nossa percepção tende a ser estocada na memória e revivida em outras situações: as menos fortes e menos vivas são as “idéias” e os “pensamentos”; as mais fortes e mais intensas são as “impressões” (in “Investigação Acerca do Entendimento Humano”).
Piaget entende a imagem mental como uma “imitação interior” que transforma a realidade. É um signo – pois representa algo que existe fora dela – acrescido, por associação mental (analogias), de outras imagens, valores, juízos e que se dá como matéria-prima à interpretação, ao pensamento. Ele caracteriza esse signo como um símbolo, distanciando, com nítidas diferenças, o objeto da percepção, o significante e o significado. Nöth observa nesta teoria um distanciamento das premissas de Saussure e uma aproximação à concepção triádica do signo de Charles Peirce (ver Nöth, 1995: 448).
Visto dessa forma, o conceito de imagem muito se aproxima também ao de “imaginação”, pois envolve idéias, impressão, opinião. Assim, nossa primeira “mirada” sobre a imagem das organizações se abre para uma complexidade que merece ser examinada mais detalhadamente e que justifica as considerações a seguir.
Em língua portuguesa, imagem vem do latim imago que, segundo Alencar (1944:149), significa tanto figura, semelhança, forma, visão, quanto pensamento, idéia, lembrança, recordação, o que confirma a diversidade de sentidos herdada da tradição filosófica.
Com intenção de disciplinar positivamente tantas acepções para esse signo, W.J.T. Mitchell, inspirado em Panofsky, escreveu um tratado sobre a iconografia, que denominou Iconology , no qual procura estender o assunto a outras modalidades de percepção que não apenas a visual:
In a broader sense, the critical study of the icon begins with the idea that human beings are created ‘in the image and likeness’ of their creator and culminates, rather less grandly, in the modern science of ‘image-making’ in advertising and propaganda (Mitchell 1986: 2).
Mitchell considera “imagem” tanto as representações visuais (pinturas, esculturas, fotografias, padrões, hologramas, etc.) quanto as representações mentais (memória, “imaginário”), verbais ou literárias (poemas, romances, relatos, crônicas) e gráficas, entendendo o homem como “uma imagem e um produtor de imagens”(op.cit p. 2).
Com referência às modalidades de discurso, numa compreensão muito aproximada àquela proposta neste trabalho, Mitchell enuncia cinco diferentes “famílias de imagens” que se distinguem umas das outras “com base nas fronteiras entre discursos institucionais diferentes”. São elas:
GRÁFICAS ÓTICAS PERCEPTUAIS MENTAIS VERBAIS
pinturas espelhadas dados sensórios Sonhos metáforas
Embora tenhamos de considerar que tais categorias não são propriamente estabelecidas por discursos institucionais, mas talvez cristalizadas por eles , o quadro de Mitchel é de grande utilidade ao discernimento de como grupos identificáveis de público formam imagens peculiares sobre as empresas. Geralmente as pesquisas especializadas fornecem poucos elementos capazes de indicar pistas sobre como essas particularidades contribuem para a formação daquilo que concluem como sendo “imagem”.
É preciso, também, levar em conta aqui algumas reduções que toda categorização – e a de Mitchel não é uma exceção – provoca, na medida em que simplifica as diferenças e só considera as interpenetrações entre os boxes quando essas categorias compõem um determinado sistema em torno do qual os interesses são identificáveis.
Para ele, “cada família corresponde a um tipo de imagem que é central no discurso de alguma disciplina intelectual”. Dessa forma, podemos considerar que as imagens mentais sejam objeto de estudo da psicologia e da epistemologia; que as imagens óticas interessem à física, à grafologia, às artes, etc. Mitchell diz ainda que, ao mesmo tempo em que esses tipos de imagem se vinculam a áreas reconhecíveis do conhecimento, não lhes são exclusivas, pois muitas daquelas categorias resultam de uma transação interdisciplinar que reúne, por exemplo, psicologia, neurologia, história da arte, crítica literária, tal como sucede com as imagens mentais e verbais.
As imagens perceptuais, que nos chegam através dos órgãos dos sentidos, são aquelas que refletem informações acerca de uma dado objeto ou fenômeno observados. As imagens mentais – como os sonhos, as lembranças (a memória) e as idéias – possuem uma estreita ligação com as informações obtidas perceptualmente, mas, em contrapartida, não mantêm compromisso de fidelidade com aquele primeiro registro. Isso ocorre, segundo Mitchell, porque as imagens estão plenas de conotações ideológicas. Comentando tal tese, Santaella assim se manifesta:
A tese de Mitchell é curiosa: sem discutir as concepções materialistas para as quais as representações gráficas e óticas são propriamente imagens, ele propõe que estas, imagens reais e literais, sejam tão bastardas quanto as imagens mentais e verbais. Os argumentos para isso são hauridos nas noções de ideologia, isto é, de que toda imagem, por mais literal que pareça, envolve uma distorção ideológica em relação ao real (1993:38).
A “distorção ideológica”, à qual se refere Santaella, pode encontrar uma explicação plausível nas ressalvas que Charles Peirce enfatiza na mais conhecida de suas definições de signo:
Um signo...é algo que, sob certo aspecto e de algum modo, representa alguma coisa para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo melhor desenvolvido (Peirce 1993:94 – grifo nosso).
A condição de representação “sob certo aspecto e de algum modo” e o signo “melhor desenvolvido” que gera na mente de alguém não são produzidos pelo signo ele mesmo, mas por uma série de fenômenos circunstanciais captados subjetivamente em forma sígnica (já que a representação se dá para uma mente, portanto, para um sujeito), que se agregam a um hipotético signo inicial, originário ou embrionário.
Esse adensamento de significação explica, “sob certo aspecto e de algum modo”, a distorção em relação ao real que cada signo contém, inclusive o signo icônico (ou a imagem literal, à qual se refere Santaella) que, segundo semioticistas “materialistas” de inspiração marxista, sempre representa uma cópia ideal de seu objeto, visto que é formado a partir de uma reflexão sobre a realidade objetiva – e não apenas de uma observação isenta de parcialidade (ver Nöth, 1995:447-448). Para entender melhor essas questões, devemos avançar no estudo do signo icônico, o mais problemático, segundo Peirce, porque em sua concepção mais pura não favorece a distinção com seu objeto e nem – em alguns casos – com os seus interpretantes.
Imagem como Ícone
Todas as classes de imagens descritas por Mitchell envolvem fenômenos diferentes cujas características são marcadas pela analogia, pela semelhança ou pela similitude. Por isso podem ser genericamente entendidas como ícones, no sentido peirceano, mas não sem alguma controvérsia:
Dificilmente discerne-se o ícone da imagem. Enquanto o conceito de imagem se refere aos fenômenos visuais (e suas representações mentais), ícones, pela menos na definição de Peirce, recobre uma classe mais ampla de signos por semelhança que inclui signos transmitidos por canais não visuais. O traço de semelhança que define tanto as imagens quanto os ícones levanta uma série de questões semióticas mais fundamentais (Nöth 1995- 357).
Essas questões “mais fundamentais” dizem respeito aos conceitos de ícone e suas propriedades (iconicidade). Em Peirce, o ícone é o primeiro e mais fundamental modo de funcionamento do signo, pois significa sua própria qualidade, “algo que é o que é sem referência a mais nada”, ao passo que o índice depende de seu objeto e o símbolo depende de convenções entre seus usuários. Porém, se um ícone não representa alguma coisa, porque em sua concepção mais pura independe de objeto, ele “não pode transmitir nenhuma informação positiva ou factual, pois não fornece nenhuma garantia de que há qualquer coisa assim na natureza” (op. cit.1995: 122).
Como o signo para Peirce sempre deve possuir objeto e interpretante, o ícone puro foi por ele considerado um signo degenerado. Os ícones reais (denominados hipoícones) mantêm uma relação de similaridade com o seu objeto naquilo em que se assemelham, de alguma forma, em suas características ou qualidades. É o caso dos retratos, da pintura, das esculturas, e também dos ideogramas e diagramas (que não se assemelham ao objeto na aparência, mas na relação entre suas partes). As semelhanças que caracterizam os ícones não são, pois, absolutas. Peirce assim explica:
Quaisquer dois objetos na natureza possuem semelhanças entre si, e tanto quanto ocorre com estes dois objetos, as semelhanças estão presentes nos próprios objetos; é somente com referência aos nossos sentidos e necessidades que uma semelhança conta mais que outra. [...] Semelhança é uma identidade de caracteres; e isto é o mesmo que dizer que a mente reúne as idéias semelhantes em um conceito (§ 1.365, op. cit p.123).
Identificamos aqui, na formação do hipoícone, um certo arbítrio na composição das semelhanças, o exercício de uma subjetividade movida por interesses e contingências que se impõe no próprio ato da percepção do objeto dinâmico (a “realidade”), e que busca afinidades de dentro para fora:
É verdade que a iconicidade, ao contrário das verdades lógicas, depende dos julgamentos da similaridade, e estes são codificados de acordo com as pessoas, os lugares e o tempo que participam do julgamento (Nöth 1995:127).
Tais considerações são de grande importância quando nos propomos a pensar a imagem porque confirmam que todo ato de percepção (e recepção) é também um ato de fabricação de sentido. Em outras palavras, e voltando ao objeto de nosso estudo, que a imagem não reproduz com fidelidade os dados do discurso, do conjunto dos textos que chegam ao receptor – interpretante mental (observador, leitor, usuário, cliente, etc.).
Assim, em qualquer das categorias de imagem de Mitchell, podemos dizer que a ação do signo (semiose) processa uma reinvenção da realidade (ou do objeto dinâmico peirceano) na mente interpretante, ainda que devidamente escorada em afinidades seletivas buscadas pelos sentidos e discriminadas segundo as necessidades das pessoas e as contingências do tempo e espaço em que se dão. Em outras palavras, as “imagens mentais” de Mitchell estão também presentes nas imagens gráficas, óticas, perceptuais e verbais, exercendo não uma predominância positiva mas discriminativa na conformação mental dos grafismos, das projeções, das metáforas e dos dados dos sentidos.
Podemos, então, trabalhar com a hipótese de que a formação da imagem de empresa, de produto ou das marca se dá com base em possibilidades e se configura por associações mentais, que são representadas por um panorama provisório (sígnico) de múltiplas determinações (as referências seletivas à experiência de uma mente com o objeto do signo). Os interpretantes desse signo adensado são suas determinações e o interpretante mental da imagem assim formada se dirigirá mais a essas determinações que ao objeto (no caso, e a grosso modo, à empresa, à marca, ao produto).
Mas quando falamos em “imagem” de uma empresa estamos também falando de outros signos que não apenas os icônicos. A experiência direta com a organização, as sensações que o cliente experimenta no contato cotidiano e corriqueiro com um banco, uma loja, uma mercearia, acumulam informações que se juntam ao signo “empresa”, inflacionando-o de características (interpretantes) que, em seguida, irão adensar sobremaneira aquela imagem inicial. Essas novas informações, obtidas no contato direto, físico, com a empresa possuem caráter indexical. Não formam apenas ícones, mas índices.
A imagem como Indício
Diferentemente dos ícones — que para funcionarem como signos dependem de hipotéticas relações de similaridade — e também diferentemente das abstrações gerais que comandam o universo dos símbolos, os índices são propriamente os sin-signos com os quais estamos continuamente nos confrontando nas lidas da vida. Eles são afetados por existentes igualmente singulares (seus objetos) para os quais os sin-signos remetem, apontam, enfim, indicam (Santaella, 1995: 158).
Os índices correspondem à segunda classificação que Peirce propõe para o signos e estão ligados à categoria da segundidade, na qual predominam as forças materiais, a ação-reação física, que vão constituir a base das representações. Um signo indexical – um índice – é, pois, algo que representa seu objeto a partir de uma experiência concreta com ele.
Um trovão é indício, aviso (índice) de chuva; uma fisionomia fechada é sinal de seriedade ou de que algo não vai bem; um sorriso é índice de bom humor, de alegria, histeria ou de simpatia, e assim por diante. O interpretante de um signo dessa categoria deriva sempre da experiência que possuímos, dos repertórios individuais, da cosmovisão, das idiossincrasias e da convenção tácita da cultura que abona e torna comuns procedimentos disseminados num determinado recorte social. Não se confunde com o ícone porque aqui as relações entre representante e representado não se dão por similaridade mas pela experiência. É o próprio Peirce quem afirma:
(O índice...) é um signo ou representação que se refere ao seu objeto não tanto em virtude de uma similaridade ou analogia qualquer com ele, nem pelo fato de estar associado a caracteres gerais que esse objeto acontece ter, mas sim por estar numa conexão dinâmica (espacial, inclusive) com o objeto (apud Santaella 1995: 159).
Esta categoria nos parece, portanto, bem mais próxima daquela “imagem” que as pesquisas de marketing, principalmente as de caráter quantitativo, procuram detectar: interessa à empresa saber como tem sido a experiência dos seus clientes com os serviços que oferece, com os produtos que vende e com a atendimento que presta. O cliente (interpretante mental do signo “empresa X”), por sua vez, indica, preenchendo questionários, apertando teclas ou mesmo manifestando-se oralmente, se está satisfeito ou não, se o produto atende às suas necessidades, se o atendimento tem sido correto e cordial, e dai por diante. Os resultados dessas pesquisas são tabulados para serem novamente interpretados pelos administradores como um “reflexo”, um feedback (um novo índice) de suas atividades no mercado. Aparentemente mais simples que o ícone, o índice fornece “imagens” (reflexivas) mais contundentes, menos abstratas e mais equiprováveis, distanciando-se da complicada imagem mental que os ícones evocam.
O mundo real não pode ser distinguido do mundo fictício por nenhuma descrição. Nada, a não ser um signo dinâmico ou indicial pode realizar tal propósito (...) É só pelo uso de índices que podemos tornar patentes se estamos lidando com o mundo real ou o mundo dos conceitos, das construções matemáticas (Peirce, apud Santaella 1995: 159).
As construções matemáticas representam, para Peirce, o mais alto nível de abstração, o ponto de maior desvinculação com o mundo real. Paradoxalmente, as pesquisas de mercado – de cunho indexical – procuram obter leituras diretas dos fenômenos, mas apresentam seus resultados de forma matemática – estatística –, levando os administradores a “abstraírem”, ao mesmo tempo que os conforta com a crença de que “contra fatos, não há argumentos”, convencendo-os de que os números são o retrato da “realidade”. Essa contradição camufla uma série de operações semióticas para fornecer a falsa segurança de que o mercado está sob controle, ou melhor, de que a “realidade” pode ser transformada a partir de decisões administrativas . Vejamos como isso ocorre nas pesquisas quantitativas: os dados (índices) são aferidos por respostas “objetivas” direcionadas por opções que devem ser respondidas de forma binária (sim ou não, às vezes porque) compiladas por incidência, interpretadas por análises contaminadas pelas intenções do discurso e utilizadas como subsídios a decisões administrativas que representam, em última análise, uma nova interpretação.
É importante salientar aqui que, quando Peirce confirma a tendência do índice a “distinguir o mundo real do mundo fictício”, ele se refere à relação entre o signo e seu objeto. Não ao interpretante mental. Santaella assim se manifesta sobre essa questão:
É claro que (o índice) só funcionará como signo ao encontrar um intérprete, mas não é este que lhe confere esse poder e sim sua afecção pelo objeto. Quando o índice é genuíno, realmente dual, o papel do intérprete é tão somente e apenas o de constatar a marca, no signo, de sua afecção pelo objeto (...) sua (do índice) função característica é a de chamar a atenção do intérprete para o objeto, exercendo sobre o receptor uma influência compulsiva (op. cit 160).
E comentando Peirce, diz ainda:
Disse também que o índice força o olhar do receptor a se virar para o objeto, compelindo o intérprete a ter uma experiência e, no caso do diálogo, faz o ouvinte compartilhar a experiência do falante (id.ibid. 161).
Com base nessa informação, questionamos novamente qual é a natureza do objeto aferido pelas pesquisas quantitativas do Marketing: se é a “imagem” da empresa na mente do consumidor, o caráter indicial não poderia predominar nessas estratégias, uma vez que o índice revela mais o objeto ao qual se refere do que o seu intérprete, o cliente. Estaria, então, o Marketing promovendo uma nova experiência do administrador com a sua própria empresa, como que propondo um exercício de reversibilidade, ao invés de revelar o cliente?
Lúcia Santaella chama a atenção para o fato de que a relação índice-objeto não exclui o interpretante mental, também conhecido como homem. E isso acontece porque essa ligação dinâmica tem duas implicações básicas: revela o lado do objeto individual ao qual o signo “está existencialmente, e até mesmo espacialmente conectado” e o lado do interpretante, “sua conexão com os sentidos ou a memória da pessoa a quem serve de signo” (id.ibid 161).
O fato do signo indicial embutir uma “conexão” com a memória do receptor traz uma série de implicações que o tornam menos simples de ser aferido por um terceiro interpretante. E isso acontece porque o observador do objeto ou do fenômeno jamais poderá traduzir com toda intensidade sua experiência. A ação-reação que caracteriza as relações de secundidade embute também as sensações e qualidades da primeiridade, o que explica a motivação para a ação (que nunca é absolutamente gratuita) e as peculiaridades da reação (determinada pela tal “conexão” com os sentidos ou a memória, ou seja, pela relação com o repertório, os valores e as crenças – a cultura – do intérprete). Se considerarmos o signo indicial apenas em seu relacionamento dual, estaríamos reduzindo drasticamente uma série de categorias que emergem da experiência humana e que estão contidas nele. Em outros termos, estaríamos retirando do processo semiótico aquele que para Bystrina é o eminente produtor de signos: o homem.
Assim, o fato de o índice apontar (como indício) para o seu objeto não pode traduzir informação mais substancial que a certificação da presença operativa de um elemento externo e a sua natureza (informada pela dimensão icônica que todo índice carrega). O conhecimento da regularidade (ou não) da ocorrência, de suas leis, determinações e modos de funcionamento só será possível por eleborações de outra ordem, que considerem os fatores culturais, as circunstâncias do tempo/espaço em que ocorrem, o que possuem de individual e geral, e assim por diante.
Tal constatação nos leva à terceira categoria peirceana, a categoria do símbolo, em que se completa a tríade – sentimento/ vontade /conhecimento – que parece melhor responder às nossas indagações sobre a formação da imagem.
A Imagem como Símbolo
Ao examinarmos a categoria do símbolo é preciso esclarecer, ainda que rapidamente, como se dá a presença da mente interpretante (do homem) na filosofia de Peirce, visto que nesse estágio o interpretante – tão importante na caracterização da imagem – se impõe de forma inequívoca.
As categorias peirceanas foram concebidas como “categorias da mente e da natureza”. Isso significa que elas não dependem, em última instância, da presença do interpretante homem para continuarem a existir na natureza. O inevitável desconforto que essa afirmação instaura, em contraste com o pensamento de Bystrina, por exemplo, pode ser atenuado, quando verificamos que a “Teoria Geral dos Signos” de Charles Peirce se inscreve numa arquitetura filosófica muito mais ampla que parte da fenomenologia (para ele, o ponto de partida de qualquer trabalho filosófico), passa pela estética, ética e semiótica (propriamente dita) ou lógica e desemboca na metafísica, “ciência da realidade, das forças que atuam sobre nós, e que determinam o que, por fim, devemos acreditar”.
A ciência dos signos investiga o fenômeno da mediação, que também está presente nos vegetais, nos micróbios, nas inteligências artificiais e sem a qual não existe conhecimento humano. Alguns intérpretes de Peirce, como Lúcia Santaella, Thomas Sebeok, G. Deledalle, W. Nöth e J. Ransdell são unânimes em reconhecer que a geração de signos não é um atributo exclusivo da mente humana, muito embora seja a única condição possível de se entender como opera o pensamento e o conhecimento do homem. “Semiose ou autogeração (de signos) é assim, também, sinônimo de pensamento, inteligência, mente, crescimento, aprendizagem e vida “, afirma Santaella (1995:19).
Porém, essa questão não se encerra em consenso. Gerard Deledalle entende que a autogeração de signos independe da presença do homem, mesmo quando Peirce se refere a um possível signo-interpretante final com a morte do sujeito pensante:
A aplicação denotativa de um signo reside no fato de o signo estar ligado direta e fisicamente ao seu objeto, ou indiretamente, no caso de manter vínculo com um outro signo. (...) a função representativa (...) não reside nem em sua qualidade material, nem em sua pura aplicação demonstrativa porque é algo que o signo é – não em si mesmo ou numa relação com o seu objeto – a respeito de um pensamento que o interpreta ou, segundo expressão de Peirce (...), a respeito de um “interpretante”.
Qual é a natureza desse interpretante? Quando Peirce fala de “pensamento que interpreta”, com pensamento não está designando um sujeito pensante, mas tão-somente um pensamento ou conhecimento. Dissemos que pensamento é um signo. A primeira observação que se deve fazer é a de que o interpretante de um signo é outro signo e que o signo interpretante de um signo requer o mesmo, o outro signo interpretante, sem o qual seria possível deter-se essa cadeia num interpretante final. Não obstante, Peirce afirma que não há nenhuma exceção à lei segundo a qual “todos os pensamentos-signos são traduzidos ou interpretados pelos pensamentos-signos seguintes, salvo no caso do fim brutal de todo pensamento que é a morte (5.284). O que pode querer dizer que se o sujeito da lógica – o homem – desaparece, a série dos signos se quebra porque, nessa morte, o último signo haveria tido um signo subsequente, um interpretante (final). O que é final, porém, não é o signo, mas a vida do homem que chegou ao seu término.
Em resumo, o mundo pensado é um mundo de signos; cada signo é, por sua vez, interpretante e interpretado: interpretante do que o antecede e interpretado pelo que lhe segue (1996: 26).
O argumento de Deledalle vale mais aos nossos propósitos por elucidar a seqüência interpretante (infinita?) que o signo (representativo-simbólico) comporta do que pela exclusão do pensamento humano dessa cadeia, uma ambiguidade bem-vinda que pressupõe a complexidade da comunicação humana.
O símbolo, em Peirce, é a dimensão do hábito, da lei, das normas, das regularidades. Ele representa seu objeto pela arbitrariedade das convenções e pode ser assim compartilhado por seus interpretantes nas relações culturais. Os códigos são símbolos porque não podem funcionar senão por acordo, pelo exercício da habitualidade; as crenças não são fé no improvável, mas hábitos mentais que determinam nossas ações . Os valores de um grupo social, político, econômico resultam sempre de suas crenças e a dinâmica das mudanças nesse acervo está relacionada com o maior ou menor estímulo à instauração do exercício da dúvida .
Percebemos, assim, desde já, o caráter solidário e plural do signo “símbolo” que, ao contrário do ícone e do índice, não pode ser concebido como bastante procurador individual da realidade. É também a determinante (constante, múltipla, complexa) presença do interpretante (sígnico ou mental) que faz do símbolo um signo completo, que integra o ícone e o índice, respondendo, de certa forma, aos problemas que detectamos quando investigamos a possibilidade da imagem das empresas ser formada apenas com base em sensações individuais ou em relações físicas e materiais entre signo e objeto (ou fenômeno). O signo de terceiridade desloca nossa atenção para seus interpretantes, desviando-a de suas próprias determinações. E por isso nos parece o mais adequado para explicar a imagem das empresas, tal como é entendida no ambiente das organizações.
O que se procura aferir nas pesquisas de imagem é – independentemente da eficácia dos métodos de pesquisa de Marketing – essa dimensão poliscópica da significação de uma empresa para seus públicos: o que ela “representa” para eles ou como eles a “representam” segundo seus hábitos, crenças e costumes.
Essa imagem – seja de empresa, de produto, de marca – é desenhada na mente do consumidor com base em atributos desejáveis ou rejeitáveis, pautados em valores considerados caros às comunidades nas quais as empresas atuam. O atendimento, o não-atendimento ou o atendimento parcial a esses requisitos constituirão principais informações para que – ponderados os graus de valor entre eles – a imagem possa ser considerada – em todas suas nuances —, favorável ou desfavorável, positiva, negativa ou neutra, com todas as decorrências desse julgamento influenciando na maior ou menor preferência do público.
Entretanto, os maiores subsídios que uma pesquisa de imagem pode trazer aos administradores não residem na configuração final da “imagem”, mas nos indicadores parciais aos atributos elencados. Esses sinalizadores do desempenho da empresa não podem aqui ser entendidos como indícios de relação inequívoca com os fatos que os poderiam ter gerados, mas como símbolos abertos a múltiplas interpretações, ligados que estão a todos os atributos elencáveis de uma possível imagem geral e genérica.
Da mesma maneira que um signo de terceiridade como a palavra – escrita, falada, lida ou ouvida – mantém uma relação habitual e convencionalmente mediada com o objeto ou fenômeno que ela representa, a imagem – ou as diversas imagens nas quais a imagem mais geral se apóia – resulta de interpretações possíveis segundo vetores culturais determinados.
E, além disso, não podemos nos esquecer de que o símbolo compreende as qualidades e sensações do ícone, as determinações do índice e não pode prescindir deles para instaurar-se como regra, hábito, ou convencionar-se como lei. Como signo completo, o símbolo é, pois, a categoria que melhor caracteriza as relações culturais, o pensamento humano e as leis do conhecimento.
Como a imagem da empresa é formada a partir da experiência que o público vivencia com ela, dos conhecimentos que adquire sobre seu funcionamento, sua história, seu desempenho presente e suas metas, do hábito cristalizado pelo contato regular com os elementos do discurso – dos textos culturais – que o sistema cultural “empresa” produz, podemos dizer que a imagem resultante na mente desse público tem o caráter de símbolo... e mais... que ela também se configura como texto cultural.
A Imagem como Texto Cultural
A imagem das empresas articula, assim, os códigos da cultura. O signo ao qual a Semiótica da Cultura se refere é aquele que Peirce denominou símbolo, o signo que carrega não só as determinações de seu objeto como também as diversas possibilidades interpretantes de si mesmo e dos sujeitos que com ele mantêm relação. São essas relações que, para Bystrina, fazem o signo “significar”:
Na escola de Semiótica da Cultura, entendemos por signo um objeto material que é produzido por um produtor de signos (isso é importante: não existe um signo que não seja produzido por um ser vivo), que seja recebido por um receptor, e interpretado por esse receptor (1995: 2-3).
O signo é, pois, um “objeto material” porque na cultura ele se inscreve não como pensamento ideal e especulativo, mas como marca positiva configurada sob espécie (uma vestimenta, uma atitude, um gesto, um ritual, um sistema de troca comercial, um produto, um serviço, uma hierarquia, etc.).
É produzido por um ser vivo, porque a cultura é constituída por sistemas de símbolos. O homem, animal simbólico por excelência, é o único existente que tem a competência de criar símbolos, articulando os códigos daquilo que Bystrina denomina “segunda realidade”, a realidade da cultura.
De nada valeriam os símbolos se não fossem comunicados, no sentido primordial de “comunicação” – estabelecer alguma coisa em comum. O processo comunicativo está na base do funcionamento da cultura, pois os signos são compartilhados entre indivíduos que os recebem e interpretam. Bystrina diz que essa dimensão, entretanto, não é a mais importante:
Esta é a chamada dimensão pragmática da semiose (produtor do signo/emissor, signo e receptor do signo). A dimensão mais importante é a dimensão semântica entre o signo e o significado. Existe também da dimensão sintática entre os diferentes signos (id.ibid.).
A dimensão semântica do signo é sua relação com o interpretante, aqui dualmente entendido, como na semiótica peirceana: interpretante do signo e interpretante mental. Ou seja, o signo não apenas porta informações sobre seu objeto, mas se atualiza a cada nova recepção:
O signo tem que ser capaz de ser percebido pelos sentidos, tem de ser produzido por seres vivos – animais ou homens – e recebido e interpretado por receptores igualmente vivos. Cada objeto conhecido por nós contém em si uma informação latente, que nós percebemos pelos nossos sentidos. Neste momento, aquela informação latente modifica-se e se transforma numa informação atualizada. Por isso, tudo o que percebemos já é uma informação atualizada do objeto. Os signos são objetos especiais porque não contêm apenas informações sobre si próprios, mas também informações sobre aquilo que está imanente dentro dele (id.ibid.).
Mas há uma significativa diferença: para Bystrina – e para a Semiótica da Cultura – os interpretantes sígnicos não contêm apenas as determinações do objeto ou do fenômeno, mas são igualmente condicionados (afetados) pelas contingências da cultura. É segundo os paradigmas de cada cultura que o signo atualiza informações sobre seu objeto. Dessa forma, o interpretante mental já recebe o signo pré-formatado às possibilidades de sua cultura, sem que isso represente – necessariamente – uma filtragem ideológica; trata-se de uma operação restritiva natural resultante do fato de cada cultura operar por textos que possuem estrutura, delimitação e expressão próprias. É isso que torna cada cultura peculiar e diferenciável de sua não-cultura e das demais culturas que lhe são afins. Por outro lado, é preciso considerar a universalidade de certos mecanismos que regem a articulação desses códigos e que estão presentes em todas as culturas de todos os tempos, aparecendo também, de forma “imanente”, como quer Bystrina, no signo.
Neste ponto, a discussão sugere que adentremos o território das relações sintáticas, a gramática segundo a qual os signos se articulam em dada cultura, o que, com certeza abriria um novo leque especulativo sobre a formação da imagem.
Importa, antes de tudo, deixar claro que a complexidade embutida na aparente simplicidade com que o Marketing aborda a questão da imagem empresarial precisa ser alertada como perigosa aos propósitos daqueles que acreditam na força dos cases de sucesso ou nos depoimentos espetaculares de empresários que se submeteram à mágica da cirurgia restauradora dos gurus de plantão.
A reflexão que empreendemos apenas esboça o que está por vir. E somente desse aprofundamento (que paradoxalmente se dá por um alastramento lateral de relações), acreditamos, possam surgir soluções “simples”, ainda que invendáveis.
Bibliografia
Alencar, J. Arraes (1944) – Vocabulário Latino. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.