"Dediquei uma parte de minha vida às letras e creio que uma forma de felicidade é a leitura ... devemos ler unicamente aquilo que nos agrada (...) um livro tem de ser uma forma de felicidade". (Jorge Luis Borges)
Consta que Borges, leitor compulsivo, ao cabo de seus 86 anos, próximo à morte, já cego, lia pelos olhos de um ainda jovem leitor de palavras e imagens, Alberto Manguel. Esse argentino que emprestou os olhos ao grande escritor escreveu, pelo menos, dois livros muito interessantes sobre a leitura das imagens, “Uma História da Leitura” e “Lendo Imagens”, ambos publicados no Brasil pela Companhia das Letras.
A questão da permanência do livro na era da imagem digital ainda é um dos assuntos mais polêmicos nesses tempos de Internet. Compreensível. Quem ainda não se perguntou como é possível a um jovem, adolescente, não acometido de moléstia grave, permanecer estático diante de uma escrivaninha ou sentado numa poltrona mirando com olhos, durante horas, as monótonas linhas escritas de um livro com poucos atrativos visuais, ainda que seja um Harry Potter? Conheço vários que ganharam de presente, de suas tias ou avós, a malfadada coleção e sequer ultrapassaram duas ou três páginas. Soube de outros – pioneiros - que leram algumas até o dia em que foi lançado o filme.
Há crianças que se esforçam em ler e até mesmo demonstram prazer nesse hábito. Muitas delas o fazem para agradar os pais, principalmente aqueles que sempre sonharam ter uma infância como a de seus filhos.
Borges, o melhor escritor das Américas e, com certeza, o maior leitor de todos os tempos, não apenas lia muito quando criança como também decidiu ser escritor aos seis anos de idade. Na época isso representava decidir ser corredor de fórmula um, astronauta ou jogador de futebol. Ele seguia as trilhas de um modismo e de uma contingência inevitável: nascido de uma família culta e rica, estava predestinado a levar adiante as tradições européias, tão intensamente mimetizadas na colônia urbana portenha. Não perdeu tempo assistindo programas da Xuxa, projetando-se em avatares de videogame ou acompanhando os rasos e idiotizantes diálogos de um Big Brother ou de uma Casa dos Artistas. Sorte dele.
Em “A Biblioteca de Babel”, um conto que faz parte de “Ficções”, escrito na vitalidade de seus 45 anos, Borges recriou o Universo numa biblioteca imensa, infinita , na qual estariam depositados todos os livros possíveis, imagináveis e inimagináveis, todos os que foram escritos e também todos os que poderiam ter sido escritos. Em um dado momento, ele se depara com uma possibilidade lógica: a de que deveria haver um livro que fosse “um compêndio perfeito de todos os demais”, o livro dos livros (assim como o Cântico dos Cânticos, o prólogo dos prólogos, etc...).
Essa alucinação literária de Borges é bem o retrato do que hoje vemos na Internet: textos e mais textos distribuídos em bilhões de sites; textos que se repetem, que se recriam, que nada criam, que para nada servem ou que constituem o sumo (ou o bagaço) de leituras periódicas, textos sobre textos, textos sobre textos de textos e daí em diante. E quem os lê? E como os lê? Como chegam até eles, como os descobrem?
O livro dos livros da biblioteca de Babel é um livro também infinito (Borges o descreve como um livro de páginas que se multiplicam, quando folheadas, em outras tantas páginas mais finas), é um hipertexto que jamais termina porque os assuntos para os quais ele remete não cessam de remeter a outros e outros, numa sucessão infinita.
Engana-se, porém, quem pensa que os textos literários são discretos, lineares e passíveis de hermenêuticas exatas, interpretações fechadas, inequívocas, ainda que sejam aqueles de fácil leitura, escritos pelo imortal (e finito) Paulo Coelho, ou outro não tão bem sucedido no gênero. Eles também são, à sua maneira, hipertextuais. Toda fala cita outras falas, pois “falar é incorrer em tautologias”. Dessa forma, “a certeza de que tudo já está escrito nos anula ou nos fantasmagoriza”, afirma Borges, diante da inevitável conclusão de que qualquer livro pode ser o compêndio de todos os demais. E isso nem tem a ver com sua eventual qualidade literária, mas com a característica hipertextual de tudo (ou quase tudo) o que se fala e que se escreve.
Borges teve a sorte de não ler Harry Potter, pois morreu em 86,. Mesmo se estivesse vivo, não gastaria seu precioso tempo e sua precária e tão comprometida visão com literaturas do gênero ou com best-sellers de auto-ajuda do tipo “eu te darei o céu”. Nem por isso descartaria tais subprodutos literários de uma biblioteca universal, cujos livros falam periodicamente de si mesmos e de quem os lê ou escreve.
Independentemente da qualidade do mercado editorial, muito se escreveu, muito se tem escrito, mas – nos perguntamos - quem está lendo, quem lê o que é escrito, hoje, em livros?
Há muitas controvérsias quando a discussão se pauta em números. As editoras brasileiras nunca lançaram tantos livros como nos últimos anos. Superamos a marca da Espanha, um dos mais destacados centros editoriais do Planeta, e estamos em ritmo de crescimento frenético. É importante lembrar que a população brasileira continua crescendo vertiginosamente, o que - por baixo – explicaria o crescimento do consumo. Mas a pergunta que nos fazemos não é quantas pessoas compram livros, mas quantas lêem esses livros.
Há uma diferença que parece passar despercebida na mídia: um sucesso editorial em vendas não significa “leitura realizada”. Uma pessoa alfabetizada e com um nível médio de escolaridade poderia ler, em média, um livro de 200 a 300 páginas a cada semana, considerados os afazeres médio dessa pessoa média. Poderia fazê-lo, a princípio, desde que tivesse interesse e tivesse desenvolvido disciplina interna que possibilidade o desligamento temporário do mundo exterior para a concentração que uma leitura (média) requer. Quem pode dispor de pelo menos duas horas diárias para leitura, isolando-se do telefone, da TV, do computador, da música, do barulho das crianças, das compras do supermercado, das perseguições do chefe, da vigilância dos que querem seu cargo, do trânsito, dos congestionamentos, da falta de dinheiro, etc?
Uma pessoa média, urbana (como 80% dos atuais brasileiros) está sujeita a (e é sujeito de) uma série de distrações, perversões, dispersões e diversões que solicitam movimento, deslocamento, atenção múltipla e repartida, atitudes absolutamente incompatíveis com a leitura de livros. Assim, no burburinho dos ritmos do século XXI, só é possível ao dispersivo e múltiplo cidadão médio a leitura diária de algumas notícias de jornais e revistas. Mas, como bem nos alertou o sábio chinês Lin Yutang, “não se pode chamar leitura a essa tremenda quantidade de tempo que perdemos com jornais”. Será?
Há algum tempo, Nicholas Negroponte, um dos maiores expoentes do mundo da informática e um dos papas do MIT, em visita ao Brasil, revelou, sem nenhum escrúpulo, no programa Roda Viva da TV Cultura, que não havia lido sequer um livro em toda sua vida; muito menos escreveu seu próprio livro, o que foi feito por um profissional do texto, contratado por ele para transformar informações orais em páginas escritas. Quanto a essa segunda revelação, não temos muito o que estranhar: de que outra forma entenderíamos um livro escrito por Adriane Galisteu? Porém, para uma personalidade de sucesso no mundo da nova intelectualidade informatizada, a declaração causou espanto e exige reflexões mais aprofundadas.
Tudo no leva a crer que as pessoas que compram livros não estão, necessariamente, lendo-os. E o que levaria um cidadão médio a despender dinheiro para adquirir algo do qual não desfruta? A resposta parece estar na segunda parte da mesma pergunta e pode surgir, com maior clareza, quando ampliamos as possibilidades de entender o que significa desfrutar um livro.
O livro, antes de ser algo que se presta a alguma utilidade (tal como o aprendizado sistemático ou o conhecimento induzido nas empresas) é um fetiche, um objeto possuidor de qualidades mágicas, uma vez que contém – a princípio – a solução para alguns problemas ou alguns problemas para nossos excessivos estoques de soluções. Possuí-lo, equivale a deter o dom do conhecimento, antes do conhecimento propriamente dito; equivale a ter opções antes de o dilema se instaurar, a ter possibilidades antes da necessidade. Assim, ter acesso ao livro é ter acesso aos seus poderes mágicos, ainda que não o saibamos. O cidadão médio urbano e comum compra livros, não os lê e se sente melhor apenas em tê-los.
Estudantes de graduação – salvo estranhas exceções – sequer os compram porque, sem maiores motivações, ainda não alcançaram o estado do fetiche. Porém, estudantes dos cursos de especialização, mestrandos e doutorandos compram livros e não lêem sequer uma ínfima porcentagem do que lhes chegam às mãos. Compram para consultá-los em caso de necessidade ou de inevitabilidade. Lêem pouco, aos poucos, ainda que tenham forçosamente de resenhá-los ou prestar satisfação aos seus orientadores.
Poucos lêem o que compram, saboreiam o que adquirem, fazem da leitura um ato de prazer e de amor, tal como o fez Borges em toda sua vida. Borges não lia por obrigação, mas por curiosidade e prazer. E mesmo assim, os livros nunca deixaram de ser, para ele - até o final de sua vida - fetiches violentamente arrebatadores. Manguel testemunhou em várias oportunidades o fervor com que Borges, já cego, cheirava livros e lambia suas lombadas (as do livro).
O ex-ministro e deputado Delfim Neto, a despeito de suas duvidosas opções políticas, é famoso por possuir uma das maiores bibliotecas particulares do País. Certa vez , num dia de semana, à tarde, eu o encontrei num sebo encravado entre duas casas de strip-tease, na parte baixa da rua Major Sertório, em São Paulo. No porão da livraria, ao lado de um abajur, ele folheava livros amarrotados e empilhava seus preferidos. Após aconselhar-me a leitura de Georg Simmel, o abastado político revelou-me ser aquele o seu esporte predileto, seu furtivo prazer, o “segredo” de possuir a maior e mais valiosa biblioteca particular do País.
Dessa e de outras formas, fetiches ou ferramentas de trabalho, ocasiões de conhecimento e prazer, o livro ainda parece encontrar espaços num mundo informatizado, dominado pelas imagens digitais e mediatizado pela economia das modernas tecnologias de comunicação.
Porém, se a era do livro ainda nos parece promissora, outros textos se tornam mais vivos que nunca, provando-nos que não necessitam competir com os livros para assumirem novos espaços no cenário das leituras. Esses novos textos dançam, requebram e piscam intermitentemente nas telas dos computadores e das TVs; ganham cores e formatos que apenas os artistas gráficos russos do início do século XX seriam capazes de vislumbrar. Deixam as palavras e ganham outros ambientes, levando o cidadão médio urbano a entender o que os semioticistas russos já tinham compreendido nos anos 60: que “texto” é tudo o que pode ser lido, além das óbvias palavras organizadas em frases, períodos, parágrafos, capítulos e títulos.
Alberto Manguel lia livros para Borges. Borges ouvia, imaginava e viajava pelos sons e sentidos lidos, aos quais se agregava a voz, a entonação e a paciência de Manguel. O resultado desse affair era um outro texto, mais imaginativo e visual, a despeito da cegueira física do grande leitor de palavras. Manguel desenvolveu sobremaneira sua já aguçada sensibilidade para perceber a complexidade que atua em cada ato de leitura, seja ele de um livro, seja de uma imagem cinematográfica, de uma pintura ou de uma visão cotidiana do centro de uma cidade.
Hoje ainda se escreve muito. Há muito texto na Internet. Há muita porcaria também, mas ninguém é obrigado a ler Harry Potter ... o que não desvaloriza sua importância num mundo plural, exibicionista e oferecido, que se insinua para qualquer um, mesmo para quem não pode vê-lo.
Ainda é bom que as pessoas sejam estimuladas a ler. Mas que não se isolem do grande texto que contém essas leituras. O mundo atual oferece muitas opções e solicita ao seu leitor atenções múltiplas, percepções ampliadas, ou seja, competências para explorar inter e hipertextos. Nesse cenário, educar para a leitura corresponde a propiciar guias capazes de desenvolver o discernimento entre o que deve e o que não deve compor o ambiente textual.
O leitor do século XXI precisa decidir em que lugar vai perder o seu tempo. O critério do prazer, enfatizado pelo sábio Jorge Luis Borges, ainda nos parece o mais simples e o mais eficaz paradigma porque, para valer a pena e cumprir seus efeitos, a leitura tem de ser uma forma (competitiva) de felicidade.