Esse País não presta! Um europeu poderia afirmar que um governo não presta, que a situação econômica não presta, ou mesmo que o povo não presta, mas dificilmente diria que seu país não presta. Deve haver alguma razão que coloca os brasileiros com respeito à própria identidade nacional, em uma curiosa exclusão interna, que permite articular a frase que me interpela ... (Contardo Calligaris, Hello Brasil, Ed. Escuta, p.14)
O italiano Contardo Calligaris, como, aliás, todo bom italiano, não entende como alguém pode falar mal do próprio País. Isso porque jamais passou pela cabeça deles maltratar a mama pátria nem consigo mesmos, muito menos com os outros, com os estrangeiros. Podem estar na miséria, vivendo aquela vidinha terrível que Fellini nos mostrava em La Dolce Vita ou que Giuseppe Tornatore embalava nas lindas imagens de Cinema Paradiso, podem ter o governo de direita mais baixo nível de toda a história européia... mas se orgulham de ter mais de dois mil anos de história civilizada, de ter memória incrustada nas paredes, arte por toda a parte e pizza à vontade.
Vilém Flusser, um filósofo tcheco que aqui viveu lecionou e sobreviveu como intelectual e professor durante muitos anos, até morrer estupidamente num acidente de automóvel quando retornava à Praga, escreveu um livro chamado “Fenomenologia do Brasileiro”, no qual nos mostra que longe de sermos o “bom selvagem” ou o gentil cidadão, somos um povo capaz de imprimir tamanho dinamismo aos significados que poucos conceitos resistem à nossa feroz inteligência.
Longe dos Da Matta, Buarques de Holanda e Darcys Ribeiros, o desconhecido Abelardo Romero em seu “ A Origem da Imoralidade no Brasil” de 1967 já procurava explicações para a manifesta baixa-estima do brasileiro, apoiado em uma hipótese no mínimo interessante: nós nos convencemos rapidamente de que somos aquilo que o olhar estrangeiro diz que somos. E o que somos, historicamente, para aqueles que nos vêem como colonizados, dóceis e carnavalescos? Vejamos o que diz Romero:
...de um modo geral, somos para eles uma nação de indivíduos amáveis, transigentes, contemporizadores, acomodados. Somos, em suma, uma nação doce e mansa. Mas não seria toda essa mansuetude uma simples e envergonhada dissimulação de debilidade? Até que ponto resistiríamos a uma conquista pela violência ou, pior ainda, por meio de um longo, lento e suave processo de assimilação que fizesse cair nossa barreira etnocêntrica?
Talvez tenhamos mesmo sido desmoralizados sistematicamente por mais de três séculos, por Portugal e, posteriormente, pelos franceses, ingleses e holandeses. Nosso povo se formou da mestiçagem de degredados, mal-amados filhos do fado, negros importados e nada importantes, nativos indolentes e folgados ... e toda essa mistura foi temperada numa terra gentil, a pátria amada Brasil. Um lugar calorento, poeirento onde não há ciclones, furacões, terremotos, vulcões ou atentados terroristas .. mas em compensação, a gentinha ...
Ao abrir o livro do cubano José Lezama Lima (A Expressão Americana, Ed. Brasilienese, 1988) e que se inicia com a emblemática afirmação “somente o difícil é estimulante”, a doutora semioticista Irlemar Chiampi (tradutora e adaptadora da obra) nos brinda com um excelente texto sobre a questão da identidade cultural da latino-américa , apontando a questão da mestiçagem não só como determinante de nossos destinos, mas, sobretudo, como nosso signo cultural. A heterogeneidade de nossa formação em contraste com “a homogeneidade dos Estados Unidos e os particularismos etnocentristas dos europeus” nunca permitiu discursos isentos da sanha da dominação.
A inspiração daqueles que nos libertaram do jugo colonizador não foi suficiente para superar a sensação de vazio, o “estupor ontológico” que se apoderou dos estados nacionais americanos desde o início do século XX. As duas guerras, ainda que distantes geograficamente de nós brasileiros, foram terrivelmente importantes para fazer nascer na consciência do povo alguma sensação de pertencimento, de cidadania, de soberania, até então conceitos estratégicos ligados às fechadas esferas militares. Porém, longe de conseguirmos entender as tendências nacionalistas, estávamos tão mais ocupados com os destinos do mundo do que com uma improvável invasão de nossa terra pelos importantes estrangeiros que travavam o conflito armado lá no continente europeu..
Nosso nacionalismo confuso e difuso se explica: estamos na contramão do historicismo hegeliano, aquele que concebia a história como um deve ser guiado pela razão. Segundo Lezama Lima, o povo americano tem na sua base histórica uma multiformidade fundamental que se rebela contra toda e qualquer constrição de um a priori teleológico. Ou seja, não estamos sujeitos ou destinados a construir uma grande nação, um grande império ou um novo centro de referência para a história mundial. Ao invés, somos retroespectadores dessas histórias descontínuas, apreciadores marginais de uma linearidade histórica que não nos cabe e não nos pertence.
E isso é ótimo! Somos alheios à globalização enquanto movimento mundial. Esse é o tipo do negócio que só nos interessa na medida em que melhora nossa qualidade de vida. O que prejudica, o que exclui e deteriora nosso descompromisso mundial tende a ser veementemente descartado até mesmo pela diplomacia – que sabe de tudo isso mas se nega a alocar tal verdade no discurso internacional. A questão amazônica é menos uma questão egológica ( isso mesmo, de ego-americano) americana que uma piada de mau gosto. Não faz realidade porque não reflete em nosso espelho. E nossa realidade é espelhada, especular e espetacular! Alimentamos em nossos signos interpretantes totalmente despojados e desinteressados com os compromissos unilaterais solenizados pelos países poderosos. Quem se dana mais? Alguém tem dúvida de que a ALCA só não vai emplacar porque os norte-americanos desistiram de virar piada nas nossas mãos?
É nesse momento que devemos voltar ao consultório do doutor Calligaris para esclarecer a ele que a tal “exclusão interna” não passa de um paradoxo curioso para produzir efeito reverso. Ao falar mal de seu próprio País, o brasileiro se vulnerabiliza antes mesmo que um outro aventureiro se meta a fazê-lo. Existe um faro nacional para a proteção pelo ataque suicida. E o raciocínio mais potente, verdadeiro e tenaz não é para inglês ver, muito menos para entender. O estrangeiro, antes de agredir, se desinteressa pelo nosso desinteresse explícito, vai embora porque acredita que lá dentro não tem nada de importante. Não bate e não enche o saco porque se convence de que somos mesmo gente de terceira categoria mundial.
Enquanto isso, preservados da globalização predadora, continuamos enganando os Galligaris e Buches da vida. Vilém Flusser entendeu primeiro aquilo que nem nós nos damos conta mais de entender: de tanto enganar os outros, acabamos por enganar a nós mesmos. Porém, no fundo, sabemos – ao contrário do celebrado Orson Wells - que nada disso é verdade. Mas é muito bom que eles continuem pensando que é. Assim não mexem com a gente.
Lezama Lima disse que “ todo discurso histórico é, pela própria impossibilidade de reconstruir a verdade dos fatos – uma ficção, uma exposição poética, um produto necessário da imaginação do historiador”. Ele também sabia da verdade ontológica que está no gene de cada americano miscigenado, mas que tão bem proliferou em almas e dermes brasileiras. Nós refazemos, desfazemos e inventamos uma história para cada situação. Somos capazes de re-significar o futuro com a mesma facilidade que mascaramos um passado - glorioso ou inglório, pouco importa.
Portanto, falar mal do Brasil é uma atitude tão nacionalista quanto falar bem. Combater nossos mentirosos e incompetentes políticos, celebrar a corrupção, lamentar a violência urbana e nos envergonhar com as manchetes terríveis que levam o nosso do nosso Brasil no exterior, tudo isso são apenas facetas defensivas de nossas riquezas internas e interiores. São formas purulentas de não deixar o mal permear nossa alma, corroer nosso espírito, corromper nosso humor.
E nunca é demais falar mal desse timezinho de futebol que veste a camisa amarela e faz com que a gente saia acenando bandeirinhas pela rua. Os brasileiros são todos uns sem-vergonhas!