Aquela rota para o trabalho deprimia-o. Antes a mesma servira para momentos de contemplação, deleite, amor, além, é claro, de símbolo da rotina ordinária na qual se metera. Durante os anos passara por ali diversas vezes a caminho do trabalho, acompanhado da sua mulher (agora ex-mulher). A pista era miraculosamente bem conservada: sem buracos ou deformações aparentes que maculassem seu traçado. À direita estava o parque, pleno de verde e, entre a pista e o parque, estava a calçada com seus postes de luz. Foi numa dessas idas ao trabalho que, olhando para os postes, reparou um passarinho muito bonito pousado numa das linhas. Aquilo chamou a sua atenção nem se sabe por que. Passarinhos em linhas de postes eram a coisa mais comum que existia. De fato, ele apenas dirigiu-lhe um olhar apressado, diria mesmo incomodado pelo fato de um ser tão pequeno e desprezível ter tirado sua atenção do trânsito e de seus pensamentos monótonos... quebrar a sua rotina irritáva-o profundamente.
No dia seguinte, mecanicamente, olhou para aquele poste e, surpreso , viu o mesmo passarinho (não saberia identificar sua raça, mas reparou seu aspecto, sua cor), "Que concidência! No mesmo poste, a mesma hora, no mesmo lugar...", pensou. No terceiro dia, encaminhou-se ao trabalho já procurando por sua presença e, para sua alegria, o mesmo estava lá como a esperá-lo: estático, galante, penas da cabeça arrepiadas como a desafiar a todos que estivessem ao redor. Com o passar dos dias, aquele pequeno ser alado tornou-se seu companheiro. Encontrá-lo na ida para o trabalho tornou-se uma obrigação. Ao ter certeza da sua presença perene, fez a mulher reparar no mesmo e, aí, aquele passarinho passou a ser colega da rotina enfadonha que tomava a vida dos dois em direção ao trabalho. Aliás, ele tornou-se o contraponto a esta rotina modorrenta, apesar de fazer parte dela. Quando aproximavam-se do poste, apostavam como o passarinho estava: virado para a pista, de costas, batendo as asas... a monotonia sofrera um pequeno revés.
Passados meses, anos talvez, a mulher tornara-se obcecada com o encontro matinal. Se, por algum motivo, o passarinho não estivesse no poste era sinal de mau agouro. Seu humor se modificava e sua risadas e brincadeiras pré-poste eram substituídas por um vazio tumular. Ficara escrava do bicho.
Agora eles estavam separados. Ele bem que tentara uma reconciliação mas ela se mostrara irredutível e não cedera um milímetro ao pedir de divórcio. Seis meses depois, ele continuava seguindo o caminho para o trabalho e passara a ignorar o seu companheiro matinal. Acelerava o carro ao passar por ali e tentara inutilmente descobrir outros caminhos para o trabalho mas todos terminavam naquela rua maldita, ao lado daquele parque dos infernos. Queria distância disso...
Certo dia, tomado de uma decisão súbita, parou o carro no pequeno estacionamento que ficava a poucos metros do fatítico poste e caminhou na direção do seu ex-companheiro. O mesmo continuou lá em cima, indiferente a tudo e a todos, como sempre fora. O olhar dele fixou-se obcecadamente naquela pequena figura e desejou então o passarinho para si. Seria um resgate de uma parte boa do seu passado. Queria ter o passarinho em suas mão e contar-lhe como ele tornara-se parte relevante da sua vida durante todo esse tempo. Ficou tão tomado dessa idéia que, na manhã seguinte, comprou uma pequena armadilha para pegar o bicho e armou-a perto do local onde este ficava pousado. E assim passou-se uma semana... ao final do expediente, dirigia seu carro ao parque, armava sua arapuca e ia embora. No outro dia, bem cedo, chegava ao local e verificava se obtivera êxito. Pegou alguns passarinhos, mas não o desejado e, por isso, soltou-os. Tentou vários tipos de isca e nada. Aquilo ocupou mais um espaço na sua nova rotina monótona.
Passados três meses, finalmente conseguiu. Ao aproximar-se da armadilha naquela manhã, já sabia que era o seu passarinho que estava lá. A sua ausência na linha do poste e um saltar nervoso dentro da armadilha fizeram-no correr dando gritos de "Consegui! Consegui!". Aquela imagem era engraçada: ele de terno, debruçando-se sobre a armadilha, sujando um pouco os joelhos. Porém, ao retirar a mão da caixa segurava o prêmio tão desejado.
Olhou aquele pequeno ser de aspecto tão frágil e acariciou a cabeça do mesmo. Roçou seu rosto nas penas macias e disse-lhe mil palavras ao pé do ouvido. Lágrimas grossas escorriam-lhe pela face quando tomou o passarinho entre as duas mãos e, num gesto rápido, esmagou-lhe o corpinho... finalmente pegara o desgraçado-filho-da-mãe! Sentir os ossinhos quebrarem-se nas suas mãos fê-lo sentir um prazer ausente desde que se separara. Agora Conseguiria, finalmente, apagar essa parte do passado que teimava em ferir-lhe o âmago, todos os dias. Abrindo as mão, deixou que a pequena figura caísse no chão, o corpo inerte. "Estou livre" pensou. Ia dirigir-se ao carro e lançou um último olhar sobre seu passado. Parou subitamente pois o pequeno passarinho ainda vivia: Um brilho de dor e pânico nos olhinhos era marca indelével que o seu passado teimava em não morrer. Aproximou-se do mesmo e pisou-o fortemente com o pé esquerdo, sentindo o resto daqueles ossinhos frágeis se partirem sob a sola do seu sapato. Ao retirar o pé de cima daquela massa de carne foi tomado de uma tranqüilidade que há muito não sentia. As asas ainda tremiam num reflexo motor, mas não havia a menor dúvida que o seu passado fora morto ali (ou, pelo menos, uma boa parte dele). Passou o pé na calçada repetida vezes, a fim de limpar seu sapato de eventuais restos de carne, penas e sanque. Não satisfeito com isso, andou uns três metros sobre a grama úmida arrastando o pé sujo. Postou-se mais uma vez ao lado do pássaro e olhou-o com um sentimento indefinido. Encerrou aquela fase da sua vida dando um bico calculado naquela massa disforme que fez o corpo cair dentro do laguinho e afundar sem cerimônias. Ele, então, desmontou a arapuca, entrou no carro, deu partida e colocou sua música preferida, engrenou a primeira e foi trabalhar... estava renovado.