O longa-metragem dirigido por Walter Salles Jr., “Diários de motocicleta”, trazendo o ator mexicano Gael García Bernal protagonizando Ernesto Guevara de La Serna, me fez sentir o quanto a América Latina – mui particularmente o Brasil – ainda é pobre em conceitos de autoconhecimento. Não se trata aqui, de longas explanações estatísticas, tampouco o pessimismo saudosista nerudiano de quem acompanhou um regime militar. Tenho 25, minha formação é a dos livros. Quem têm mais de 50 ou 60, chora. Exatamente como um humilde chacareiro decano que conheci numa rápida viagem. A do jovem Ernesto foi longa, também chorou. Como estava com 23, tratou de abreviar os devaneios de uma vida cômoda e tranqüila em Buenos Aires. O estudante de medicina Ernesto, especializado em Hanseníase, chamou um amigo bioquímico (Alberto Granado ) para desvendar a América “mágica” dos livros. Um continente tão miserável, que não carecia estar dividido geograficamente em repúblicas civis, pois a pobreza ocasionada pela opressão dos invasores europeus por uma “civilização” necessária e idêntica, nos faz sentir o fardo e a lâmina de espadas espanholas e portuguesas. Mesmo após cinco séculos inteiros... E ainda mergulho em lágrimas numa sala escura de cinema – aliás, isso não acontecia há muito tempo – acompanhando embevecido a jornada de dois amigos à bordo da “La Poderosa” num percurso para poucos. Percorrer as planícies argentinas, os desertos chilenos ( o Acatama que o diga! ), as matas e rios peruanos, a solidão boliviana e as frustrações acadêmicas me deram a mesma sensação que Ernesto. Uma intelectualidade burguesa ainda não é capaz de ajudar portadores do Mal de Hansen nos confins peruanos. A miséria do continente sul-americano é inóspita aos olhos do mundo capitalista. Ela é fruto de transnacionais imperialistas, como a Standard Oil ou a Texaco, que interessadas em implantar seus mega projetos em terras baratas de países latino-americanos, obrigam a privatização de imensas áreas públicas ou reservas ambientais por meio de seus governos para a exploração desordenada de matérias-primas, submetendo as populações locais ao escravagismo industrial. Da Patagônia à Venezuela, etnias inteiras continuam desaparecendo no sistema de trabalho forçado das minas de carvão vegetal e outros materiais. O latifúndio, de carvão vegetal e outros materiais. O latifúndio, agora globalizado ( pois promete-se o avanço industrial em troca de solo barato ) é propriedade de grupos empresariais estrangeiros. Isso é natural para uma burguesia reacionária e pró-colonialista, mais interessada em tirar férias em Nova Iorque e Paris do que conhecer suas origens históricas. Este filme me fez sentir ainda mais um amor que desconheço pela América Latina. Quando críticos de cinema são pertubados pela ideologia esquerdista do filme, muito longe de personalismos estéticos ou clichês típicos de filmes estadunidenses, começam a dizer – ou defender – que ‘idealismo’ ou ‘revolução’ são relíquias do passado. Aí começam a negar a história. Por exemplo, no Brasil existe uma moda bizarra de jornalistas de vanguarda atentarem contra a Arte de formação esquerdista. Talvez seja por isso que escrevam poucos artigos sobre filmes desse tipo, e notas em jornais sobre assunto semelhante sejam tão medíocres. “Diários” é um filme claro, limpo. É despretensioso, fórmula para tornar-se formador de idéias. Walter não discorre sobre o mito de Chê, mas na individualidade iludida de um jovem e irrequieto argentino, confuso na hermeticidade de seu mundo. O conceito de unificação americana parte do princípio das semelhanças políticas, culturais e econômicas de seus pares. Parte do conflito de não querer pensar na alienação particular de um estudante brasileiro que desconhece seu país, seu continente. Talvez não saibam que na cidade de Cuzco, no Peru, existe uma tradicionalíssima universidade fundada por jesuítas espanhóis em 1527. Talvez não saibam que as Ilhas Caribenhas ( Trinidad e Tobago, Honduras, etc. )são esplêndidas em riquezas naturais e culturais, que na Bolívia também neva – afinal, os noticiários informam sempre o inverno na Europa e EUA. Talvez não se deram conta do absurdo glorioso de uma história de “heróis” monarquistas ou absolutistas. Assim como o regime militar tratou de aniquilar a memória histórica do brasileiro, o cinema estadunidense, até hoje doutrinado pela mecanização social da Guerra Fria, forma críticos de merda, moderados pensadores burgueses vendedores de opinião barata. É daí que mesmo sendo o rosto mais estampado em camisas de todo o mundo, Ernesto não é plenamente conhecido por suas ações, e sim, pela exposição máxima de uma fotografia clássica, eternizada pelo capitalismo das grifes têxteis. Eis “Chê” ( companheiro na gíria local argentina ) como simbologia, ou como dizem por aí, virou figura mitológica para os conservadores. Walter fugiu de qualquer arquétipo possível em seu filme. Depois eu volto, quero falar dos efeitos desse filme sobre mim.