
993300>Por estreita e inevitável tendência à peculiar condição de cidadão tripeiro, leio todos os dias o Jornal de Notícias, espécie de diário gigantão em país anão. País anão?... Sim, orgulhosamente anão, velho e sábio anão, mão-cheia de povo traído por uma cambada de traidores sem escrúpulos que felizmente estão a abeirar-se do fim.
O JN possibilita-me o contacto com a diversidade de tudo quanto se presuma ter agora valor na vida. Por exemplo, se eu apreciasse umas massagens anais, não me faltariam massagistas, passivos e activos, com 20 cms, pelo preço mínimo.
O JN, ao cabo de um mês de persistente notícia sobre o assunto, informa que a pequena Joana foi esquartejada pela família e depois servida de refeição a suínos.
Também relata o caso do filho que decapitou a mãe e se preparava para fazer o mesmo a um seu irmão.
No que às próximas eleições americanas concerne, o JN tem feito nos últimos dias reportagem sobre a pena de morte nos EUA, exercício no qual o intragável Bush é lídimo carrasco.
Antes que sejam despachados através de inoculação letal, os condenados esperam dez anos por um eventual perdão ou prova de inocência. Quer dizer: na América, antes que o derradeiro sopro se extinga nos lábios do criminoso, o desgraçado morre cerca de 3.650 vezes. Apre, como a esperança é deveras mãe extrema do castigo!...
Eu... Bem... Eu interrogo-me, pois...
Como é possível que um evidente e declarado facínora seja apoiado por 50% dos cidadãos americanos?...
O meu simpático e bizarro Zé-Povinho, ainda neste hodierno-antanho, tem carradas de razão: "Anda meio-mundo a lixar o outro-meio".
ZÉ POVINHO
De calças com remedos e botas rotas, é a eterna vítima dos partidos políticos de todos os nomes, dando a vitória a uns ou a outros em épocas eleitorais. Usando como expressões gestuais o manguito ou a mão coçando aflita a farta grenha, foi sem dúvida, e ainda é, um trunfo na denúncia da economia capitalista. Denuncia... Denuncia... Mas ninguém ouve e a pele, quando entende o sistemático sistema, perde a voz. Sabidola portanto, muito sabidola este Zé Povinho!...
O sucesso obtido com esta criatura foi tal, que Bordalo Pinheiro acabou a recriá-lo no barro, em tinteiros, cinzeiros, apitos, etc., ficando e restando de símbolo do povo português ao lado da inseparável Maria da Paciência, velha alfacinha alcoviteira.
«Crescido, Zé Povinho correspondeu perfeitamente às esperanças que n elle depositaram os solicitos poderes do reino. Como desenvolvimento de cabeça elle está mais ou menos como se o tivessem desmamado hontem. De musculos, porém, de epiderme e de coiro, endureceu e calejou como se quer, e , cumprindo com brio a missão que lhe cabe, elle paga e súa satisfactoriamente. De resto, dorme, resa e dá os vivas que são precisos. Um dia virá talvez em que elle mude de figura e mude tambem de nome para, em vez de se chamar Zé Povinho, se chamar simplesmente Povo. Mas muitos impostos novos, novos emprestimos, novos tratados e novos discursos correrão na ampulheta constitucional do tempo antes que chegue esse dia tempestuoso.
Por tudo pois, ao resumirmos n estes leves traços a interessante historia de Zé Povinho, o nosso parabem cordeal a seus sabios e carinhosos paes e ós Publicos Poderes. = Ramalho Ortigão »
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