Em 2003 era impensável qualquer ato de protesto contra o governo do presidente Luiz Inácio. A esperança em tempos de fartura, a fé no salvador dos humilhados e oprimidos, a caridade simbolizada na propaganda do comovente programa Fome Zero pareciam ser as virtudes praticadas pela sociedade ou pelo menos por quase 53 milhões de eleitores que haviam conduzido ao poder uma espécie de D. Sebastião - um redentor que durante anos seguidos prometera justiça social a partir do ideal socialista.
Em 2003 dizia-se que era cedo para qualquer julgamento sobre o eleito e seu governo. Pairavam no imaginário popular sonhos lindos, como 10 milhões de empregos. Ansiava-se pelo várias vezes anunciado espetáculo do crescimento. No altar da pátria, o condutor do povo se oferecia para a adoração de seus seguidores.
Por conta dessas circunstâncias soou quase como uma heresia o protesto do estudante de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Ernest Hellmuth, em agosto do ano passado. O fato se deu na solenidade de abertura das comemorações pelos cem anos do Centro Acadêmico XI de Agosto. Depois da bela apresentação da Orquestra da USP, diante das autoridades a postos e do público circunspeto, Hellmuth, num gesto entre nervoso e desajeitado, arremessou uma galinha preta sobre o palanque em que discursava a prefeita do PT, Marta Suplicy. Mas, para a sorte dela, o pobre bicho aterrissou de peito sem atingir o alvo.
O protesto gerou intenso repudio devidamente registrado pela mídia e uma onda de indignação varreu a cúpula governamental. Do alto de sua autoridade, o ministro da Justiça, Thomaz Bastos, sentenciou: "É como se um homem falasse e jogassem nele um veado".
Parece que a imaginação do ministro foi longe demais, porque é de se duvidar que o rapaz tenha desejado imprimir algum simbolismo ao animal em si. De todo modo, o incidente produziu estardalhaço exagerado como se fosse um crime de lesa majestade, porque o PT é duríssimo em seus ataques, mas extremamente sensível a qualquer crítica.
Depois vieram as tortas. O presidente do PT, José Genoino, foi o primeiro a provar do doce protesto que o lambuzou desagradavelmente a cara. Mais tarde, o ministro Berzoíne, quando ainda à frente da pasta da Previdência, sentiu em forma de glacê, a vingança popular. A arremessadora de tortas não deve ter gostado do ministro ter obrigado os idosos de noventa anos ou mais a entrar na fila para provarem que estavam vivos, além de outros "agrados" com os quais o ministro cumulou os aposentados.
Agora foram os ovos. Dois. Quem sabe, botados por alguma galinha preta. A maldição da ave agourenta se deu neste 20 de outubro, quando o presidente Luiz Inácio inaugurava mais um Centro de Especialidades Odontológicas, no Campo Limpo, periferia de São Paulo, repetindo que "dor de dente é coisa de pobre". Naquele momento dois projeteis estranhos cruzaram o ar. Um maculou o jaleco de dentista que o prefeito petista em exercício, Hélio Bicudo, estava usando. Outro bateu na perna do ministro da Saúde, Humberto Costa e acabou respingando na primeira-dama Marisa Letícia.
Noticiou-se que foi um bêbado o autor do gesto mal educado. Tal qual o personagem Nezinho do Jegue, da série "O Bem-amado", o pinguço teria atirado os ovos no palanque e só faltou ter gritado: "Lula, ladrão de cavalo!" Coincidentemente, os "petardos" explodiram quando sua excelência mencionou crescimento de empregos.
Existem, contudo, outras manifestações organizadas a partir de grupos de interesse, que demonstram de forma mais profunda, insatisfação social. É o caso, por exemplo, dos protestos de mulheres de militares ou das constantes greves de diversas categorias profissionais.
Urge, pois, ao governo, buscar competência real ao invés de querer se impor apenas através da propaganda ilusória. O presidente Luiz Inácio havia dito que não poderia cometer nenhum erro. Ele e seu volumoso ministério já cometeram vários erros, a ponto de parecerem ser campeões de duas modalidades de tiro: tiro no pé e tiro pela culatra. O fracasso do decantado Programa Fome Zero, a fábrica de trambiques em que se transformou o Bolsa Escola, o envio de tropas para o Haiti, o fracasso do acordo entre Mercosul e União Européia, os escândalos não elucidados, os projetos que cerceiam a liberdade de expressão, são apenas alguns poucos exemplos que explicam o porquê de estarmos nos transformando numa República da Barafunda. A continuar assim, sua excelência e seu governo deverão estar preparados para conviver com galinhas pretas, tortas, ovos e outros protestos de maior envergadura.