Muitas são as teorias literárias que procuram apreender o complexo universo da literatura, principalmente do conto e do romance. Como temos uma tendência natural, às vezes excessiva, de rotular tudo, pecamos, em algumas ocasiões ao tentar enquadrar a manifestação artística, a expressão literária de determinado autor, dentro de um nicho preestabelecido. O que caracteriza um criador é justamente a sua liberdade, que nunca deve ser confundida com anarquia. E essa liberdade de criação, de expressão, nem sempre respeitada ou admitida, permite aos artistas elevar-se acima das definições, dos moldes, das normas e das regras, para criarem verdadeiras obras de arte, que resistem ao tempo, à moda e as tendências.
Pretendemos, neste trabalho, analisar o romance “Primavera con una esquina rota”, do escritor uruguaio Mario Benedetti. Nessa análise aplicaremos algumas das teorias da literatura desenvolvidas por diferentes teóricos. Nosso objetivo é comprovar, na prática, como essas teorias podem ajudar-nos a analisar e a captar toda a intensidade de uma obra literária, neste caso de um romance. Guiados por essas teorias, procuraremos “navegar” pela narração de Benedetti, verificando, analisando, a estrutura do seu romance. Trabalharemos diferentes pontos da narrativa, apontando as características mais marcantes da narrativa de Benedetti, dentro do romance citado.
Basicamente analisaremos enredo, tipos de personagens, tempo, espaço, ambiente e narrador.
1.2 MARIO BENEDETTI, O ESCRITOR
Nascido em Paso de los Toros, departamento de Tacuarembó, Uruguai, em 1920, Mario Benedetti está inserido dentro da chamada “Geração do 45”, que marcou não só a literatura, mas também a filosofia, as artes em geral e até à sociedade uruguaia. Os integrantes da mencionada geração, escritores, pensadores, são reconhecidos pelo seu espírito revisionista, pela sua ótica crítica, pela sua visão realista e dissecadora da realidade do “paisito”, como os próprios uruguaios denominam seu pais.
Como todo bom escritor latino-americano, Benedetti desempenhou vários ofícios na sua vida, a maioria deles burocráticos, sofreu muitas perseguições políticas dentro e fora do pais, partiu e retornou de muitos exílios, que o marcaram profundamente.
Trabalhou contos, novelas, romances, poesias, teatro, ensaios, crônicas, canções, artigos jornalísticos, etc., com idêntica maestria, transformando-se num dos maiores escritores hispano-americanos.
Com o romance A TREGUA, publicada em 1960, adquiriu renome internacional. Este romance foi traduzido para vários idiomas e teve suas versões para o cinema ( concorrendo ao Oscar de melhor filme estrangeiro ), televisão, rádio e teatro.
No retorno do seu longo exílio (que durou de 1973 até 1985 ) se reintegra à vida cultural uruguaia, participando do conselho editorial da revista BRECHA, que da continuidade ao projeto de MARCHA, interrompido por causa do golpe militar no pais.
Em 1987, a organização Amnistia Internacional lhe concede o prêmio LLAMA DE ORO, pelo seu romance “Primavera con una esquina rota”, obra considerada como um “romance do exílio “ e que será analisada neste trabalho.
Atualmente Mario Benedetti mora metade do ano em Montevidéu e na outra metade em Madrid.
Sua obra marcou muitas gerações de uruguaios, que encontraram na sua linguagem simples, realista e intensa, a inspiração para viver, criar, escrever, cantar e lutar, num mundo que se apresentava cada vez mais ameaçador, negro e hostil.
Benedetti integra a galeria dos grandes escritores latino-americanos.
1.3 ROMANCE DO EXÍLIO
Publicado em 1982, “Primavera con una esquina rota” é considerado por alguns críticos como um romance do exílio, mas precisamente do exílio do povo uruguaio, obrigado a abandonar sua pátria para fugir da ditadura, que tomou conta da país desde o inicio da década de 70 até a metade da década de 80. Outros motivos, principalmente econômicos, aumentaram a corrente de exilados, que buscou uma nova vida nos mais longínquos países do mundo.
Utilizando diversas técnicas literárias, Mario Benedetti constrói uma história rica em testemunho humano, profunda, realista, abordando mais que nada os efeitos nefastos que alguns governos provocam nas pessoas. O amor, a visão do mundo desde o ponto de vista de vários personagens, o humor, a tristeza, a oculta poesia do cotidiano, os conflitos internos e externos, os fracassos, os desencontros, uma morna sensação de esperança, alguns fatos históricos, entre outros assuntos, estão presentes neste romance.
Ele retrata várias gerações de uruguaios, e até latino-americanos, que tiveram que enfrentar outras culturas, construir outros mundos, refazer os seus universos a partir do zero.
Em “Extramuros ( Fasten seat belt ), um dos capítulos do livro, encontramos uma possível explicação para o titulo da obra : “la primavera es como un espejo pero el mío tiene una esquina rota/ era inevitable no iba a conservarse enterita después de este quinquenio más bien nutrido/ pero aun con una esquina rota el espejo sirve la primavera sirve” ( Benedetti,2000, p. 167 )
2 ELEMENTOS DA NARRATIVA
2.1 O ENREDO
Se compararmos este romance com outros, principalmente com aqueles do século XIX, notaremos que “Primavera con una esquina rota” foge bastante dos padrões considerados “normais”. Construído com relatos interligados, como se fossem lagos que se unem e formam rios e inventam mares, esta obra trabalha vários recursos, diferentes técnicas literárias, que submergem o leitor num ambiente carregado de lutas, conflitos internos, choques com o meio e a fé inquebrantável de alguns personagens.
Basicamente, neste romance, são narrados fatos da vida de Santiago, um prisioneiro político ( encarcerado num presídio que, por ironia, chama-se Liberdade ) e de sua mulher Graciela, que vive no exílio com a filha de ambos, Beatriz. É um enredo que não deixa de ser linear, pois começa com Santiago na cadeia e culmina com ele em liberdade. Esse fio central da narração mostra inicialmente, e isso funciona como apresentação, ao protagonista na cela. Em realidade ele mesmo descreve sua situação, a través de cartas que envia principalmente para sua mulher.
Como a narração está num nível intradiegético, teremos muitas histórias derivando do relato central. O que se conta, na realidade, mais que as peripécias de Santiago, Graciela e outros personagens, é a odisséia da grande parte de um povo, obrigado a reencontrar seu caminho em nações e culturas estranhas.
Os capítulos iniciais: Intramuros ( Esta noche estoy solo ), Heridos y contusos ( Hechos políticos ), Don Rafael ( Derrota y derrotero ), Exílios ( Caballo verde ), Beatriz ( Las estaciones ) e El otro (Testigo solito ) é o que chamamos de apresentação. Neles ficamos conhecendo os principais personagens, são definidos alguns espaços, muitos ambientes e já temos indícios espalhados, uma idéia dos conflitos futuros. Quando Santiago começa a perceber que além da separação física, começa a crescer uma distância mais dolorosa e cruel, a separação espiritual, entre ele e Graciela, temos já um conflito ou complicação, que recebera novos ingredientes em outros capítulos, sendo o mais explosivo de todos a atração que toma conta de Graciela e Rolando Asuero ( amigo e companheiro de luta de Santiago ). A história desse triângulo amoroso tem o seu desenvolvimento nos capítulos seguintes, chegando ao seu climax quando Graciela e rolando vencem as barreiras que seguram suas emoções e caem nos braços da tentação, reinventando o amor. Esse climax é alimentado por um novo elemento: a liberação de Santiago, anunciada quando os amantes estão no ponto mais alto da sua relação. O desenlace não fica satisfatoriamente resolvido, se analisamos a obra dentro do contexto de um romance clássico. Temos um final aberto, com os principais personagens com muitas dúvidas, com muitos caminhos e destinos possíveis, uma mais complexo que o outro, e com o protagonista chegando ao aeroporto, buscando na multidão rostos conhecidos, seus pontos de referência no mundo externo, no exílio, nesse universo que se apresenta totalmente desconhecido.
Nos capítulos que antecedem Extramuro ( Arrivals, Arrivée, Llegadas), que no romance tradicional seria o epílogo, o leitor é preparado para esse final aberto, indefinido e que pode tomar rumos inesperados.
Como acontece na maioria dos romances, temos vários conflitos, vários climax. Um deles é muito significativo, mostrando como a política, as idéias políticas, podem dividir e arrasar com famílias inteiras. Em carta a seu pai Rafael, em Don Rafael ( Noticias de Emílio), o protagonista relata um episódio marcante da sua vida. Diz ele que estava em um “enterradero” ( esconderijo usado pelos guerrilheiros na zona urbana ), quando foi surpreendido por uma operação policial. Alguém iluminou seu rosto; era seu primo Emílio, o mesmo que brincava com ele na infância, o filho da tia Ana. Os dois falaram em voz baixa, enquanto percebiam os movimentos dos outros policiais, fora da casa. Em determinado momento, Santiago levantou as mãos, oferecendo os pulsos, como se estivesse entregando-se. Confiado, Emílio descuidou-se e Santiago apertou-lhe o pescoço até que ele deixou de respirar. Assim, matando o primo, conseguiu fugir do cerco policial. Desde aquele incidente, o primo invade os sonhos e os pensamentos dele, não com imagens instante da morte violenta, mas com lembranças do passado, da infância em comum.
Nesse episódio fica claro até que ponto a luta política no país dividiu parentes e amigos.
Benedetti usa indiferentemente, e de acordo com sua necessidade, recursos que adiantam a narrativa ( diálogos, respeito à cronologia) e recursos que atrasam ( flashback, digressões ).
O romance está construído de tal maneira que cada personagem é identificada por um tipo de narrativa. Os diálogos acompanham os movimentos de Graciela, agilizando a narrativa, sem deixar de expressar os conflitos da personagem. Isso acontece em todos os capítulos, com uma exceção: Heridos y contusos ( El dormido), onde praticamente não temos diálogo.
Já os flashback, as digressões são caraterísticas marcantes de Santiago, por esse motivo o relato fica mais lento e complexo cada vez que ele aparece.
2.2 OS ROSTOS E AS ALMAS DO EXÍLIO: AS PERSONAGENS
SANTIAGO. Protagonista, figura central de toda a história narrada. Ele é um sobrevivente, tem trinta e oito anos de idade, é um prisioneiro político que, apesar de toda a pressão, apesar da tortura pela qual passou, não entregou os companheiros, não delatou ninguém. Mas, como ele mesmo escreveu para Don Rafael, não quer ser considerado herói por isso. Em realidade foi uma estratégia de sobrevivência. Ele mesmo explica: “ Ah, pero no soy un héroe. Te asombrarías si te dijese que aún no sé si callé por convicción o por cálculo? Sí, por cálculo. Siempre observé que mientras lo negás todo, si te obstinás en decir que no y que no con la cabeza, con las manos, con los labios, con los ojos, con la garganta, los tipos igual te dan como en bolsa, claro, pero a veces notás que en el fondo sospechan que les estás diciendo la verdad, o sea que no sabés nada...” . este trecho encontra-se em Don Rafael ( Noticias de Emílio).
Santiago é, sem dúvida, uma personagem esférica ou redonda. Características físicas, psicológicas, morais, etc., aparecem nas suas cartas, que mais que cartas são monólogos ou pequenas narrações. Também temos informações, sobre o protagonista, quando outros personagens ou um narrador, fazem referencia aos seus atributos ou características. Mais que resistência física, tenacidade, para resistir aos tormentos da prisão, Santiago exercita sua força moral, sua fé e sua esperança, para não ser quebrado moralmente.
Com o desenvolvimento do enredo e a medida que se aproxima a sua liberação, Santiago vai mudando, ficando mais tenso e saturado de conflitos, permitindo que os medos e os fantasmas avancem no seu íntimo.
Como já mencionamos anteriormente, dentro da estrutura do romance, todos os capítulos intitulados “Intramuros” estão diretamente ligados a Santiago, trazem sua voz, seus sentimentos, suas vivências. “Extramuros” são dois capítulos, já no final da obra, que também estão atrelados ao protagonista. Percebemos, passando de “Intramuros” para “Extramuros”, a mudança no discurso do personagem. As regras de pontuação são ignoradas, em “Extramuros” capítulos onde aparece fora da cadeia o protagonista. Esse recurso é utilizado para indicar o estado mental de Santiago, a tensão, a ansiedade que o domina deixando-o confuso, perturbado.
Santiago é apresentado como um típico integrante da classe média uruguaia; estudioso, bem informado, apaixonado por futebol e fanático torcedor do Nacional ( time do Uruguai ), amante incondicional da figura de Artigas ( herói nacional ), repetindo sempre suas frases, apoiando-se nas suas idéias de liberdade e democracia, engajado politicamente, passando para a clandestinidade para lutar contra a ditadura, preso, torturado e, após cinco anos ( “cinco años, dos meses y cuatro días “) ganha a liberdade. Porém não volta para seu mundo, é obrigado a empreender a dura caminhada do exílio, que não deixa de ser outra prisão, com o agravante de que as coisas, sua vida, seu amor, já não existem ou estão corrompidas.
GRACIELA. Esposa de Santiago, é, também, uma personagem esférica, passando por transformações, saindo do papel de esposa fiel e deixando que seus sentimentos, seus instintos falem mais forte. Dividida entre o amor e a fidelidade, entre a imagem de mãe e o desejo de sentir-se mulher, ela luta, mas não resiste ao sutil encanto de Rolando Asuero. Tanto não resiste que ela mesma abre o caminho, mostra uma brecha por onde todo o universo de Rolando pode entrar e tomar conta de seus sentimentos.
Conversando com sua amiga Celia, falando da sua relação com Santiago, ela começa a revelar a sua transformação : “ El problema es que la obligada separación a él lo ha hecho más tierno, y a mí en cambio, me ha endurecido. Para decírtelo en pocas palabras (y esto es algo que no lo confieso a nadie, ya hasta me cuesta confesármelo a mí misma ); cada vez lo necesito menos. ( ... ) Él se pasa añorando mi cuerpo ( siempre me lo hace entender en sus cartas) y yo en cambio no siento necesidad del suyo. Y eso hace que me sienta ( ... ) culpable” . (Benedetti, 2000, p.62). E mais adiante continua: “Celia: hace más de cuatro años que no hago el amor con nadie. No te parece uma exageración?” ( idem ).
Esse é um dos dilemas de Graciela. Ela percebe claramente a distância não só física que cresce entre ela e Santiago; ela sabe que terá que explicar para muita gente se tomar a decisão de incluir outro homem na sua vida. Sabe que será condenada, que se sentirá culpável e que destruíra moralmente a Santiago, cada vez más tenro e sensível.
Vista pelos outros personagens, ela é uma mulher linda, magra, com o corpo bem formado e pernas bonitas. Segundo Santiago, em “Extramuros ( Fasten seat belt ), “ la única prueba de la existencia de dios son las piernas de graciela “. ( Benedetti, 2000, p.176).
Ela foi educada em colégio de freiras e, sem dúvidas, isso afetou no passado, em alguns momentos, sua relação com Santiago, que era bastante liberal e também interferiu na sua relação com Rolando, mulherengo e acostumado às lides amorosas. Com Santiago, por exemplo, ela fazia amor na escuridão da noite, para não perder a concentração no tato, no toque, segundo ela. Santiago achava que isso era herança da sua educação em colégio de freiras. Com Rolando ela argumentou o mesmo, mas ele mostrou-lhe que o toque, combinado com a visão era bem melhor. Também ele sinalizou que tudo não passava de preconceitos inculcados pelas freiras.
Todos os capítulos intitulados “Heridos y contusos” estão centrados em Graciela. Neles aparecem diálogos, que vão pautando ações, revelando facetas da personalidade de Graciela, mostrando fatos que ajudam a entender os acontecimentos. Os diálogos são rápidos, despojados de muita adjetivação, numa linguagem coloquial e simples. Entre os diálogos aparece, de maneira estratégica, a voz de um narrador, que ajuda a definir o ambiente, o clima espiritual dos personagens, principalmente de Graciela. Essa voz, apesar de ser uma intromissão, fortalece a intensidade dos diálogos.
No capítulo “Heridos y contusos ( El dormido ), a voz desse narrador ocupa todo o espaço, eliminando quase todo o diálogo. Essa mudança se faz necessária para transmitir ao leitor o ambiente no qual cresce e se desenvolve o amor proibido de Graciela e Rolando. Serve também para introduzir características dos dois personagens e dar algumas pinceladas na história e na personalidade deles. Assim ficamos sabendo que ela fuma, que aproveitam o horário em que Beatriz está no colégio para desfrutar do amor, que ela é uma mulher carinhosa, por determinados gestos: olhar o corpo do homem adormecido, passar suavemente a mão por partes daquele corpo...
ROLANDO ASUERO. Personagem que fecha o triângulo amoroso. Amigo e companheiro de militança de Santiago, se transforma em antagonista, pois assume, depois de muita luta interna, o papel de rival de Santiago, disputando o amor da mesma mulher.
Ele aparece retratado em todos os capítulos intitulados “El otro”. Integrante da classe média uruguaia, politizado, guerrilheiro urbano, também , esteve preso, sofreu torturas em “un cuartel que no quiere mencionar”. Ele sofre uma significativa evolução, partindo do mulherengo , da condição de “solteiro profissional” até chegar ao homem apaixonado, disposto a lutar e enfrentar o próprio amigo pelo amor de Graciela.
É um personagem esférico, evoluindo claramente durante o desenrolar da história. No último trecho em que aparece diretamente, ele analisa sua situação, enquanto dirige-se até ao aeroporto, onde Santiago vai desembarcar. Nesse momento ele já não é o amigo fiel, lutando contra sentimentos contraditórios. Passou a ser o rival, avaliando quase com frieza os pontos a favor de cada um, as vantagens e desvantagens, os possíveis desenlaces para aquela situação.
São intensos e profundos os momentos em que Graciela e ele começam a definir a situação, a assumir que existe uma forte atração entre eles. Características da personalidade de Rolando, também dela, ficam expostas como se fossem transparentes, mostrando que detrás do homem fútil, verdadeiro Don Juan, havia um ser humano capaz de entender e abrigar sentimentos que, aparentemente, eram-lhe alheios.
Quando ele percebe que Graciela está mexendo com sua estrutura, repetidas vezes ele volta ao passado, relembrando cenas, principalmente aquelas que aconteceram no balneário Solís, no litoral uruguaio. Nesses instantes ele entende que a mulher, além de amadurecer física e intelectualmente, cresceu muito dentro da sua vida. Talvez pelo fato de serem compatriotas, exilados, talvez porque o próprio Rolando que além do sexo, das conversas sem maiores pretensões, ficava difícil, pelo menos para ele, estabelecer um diálogo mais profundos com as mulheres nativas. Ficava ainda mais complicado quando era necessário empregar gestos e frases, que só são percebidos por integrantes de uma mesma cultura. No capítulo “El otro (Testigo solito)”, fica clara essa situação; “La gente de este bendito y maldito país es realmente piola. A él, a qué negarlo, le gustan estos sonrientes, sobre todo ellas. Pero hay días y noches en que no le gustan tanto. Son los días y noches en que echa de menos el sobrreentendido. Días y noches en que tiene que explicarlo todo y escucharlo todo. Una de las módicas ventajas de hacer el amor con una compatriota es que si en un instante determinado ( ... ) uno no está para muchas locuacidades, puede pronunciar o escuchar un lacónico monosílabo y esa palabrita se llena de sobreentendidos, de significados implícitos, de imágenes en común, de pretéritos compartidos, vaya uno a saber. No hay nada que explicar ni que le expliquen. No es necesario llorar la milonga. Las manos pueden andar solas, sin palabras, las manos pueden ser elocuentísimas ( ... ) Hay que ver todos los idiomas que caben en un solo idioma.” ( Benedetti, 2000, p.30 ).
Essa situação de desencontro, com certeza aproximou Rolando de Graciela. Todos os pequenos grandes detalhes, do dia a dia no exílio, foram trabalhando o espírito de Rolando, até ele estar pronto para negar o amigo e entregar-se ao doce e proibido refugio que era Graciela. No momento em que ele decide partir para a luta, ele coloca na balança todos os pontos a seu favor e todos os aspectos desfavoráveis. Sabe que a união entre Beatriz ( reconhece que a menina é muito esperta e talvez já tenha percebido a situação ) e seu pai Santiago, pode ser fatal para seus interesses amorosos. Pressionada no seu lado mãe, Graciela balançaria e talvez opta-se por negar os gritos da sua carne e de seu espírito.
O destino de Rolando Asuero, assim como dos outros personagens importantes do romance, não fica definido. As portas abrem-se perante ele, os caminhos podem ser muitos e com destinos imprevisíveis. Como a própria vida; por mais que avançamos sempre falta um trecho que deve ser escrito.
DON RAFAEL. Pai de Santiago, sessenta e sete anos de idade, exilado no mesmo país, na mesma cidade na qual vivem Graciela, Beatriz ( sua neta ) e Rolando Asuero. È uma personagem secundária, mas que em determinados momentos adquire muita importância. Ele é como o fiel da balança em alguns episódios. Santiago conta para ele, e para mais ninguém, como morreu o primo Emílio ( assassinado no “enterradero”), Graciela também se confessa com ele quando surge Rolando na sua vida. Beatriz, num trecho muito engraçado da obra, também recorre a ele para tirar algumas dúvidas da sua cabeça. Aparentemente isso acontecia sempre.
Ele sofre transformações também, ele procura adaptar-se ao novo país, o que, supostamente, só consegue quando descobre “ um país chamado Lydia”, uma mulher que fez com que ele já não se sentisse estrangeiro e até abandonasse o bastão que, mais que um apoio físico era um sustentáculo moral.
Seu maior dilema era conviver com tantos segredos, alguns deles terríveis e de pessoas muito próximas. Só com a chegada de Lydia ele consegue desafogar um pouco suas tristezas, suas lutas, tornando-se ela sua confidente. Isso acontece quase no final do romance, quando ele já confiava na sua nova companheira.
O exílio batia forte na sua alma. Sabe que precisa adaptar-se ao novo meio, a aquele cultura diferente, ao idioma que, ainda sendo o mesmo da sua infância e juventude, é diferente.
No capítulo “Don Rafael Un país llamado Lydia )” temos claramente a sensação que domina don Rafael. Ele conta que no dia em que se decidiu o destino da ditadura uruguaia, ele estava sozinho na madrugada, não acreditando no que escutava no rádio; num plebiscito organizado pelos militares, controlado pelos militares, preparado para perpetuar o poder militar, o povo, sábio, silencioso, consciente, tinha derrubado, contrariando todas as pesquisas, todas as bocas de urna, com uma maioria impressionante de votos, o projeto de perpetuação. Era começo do fim. E Don Rafael, na solidão do exílio, náufrago na madrugada, gritou e chorou, expressando não só felicidade, também dor e raiva. Ele diz, comentando aquela noite: “Pero en noviembre del 80, las gentes del país de Lydia me dejaron llorar a solas y lo agradecí. Sólo vinieron al día siguiente para abrazarme, después de asegurarse bien de que yo tenía los ojos secos, y para que les explicara lo inexplicable, y entonces les fui diciendo mientras yo mismo me convencía: la dictadura decidió abrir, no una puerta, sino una rendija, y una rendija tan pequeña que sólo pudiera entrar en ella una sola sílaba, y entonces la gente vio la hendedura y, sin pensarlo dos veces, colocó allí la sílaba NO. ( ... ) En esta época de bombas neutrónicas y ojivas nucleares, es increíble cuánto puede hacer todavía una pobre sílaba negadora” ( Benedetti, 2000, p. 146).
Seguindo a estrutura da obra, todos os capítulos que falam do pai de Santiago, estão agrupados sob nome de Don Rafael.
MARIO ORLANDO BENEDETTI. Analisando sem muita profundidade, este personagem, que representa o próprio autor, estaria fora do contexto. Porém não é assim. Mesmo sendo um personagem menor e até um pouco estranha dentro da história, desempenha um papel fundamental: ele fornece à obra um embasamento histórico, pautando fatos relevantes da história contemporânea, acontecimentos menores e maiores que revelam a situação dos exilados pelo mundo afora, a situação política do país e do mundo, definindo perfeitamente o momento histórico em que estão inseridos os personagens. Esses fatos relevantes não são importantes só para os uruguaios, eles passam a ter importância universal, desde do momento em que envolve cidadãos de outros países.
Além de ser uma personagem secundária, é uma personagem plana, não apresentando mudanças nas suas características. Os capítulos dedicados a Mario Orlando Benedetti, todos eles encabeçados pela a palavra Exílio, estão editados num tipo de letra diferente do resto da obra. Neles encontramos passagens supostamente biográficas de Mario Benedetti ( o autor ) e relatos de fatos acontecidos com outras pessoas, entre outros registros. Em “Exílios ( Adiós y bienvenida )” podemos ler sobre um acontecimento emocionante, envolvendo a comunidade de uma cidade alemã. Num colégio dessa comunidade, (Holweide, um bairro de Colonia, Alemanha) estudavam os filhos de David Cámpora, preso político desde 1971. Eles e sua mãe estavam no exílio, fugindo da ditadura. Os alunos ( a maioria crianças ), os professores e os pais dos alunos começaram um movimento foi tomando proporções incríveis, transcendo os limites do bairro, da cidade, do país, alcançando ressonância internacional. Fizeram tanto barulho, enviaram tantas cartas, pressionaram tanto, que conseguiram libertar David Cámpora. Numa festa, organizada pelo colégio, ele foi recebido naquela comunidade. Nesse capítulo podemos ler e sentir a força da solidariedade humana. David Cámpora encerrou seu discurso de agradecimento assim: “ Lo que ustedes me han dado, no hay forma adecuada de agradecerlo. A ustedes les debo el aire libre, y la luz, las calles y las voces, el sueño y los libros. Ustedes me han devuelto mis hijos y mi esposa; mi lugar de cariño, mi permanente ternura. ( ... ) Lo único que tengo para trasmitirles es mi fe en el hombre y mi opaca sabiduría de preso. Precisamente ustedes, empecinada gente buena, que acaba de realizar lo imposible. Ustedes que saben y pueden. Es para ustedes la fiesta, para ustedes el agasajo. Y soy yo quien los aplaude y los abraza. (... ) una muchacha se le abrazó y le acarició la espalda durante um rato largo, agradeciéndole lo mucho que le había dado. Después de todo, la muchacha tenía razón. Sin saberlo ni proponérselo, David había brindado a esa colectividad la excepcional ocasión de expresar lo mejor de sí misma” ( Benedetti, 2000, p.138).
Este personagem, Mario Orlando Benedetti, permite que o leitor tenha contato com diversos eventos que marcaram a vida do país e dos exilados. Ele lembra que em outros países, inicialmente escolhidos para o exílio, por exemplo Argentina e Perú, a ditadura também chegou e os exilados tiveram que botar o pé na estrada outra vez.
BEATRIZ. É a personagem mais engraçada, simpática e divertida. É uma personagem secundária, mas que desempenhara um papel importante dentro do enredo, servindo muitas vezes para questionar determinadas “verdades” ou certezas. É uma criança esperta e que pergunta muito, chegando, muitas vezes a conclusões absurdas e divertidas. Com certeza ela percebe o clima amoroso entre Graciela e Rolando.
Os trechos narrativos em que ela aparece, diretamente, são sempre em primeira pessoa e parecem composições escolares. Todas essas intervenções aparecem indicadas pelo próprio nome da personagem. Ela trata de muitos assuntos, alguns hilários, outros que fazem com que o leitor pare para pensar.
No romance encontramos outras personagens, porém elas são simples coadjuvantes, servindo para reforçar a história ou para marcar determinados momentos. Apesar de terem uma importância menor dentro do contexto, algumas delas trazem consigo uma grande carga afetiva.
2.3 O LENTO FLUIR DOS DIAS: O TEMPO
O romance apresenta um tempo cronológico, pelo menos é isso o que o autor pretende transmitir. O leitor sabe, percebe com claridade, que está avançando desde um ponto inicial, desde o momento em que aparece Santiago no primeiro “Intramuros”. O relato transcorre desde esse primeiro instante ( na prisão ) até sua chegada no aeroporto, no país onde estão exilados Graciela, Don Rafael, Beatriz, Rolando Asuero e muitos outros uruguaios. Existem muitos flashbacks na obra, mas nunca perdemos a noção, a certeza, de que estamos caminhando para um possível desenlace, num futuro próximo.
Esse tempo que chamamos de cronológico, sofre algumas interrupções, como se fossem paradas obrigatórias numa viagem. Essas interrupções são provocadas pelos capítulos agrupados pelo nome de “Exílio”, quando aparece o personagem Mario Orlando Benedetti. Elas servem para solidificar a história e, definitivamente, marcar o tempo em que ela está acontecendo.
Por esses elementos, diluídos ao longo da obra, podemos afirmar que a história pode ser situada entre a segunda metade da década de 70 e inicio dos anos 80. Isso tomando como referência dados que os personagens e os narradores nos fornecem. Por exemplo: sabemos que Santiago esteve preso cinco anos, dois meses e quatro dias, como ele mesmo afirma em um dos capítulos finais. Sabemos, por Don Rafael, que em novembro de 1980, quando foi realizado o plebiscito no Uruguai, que foi o inicio do fim da ditadura, Santiago estava preso ainda. Se combinamos esses dados com o tempo do autor, isto é a época em que ele escreveu a obra, talvez entre 1980 e 1982, quando foi publicada, chegamos a afirmação de que a história acontece na segunda metade dos anos 70 e inicio dos 80.
Segundo Gèrard Genette existem outros tempos, além do cronológico e do psicológico. Assim teríamos o tempo da diégese ( no qual se desenvolve a história ), o do autor ( época em que ele escreveu ), tempo do discurso ( lapso necessário para receber a informação ), tempo do narrador ( momento em que está inserido esse narrador ) e tempo do leitor ( época em que vive e lê ).
Nesta obra de Benedetti podemos identificar perfeitamente todos esses tipos de tempo.
2.4 TODOS OS MUNDOS DO MUNDO: ESPAÇO E AMBIENTE
Se definimos espaço como o lugar físico (casas, ruas, cidades, países ) onde acontece a história, encontramos uma grande variedade de espaços neste romance. Ele acontece em diversas parte do mundo: no Uruguai, na Argentina, em outros países das Américas, na Europa e até na Oceania. Tudo isso num plano muito abrangente.
Existem sim espaços mais definidos: a cela onde está preso Santiago, o edifício onde trabalha Graciela, a casa onde mora Don Rafael, o esconderijo onde Santiago matou o primo Emílio, o bairro da cidade de Colônia, na Alemanha, onde estudavam os filhos de David Cámpora, o avião que levou Santiago para o exílio, o Balneário Solís, sempre lembrado por mais de um personagem, e assim por diante. Porém, o mais importante desse espaço é sua interação com os personagens. E, a partir desse momento, já estamos falando de ambiente.
Nesta obra o ambiente desempenha um papel fundamental. Não podemos esquecer que, na maioria das vezes, ele está em clara oposição com os personagens. A cadeia, a cela em que Santiago está preso, oprime ao homem, tentando derrubar sua fé. Em uma carta a Graciela ele diz que ter noticias dela e de Beatriz é como abrir uma janela. “Sí, tener noticias tuyas es como abrir una ventana, pero entonces me vienen unas ganas casi incontenibles de abrir más ventanas y, lo que es más grave ( qué locura ), de abrir una puerta. (...) Quizás diga demasiadas veces la palabra puerta, pero tenés que comprender que aquí esa palabra es casi una obsesión, aunque te parezca increíble mucho más obsesión que la palabra barrote.” (Benedetti. 2000, p. 65). O protagonista, esmagado pelo ambiente, pela falta de luz, pela falta de espaço, pelas manchas na parede, pelos gritos desesperados dos companheiros, deseja janelas e portas, que lhe devolvam a vida, a liberdade.
Don Rafael sente a oposição do ambiente, marcada por detalhes: nomes diferentes para objetos, prédios, pessoas. Don Rafael, com quase sessenta e sete anos, já não estava para sobressaltos, porém a cidade reserva, em cada esquina uma nova surpresa. Na sua cidade, no seu Uruguai, ele conhecia cada canto, cada poste de luz, cada árvore, que faziam parte do seu trajeto diário. Nessa nova cidade tudo estava para ser conhecido e isso tirava a tranqüilidade do homem.
Até a pequena Beatriz sente o peso do ambiente na sua vida. Ela sabe da sua condição de exilada, da sua origem diferente. Criança e inteligente, trata de entender o seu entorno descrevendo-o, questionando, buscando pontos de referencia no dia a dia.
Graciela também, como os outros personagens, sente-se pressionada pelo ambiente: no trabalho, no seu bairro, quando viaja de trem (principalmente ao sentar-se olhando para trás.) e até na sua própria casa.
Todos os personagens, sem exceção, devem enfrentar esse ambiente, representado por ruas, casas, vegetação, gente, idioma, culturas diferentes; devem enfrentá-lo, tentando adaptar-se a ele, pois só assim será possível sobreviver.
Os ambientes descritos nesta história são comuns. Não encontramos nenhum detalhe que revele luxo, imponência. Encontramos alguns ambientes históricos, quando entra em cena o personagem Mario Orlando Benedetti, por exemplo.
Porém a característica marcante de todos eles é a força que eles exercem sobre os personagens. Na obra de Benedetti, mesmo que brilhe o sol e o céu queime de tão azul, permanece em nós a sensação de que uma nuvem cinza tira o brilho de tudo.
Benedetti escreveu este romance durante seu exílio. E o ambiente que morde, esmaga, machuca os personagens, e o mesmo que agiu sobre ele. Deve ser por isso que sentimos, em determinados momentos, como esse mundo exterior afeta o íntimo das personagens, refletindo, muitas vezes, numa troca confusa e excitante, o estado de ânimo deles.
2.5 MUITAS VOZES NA MESMA HISTÓRIA: NARRADOR
“Primavera con una esquina rota” apresenta vários tipos de narrador. No jogo proposto pelo autor, esses narradores avançam, e retrocedem, na história. Praticamente para cada personagem temos um tipo de narrador. Por isso analisaremos o tipo de narrador que acompanha cada personagem.
Em “Intramuros” e “Extramuros”, capítulos centralizados em Santiago, temos (utilizando as definições de Genette) um narrador autodiegético, pois está sempre em primeira pessoa e é a voz do protagonista. Analisando o foco narrativo, temos uma focalização interna, fixa.
Para Graciela, diretamente apresentada em todos os “Heridos y contusos”, é possível identificar um narrador heterodiegético, com uma focalização externa na maioria dos capítulos. Em realidade, e aqui buscamos o apoio na teoria de Norman Friedman, como quase todos os capítulos (exceto Heridos y contusos (El dormido ), são construídos por diálogos, a melhor definição seria a de Friedman: modo dramático. Já no capítulo acima citado, o narrador é heterodiegético com uma focalização externa.
Nas partes da obra reservadas para Don Rafael, temos um narrador homodiegético, com focalização interna, fixa.
Em todos os “El otro”, identificados com Rolando Asuero, o narrador é heterodiegético, e, do ponto de vista do foco narrativo, observamos uma focalização interna, variável.
Beatriz apresenta um narrador homodiegético, com uma focalização interna fixa.
Em “Exílios”, que nos apresenta o personagem Mario Benedetti, o narrador é variável. Em alguns capítulos ele é homodiegético, com uma focalização interna fixa, em outros ele é heterodiegética e, analisando o foco narrativo, temos uma focalização zero.
O narratário também é variável, podendo ser um dos personagens ou o próprio leitor, de acordo com o capítulo analisado.
2.6 HISTÓRIA E FICÇÃO: OS CAMINHOS DA EMOÇÃO
Mario Benedetti constrói, com maestria, usando diversos recursos literários, uma obra repleta de emoções, lutas e esperança. Durante sua leitura, que como toda leitura é subjetiva, não podemos deixar de lembrar fatos históricos que mexeram com as idéias e as vidas de várias gerações. Imediatamente, não sei bem por quais caminhos do pensamento, nos remetemos aos tempos em que a nação uruguaia estava em processo de formação. Naquela época, Artigas, o herói máximo, traído pelos unitários portenhos e pressionado pelos espanhóis, empreendeu uma lenta e dolorosa retirada. E os homens, os gaúchos, os índios, os negros, as mulheres, as crianças e os velhos, queimaram suas casas, abandonaram suas posses e foram trás o líder, deixando para o inimigo um país vazio, silencioso e destruído. Preferiram perder tudo, antes de curvar-se ao poder estrangeiro. Esse fato histórico ficou conhecido como o Êxodo do povo oriental ( referindo-se aos uruguaios como orientais, o seja habitantes do lado oriental do Rio Uruguai ) e aconteceu nos primeiros anos do século XIX.
Já no século XX, a história registrou outra dura sangria na corpo e alma da pátria. Os problemas sociais, econômicos e políticos, que começaram a aparecer quando o país deixou de ser a “Suíça da América”, quando todos aqueles avanços no campo social, cultural, político e econômico, foram desaparecendo, levaram inevitavelmente a uma luta armada entre a guerrilha urbana e as forças armadas. Interesses externos e de setores poderosos entraram em jogo, forçando o golpe de estado. A partir de então culpados e inocentes sofreram as conseqüências, e o exílio foi o caminho para fugir da morte, da tortura, da loucura total.
“Primavera con una esquina rota” retrata esse exílio, essa “diáspora” uruguaia.
É impossível ler esta obra sem sentir a faca remexendo no peito, sem identificar-se com as personagens. Hoje ninguém pode avaliar quanto custou à nação essa sangria. Uns querem voltar é não podem, outros querem partir e nunca mais voltar. Uns voltam e descobrem que o país já não é o mesmo, que eles já não são os mesmos, que já não conseguem viver lá, tampouco aqui.
Benedetti conseguiu captar toda esse leque imenso de emoções, de sentimentos desencontrados que habitam a almas dos exilados e dos “desexilados“, como são chamados os que retornaram ao país. Independentemente dos recursos técnicos, do seu estilo, dos esquemas que montou para cativar ao leitor, ele consegue cativar, mas não com uma emoção barata e passageira. A obra prende por sua linguagem simples e, apesar do jogo envolvendo as personagens, a leitura torna-se fácil, transmitindo claramente sua mensagem.
Debaixo da história central, envolvendo um triângulo amoroso, com algumas complicações socio-políticas, alcançamos a ler a verdadeira história. Por isso esta obra foi classificada por alguns críticos como “romance do exílio”. Nessa definição se resume todo o espirito da obra.
“Primavera con una esquina rota”, apesar de deixar um sabor amargo na nossa consciência, a sensação de que poderíamos ter feito mais e nos omitimos, transparece uma certa poesia do cotidiano, uma morna esperança e, ainda, muita fé. Em alguns momentos da leitura, perante fatos que fizeram história, sentimos como, as vezes, é possível vencer e reinventar o destino.
Benedetti consegue a nossa cumplicidade e nos leva pelos caminhos do seu mundo, que não perde contato com o mundo real.
É reconfortante ler, e reler, histórias que mexem com nossa sensibilidade e que falam claramente nossa linguagem emocional.
Por isso, e talvez esta seja uma análise carregada de subjetividade, considero este romance uns dos melhores já escrito por Mario Benedetti.
3 COMO SE FOSSE UM EPÍLOGO
Ao concluir nosso trabalho, acreditamos ter atingido nossos objetivos. Seguimos um roteiro que foi desvendando, desde do ponto de vista da construção, os recursos, as estruturas, os elementos presentes neste romance. Analisamos enredo, o nível desse enredo e suas características. Trabalhamos encima dos principais personagens, estudamos o tempo, o espaço e o ambiente. Identificamos os diferentes tipos de narrador presentes no romance.
Como narrativa moderna que é, “Primavera con una esquina rota”, apresentou uma gama variada de possibilidades, saindo bastante dos moldes tradicionais, mas caindo em novas definições, que tentam explicar essas narrativas modernas.
Deixando de lado rótulos e definições, entendemos que este romance, apesar de tratar de um assunto que pode interessar a determinado grupo, não deixa de ser universal. Em realidade do que se está falando é da luta da humanidade, da força do ser humano procurando seu espaço, seu sol, seu futuro, lutando para melhorar seu mundo, a vezes errando, muitas vezes acertando.
BIBLIOGRAFIA
BENEDETTI, M. Primavera con una esquina rota. (Primera edición pocket). Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2000.
DIMAS, A. Espaço e romance. 3.ed. São Paulo: Ática, 1994.
GANCHO, C. V. Como analisar narrativas. 7.ed. São Paulo: Ática, 2000.
PROENÇA FILHO, D. A linguagem literária. 7.ed. São Paulo: Ática, 2000.