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Artigos-->A DIALÉTICA MACHADIANA EM A IGREJA DO DIABO -- 03/01/2005 - 13:40 (Elias dos Santos Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A DIALÉTICA MACHADIANA EM A IGREJA DO DIABO: O HOMEM COMO FACES ANTAGÔNICAS EM CONFRONTO PERENE



Elias dos Santos Silva

Juvelina Zompero Pereira



RESUMO



O presente artigo promove uma análise da contradição humana verificada no conto “A igreja do diabo”, do escritor fluminense Machado de Assis, objetivando demonstrar a visão machadiana do homem como um ser que antagoniza a si próprio, perenemente, concepção que traz a lume a dialética do literato novecentista. Utilizando o método crítico-comparativo de abordagem textual, o artigo conclui que “A igreja do diabo” é um exercício de grande envergadura sobre a eterna dualidade humana, já pela profundidade das sondagens feitas por Assis quanto à alma do homem, já pelas múltiplas implicações teológicas, filosóficas e psicológicas presentificadas no conto, que cristalizam o ceticismo do escritor para com o virtus dos seres humanos e, numa perspectiva mais restrita, para com a sobreposição absoluta da virtude pelo mal e do mal pela virtude.



Palavras-chave: Contradição; Bem x Mal; Pessimismo; Ceticismo.



1. INTRODUÇÃO



Abordar analiticamente a obra de Machado de Assis é sempre uma tarefa íngreme, seja em função do complexo psicologismo dos personagens e situações, seja ainda pela recorrência freqüentemente implícita de textos clássicos, que perpassam os trabalhos machadianos e que trazem à tona a perfeita leitura que o escritor fizera de determinadas obras e, por extensão, de sua correspondência com pessoas ou eventos narrados pelo autor de Dom Casmurro.

Em A igreja do Diabo não temos uma exceção, antes, pelo contrário, trata-se possivelmente de um dos mais complexos contos produzidos por Machado de Assis, no qual a linguagem, as referências textuais (implícitas e explícitas), os diálogos e os traços aparentemente banais que pontuam personagens e situações formam um mosaico tão amplo e abrangente do ser humano que seria infrutífero pretender encampá-los em uma análise despretensiosa como a que ora promovemos.

Assim, o objetivo principal desse artigo é detalhar a compreensão dialética de Deus e do Diabo presentes na obra para, dessa forma, fazer emergir a concepção igualmente dual do homem, sua grandiosa insignificância ou, ainda, sua dicotomia perene (anjo e demônio) tão bem sondada e narrada por Assis.

Para tanto, optamos por examinar, primeiramente, a dialética em seus contornos conceituais, passando em seguida para o estudo da visão machadiana do homem como um ser habitado por duas faces simétricas e, posteriormente, analisar a intertextualidade verificada na obra que, como tudo no conto, não é gratuita, mas sim corrobora a negação de Bem e de Mal absolutos, de Virtude e Vício estritos, elementos que originam e sedimentam o pessimismo descrente do escritor.

Evidentemente, o artigo não tem, nem mesmo remotamente, qualquer pretensão de exaurir a complexa abordagem da natureza humana promovida por Machado de Assis, mas tão somente posicionar em primeiro plano a sempiterna contradição humana magistralmente narrada pelo escritor.



2. A IGREJA DO DIABO: SÍNTESE



No conto A igreja do Diabo, Machado de Assis narra a história referida por um antigo texto beneditino segundo o qual o Diabo, um dia, teve desejos de fundar uma igreja. Evidentemente, em sua igreja somente teriam lugar os pecadores ou ainda os indivíduos presas de hábitos e vícios descontrolados.

Não existiam regras na igreja de Lúcifer, mas sim total liberdade para errar e cometer todo tipo de pecado que fosse aprazível aos membros.

Graças à liberalidade de sua igreja, é fácil ao Diabo pregar uma doutrina subversiva, capaz de arregimentar milhares de fiéis (ou infiéis, dependendo do prisma sob o qual sejam observados), mas, surpreendentemente, quando tudo se torna permitido, com exceção da prática da bondade, os homens se voltam novamente para o caminho da virtude, passando a seguir os doutrinamentos emanados de Deus. O Diabo volta ao céu e ouve de Deus a frase que sintetiza a essência do homem: “Que queres, tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana”.

Assim, os mesmos homens anteriormente apontados pelo Diabo como seres de uma bondade hipócrita, que ocultava sua natureza má e pecaminosa, não conseguem abandonar os ensinamentos divinos quando têm essa oportunidade, mostrando-se, mais uma vez, dicotômicos, duais, em sua essência que oscila entre o vício e a virtude, indefinidamente.



3. A DIALÉTICA MACHADIANA



Em A igreja do Diabo temos um exercício da mais refinada dialética machadiana, que permeia o texto do início ao fim, até mesmo como forma de reafirmar a natureza ambígua, dupla, do homem, em suas múltiplas faces.

Por dialética, especialmente no contexto do conto de Assis, entendemos a proposição formulada por Hegel (2000, p.15), segundo o qual



A mais alta dialética do conceito (...) é produzir e conceber a determinação, não como oposição e limite simplesmente, mas compreender e produzir por si mesma o conteúdo e o resultados positivos, na medida em que, mediante esse processo, unicamente ela é desenvolvimento e progresso imanente. Essa dialética não é (...) senão a alma própria do conteúdo, que faz brotar, organizadamente, seus ramos e seus frutos. (...) a legitimidade de um sistema filosófico só se instaura como tal desde que, nesse sistema, incluam-se o negativo e o positivo do objeto, e na medida em que tal sistema reproduza o processo pelo qual o objeto se torna falso, em seguida, voltar à verdade.



A afirmação do filósofo alemão é importante para a compreensão do processo dialético impresso por Machado de Assis em A igreja do Diabo, ou seja, não se trata de um mero exercício de tese, antítese e síntese, mas sim da antítese perene que se instaura a partir da premissa hegeliana.

Em outras palavras, a existência do Bem em Assis é incontestável à medida que é confrontada com o Mal, mas, ao mesmo tempo, não será absoluta ou única, pois o mesmo processo que torna possível sua ocorrência revela a co-existência do Mal, de modo contínuo, dúplice, impossível de ser abordado a partir de suas partes contrárias isoladamente.

Hegel (1997, p. 36) explica essa aparente contradição salientando que



Se algo existente não pode, em sua determinação positiva, abarcar ao mesmo tempo sua determinação negativa e manter firme a uma e outra, isto é, se não pode ter em si mesmo a contradição, então não é esta a unidade vivente mesma, não é fundamento, antes sucumbe na contradição.



Ora, Bem e Mal são fundamentos não apenas teológicos, mas também sociais e, em menor escala, psicológicos, o que os tornam elementos profundamente humanos. Sua ocorrência, porém, encontra-se condicionada ao princípio da oposição (por exemplo, só há noite se houver dia), fazendo com que, em Machado de Assis, não seja possível falar de Deus sem falar no Diabo ou ainda que o conto só possa ser apreendido em sua dimensão mais profunda na medida em que se conceba a dialética de Machado de Assis.



4. BEM X MAL: FACES DA MESMA MOEDA



Em A igreja do Diabo um aspecto principal permeia todo o texto, qual seja, a oposição entre Bem e Mal. Tal oposição, contudo, mostra-se mais complementar do que contrária de fato, posto que, na visão machadiana, a ocorrência absoluta de um e outro não é possível, limitando-se a ter lugar paralela e/ou simultaneamente no mundo das idéias ou do concreto.

É evidente que o contista não se restringe apenas aos elementos essenciais (Bem e Mal), mas sim às implicações decorrentes dessa antítese perpétua, o que reafirma, mais uma vez, o propósito dialético de Assis, como afirma Silva (2002, p. 04) ao explicar que



Esse é um mundo motivado pelo tempo dialético, portanto, de oposições, num pensamento dicotômico. Essas oposições que nascem em síntese, por sua vez, originam uma antítese, e assim, sucessivamente. Numa analogia, podemos fundir o preto e o branco, tendo o mestiço, que será um produto que, involuntariamente, negará os dois primeiros fatores. Como nos gêmeos Pedro e Paulo, de Esaú e Jacó, que também renovando o mito de Caim e Abel, são idênticos e, paradoxalmente, sendo a negação um do outro. Ou seja, quando existe a fusão, existe simultaneamente, a negação da fusão.



Bem e Mal são, dentro desse arcabouço, elementos que se fundem originando homens, idéias e eventos, mas esses mesmos homens, idéias e eventos, por representarem a síntese do positivo e do negativo, negam tanto a matriz benéfica quanto maléfica, tornando ao ponto de partida da dialética: a negação.

Aliás, nesse sentido, é oportuno frisar que a essência do Mal, Lúcifer, não é concebido na obra como um ser do qual emana apenas a maldade, mas também qualidades apreciáveis como a beleza, a criatividade, a gentileza e a eloqüência.



- Sim, sou o Diabo, repetia ele; não o Diabo das noites sulfúreas, dos contos soníferos, terror das crianças, mas o Diabo verdadeiro e único, o próprio gênio da natureza, a que se deu aquele nome para arredá-lo do coração dos homens. Vede-me gentil e airoso. Sou o vosso verdadeiro pai. Vamos lá: tomai daquele nome, inventado para meu desdouro, fazei dele um troféu e um lábaro, e eu vos darei tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo... (2003, p. 07).



Como se percebe, o Mal personificado em Satanás é um tanto mistificador, já que o próprio Diabo reúne em si características apreciadas desde a gênese da história da humanidade. Depreende-se desse dado que ou o Mal não é encontrado em estado puro (“O Diabo não é tão feio quanto se pinta”) ou os traços considerados virtuosos têm uma origem comum com os aspectos freqüentemente relacionados ao Mal.

Por mais herética que possa parecer uma tal possibilidade, ela deve ser compreendida de forma mais aprofundada antes que façamos um julgamento precipitado das idéias diluídas em A igreja do Diabo.

De outro modo, Machado de Assis, em sua celebrada profundidade psicológica, não aceita a noção infantil de homens e ações inteiramente boas ou más, uma vez que não aceita (e nisso se aproxima, em sua genialidade, de alguns dos maiores filósofos de todos os tempos) o Bem ou o Mal supremo.

Machado lê, pois, pela cartilha de Nietzsche (2000, pp.303-304), quando este se debruça sobre a estreita relação entre virtude e vício, entre Bem e Mal, afirmando que



A crença fundamental dos metafísicos é a crença nas oposições dos valores. Nem sequer aos mais cautelosos dentre eles ocorreu duvidas já aqui no liminar, onde no entanto era mais necessário: mesmo quando se juramentaram ‘de omnibus dubitandum’. Pode-se, com efeito, duvidar, em primeiro lugar, se há em geral oposições e, em segundo lugar, se aquelas vulgares estimativas e oposições de valor sobre as quais os metafísicos imprimiram seu selo não seriam talvez apenas estimativas de fachada, apenas perspectivas provisórias, talvez, além do mais, a partir de um ângulo, talvez de baixo para cima, perspectivas de rã, por assim dizer, para emprestar uma expressão que é corrente entre os pintores? Com todo o valor que possa caber ao verdadeiro, ao verídico, ao não-egoísta: seria possível que tivesse de ser atribuído à aparência, à vontade de engano, ao egoísmo e ao apetite um valor mais alto e mais fundamental para toda a vida. Seria até mesmo possível, ainda, que o que constitui o valor daquelas boas e veneradas coisas consistisse precisamente em estarem, da maneira mais capciosa, aparentadas, vinculadas, enredadas com aquelas coisas ruins, aparentemente opostas, e talvez mesmo em lhes serem iguais em essência.



Tendo em vista tais considerações, é possível formularmos um silogismo machadiano primordial, qual seja, se existe Bem, este somente existirá à medida que existir o Mal, logo Bem e Mal são unos, inseparáveis, ou, como sintetizaram Seixas e Coelho (1977) “Olha o Mal, vem de braços e abraços com o Bem, num romance astral”.

Em sendo assim, como supor que o homem, que, de acordo com a Bíblia, foi feito à imagem e semelhança de Deus, possa estar isento do Mal se o próprio Todo-poderoso nada mais que é que uma face da moeda que, em seu verso, traz o Mal? Outrossim, como esperar que o ser humano, sendo fruto do pecado original, isente-se de máculas quando seus pais, que viviam sob a guarda direta do Senhor, não o puderam?

É a partir de tais concepções que Assis vislumbra e descreve sua idéia dialética sobre Bem e Mal, o que se verifica, inclusive, nos fragmentos intertextuais nos quais se apóia, como se vê a seguir.



5. A INTERTEXTUALIDADE EM A IGREJA DO DIABO



O conto de Machado de Assis é extremamente rico em alegorias, símbolos e intertextualidade, mas tais elementos não têm, na obra, uma posição aleatória, antes, pelo contrário, prestam-se a um fim único: demonstrar a dualidade onipresente em todos os homens e, por extensão, em seus atos.

Tome-se como exemplo a obra de Rabelais, “Gargântua e Pantagruel” (1991), citada diretamente por Assis (2003, p. 07) no conto, quando afirma, referindo-se às virtudes naturais elencadas pelo Diabo:



O mesmo disse da gula, que produziu as melhores páginas de Rabelais, e muitos bons versos do Hissope; virtude tão superior, que ninguém se lembra das batalhas de Luculo, mas das suas ceias; foi a gula que realmente o fez imortal.



A citação do autor francês por Assis cumpre, ainda que sub-repticiamente, um propósito claro e definido no texto: demonstrar que, ao ter acesso livre e autorizado a tudo aquilo que a religião cristã condena, os homens tendem, pela natural atração pelo proibido, a respeitarem as mesmas normas e regras que anteriormente burlavam. Aliás, nesse aspecto, aproxima-se bastante do próprio Rabelais (1991), que descortina os vícios que se ocultam por sob o manto da virtude em muitas de suas personagens e, também, a situação contrária.

Outro ponto de contato intertextual verificado entre A igreja do Diabo e Gargântua e Pantagruel é referido por Bakhtin (1999), no valioso estudo que faz da obra de Rabelais, apontando, entre outros aspectos, o fato de que, em Rabelais, temos um carnaval de idéias, linguagem, gestos e conceitos, uma vez que as personagens, em geral, mantêm uma essência bufônica.

Nesse sentido, cabe indagar o que o “carnaval” de Rabelais tem a ver com a dialética machadiana? Silva (2002, p.11) explica que



(...) na Bíblia, o salário do pecado é a morte. No entanto, em "A Igreja do Diabo", o pecado tem seu aspecto positivo. O Diabo expõe o Decálogo num plano inverso. Mostra que a Lei de Deus pode ser falha, dando margem a várias interpretações. Nisso, apresenta que o seu Espírito de Negação é suficiente, que a negação é sublime e singular. Com a "carnavalização" de doutrinas, milagres, moralidades e mistérios divinos, Machado de Assis é que nega tudo. Essas blasfêmias dirigidas a uma divindade, pelo diabo do conto, constituíam um elemento necessário nos cultos cômicos mais antigos, só que essas blasfêmias , ao mesmo tempo que degradavam, renovavam; negando e reiterando. É nesse jogo de palavras que Machado de Assis cria esse retrato cômico do mundo, dividido entre a luta do Bem e do Mal. Assim como os vários exemplos de personagens machadianos cindidos entre a eterna dúvida.



Assim, mesmo nas alegorias e na “carnavalização” do conto, inclusive quando da ocorrência de intertextualidade, temos situações que são percebidas não apenas em si mesmas, mas também nas suas imagens invertidas, já que Assis cria “espelhos” nos quais as virtudes e mazelas são refletidas, revelando sua antítese.

Igualmente eloqüente nesse sentido é a intertextualidade do conto com “Fausto”, de Goethe (2003), mencionado diretamente quando o Diabo responde a Deus que não viera “(...) pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo, mas por todos os Faustos do século e dos séculos”.

O significado dessa inclusão do personagem-título de Goethe no conto aponta não para uma mera “homenagem” casual, mas para as implicações mais profundas da concepção de homem de Machado de Assis e, indiretamente, do próprio Goethe (2003, p. 51), pois são de Fausto os dizeres:



Falas assim porque só tens uma aflição, não procuras jamais desvendar as outras! No meu corpo há duas almas em competição, anseia cada qual da outra se apartar. Uma rude me arrasta aos prazeres da terra, e se apega a este mundo, anseios redobrados; outra ascende nos ares; nos espaços erra, aspira à vida eterna e a seus antepassados. Oh, se existem espíritos no alto firmamento, que entre a terra e o céu se agitam com freqüência que desçam dessa névoa áurea, num momento, e me levem a essa nova e brilhante existência!



A intertextualidade, nesse caso, não permanece restrita à convergência de temas, mas sim à própria relação entre Deus e o Diabo que, como no Fausto, é amistosa, simpática, beirando à reciprocidade.

De fato, como bem explica Silva (2002, p. 04), referindo-se à natureza dos contatos entre o Todo-poderoso e sua criação, Lúcifer:



Assim como nem em Fausto, de Goethe, e nem na literatura machadiana, as palavras são empregadas gratuitamente, vemos na primeira, o adjetivo alemão ‘gern’ (“de muito bom grado”, “prazerosamente”) pronunciada por Deus e pelo Diabo. Da mesma maneira, no conto machadiano, quando Deus se dirige ao Diabo com ‘olhos cheios de doçura’ e este o chama de ‘mestre’, existem provas demonstrativas da mútua admiração que se traduz nessa constante troca de elogios das duas partes.

É evidente, tendo em vista tais aspectos, que A igreja do Diabo não se limita a operar com a intertextualidade em seus níveis superficiais, mas sim remete o leitor para esferas mais profundas, que indicam não apenas a densidade da contradição humana, como também seu caráter indissociável em relação ao homem, ou seja, as franjas de algodão nas capas de veludo são eternas.



6. A RELIGIÃO EM MACHADO DE ASSIS



Aspecto de maior relevância no conto que ora analisamos, a eterna contradição humana é abordada por Assis, como sempre, de forma velada, sutil, mais sugerida que mostrada.

De fato, os diálogos entre Deus e o Diabo, sua relação afetuosa, os vícios e virtudes humanos, assim como a presença das franjas de algodão nas capas de veludo e vice-versa, nada mais são do que a reafirmação do princípio platônico da dualidade e da ambigüidade humanos.

Se for remetida para um plano mais amplo, essa contradição encampa também a religião e, por extensão, a Bíblia (ou qualquer outro livro sagrado, como o Alcorão) e até mesmo o conceito de Deus e Diabo ou Bem e Mal.

Em outras palavras, se o homem não consegue ser absolutamente bom ou mal e se esse mesmo homem foi criado à semelhança de Deus, tem-se que ou Deus também é contraditório ou essa afirmação é falsa ou expressa apenas meia-verdade, já que a parte má do homem, forçosamente, teria que advir de outro modelo e este só pode ser Lúcifer.

Assim, como afirma Platão (2000), se Deus existe e permite o Mal, tem-se: ou não é Deus (Todo-poderoso) já que não consegue impedir que o Mal ocorra ou é, também, Mal, já que possibilita sua ocorrência. Logo, temos que, ser contraditório, ter ações que são a antítese da semelhança (ou dessemelhança) com Deus, é algo tão humano quanto crer em Deus e, por reflexão, no Diabo.

Tais considerações são importantes para que possamos compreender a profundidade do pensamento machadiano, que se aproxima da mais arguta filosofia, pois não está a se referir à coexistência inconsciente de virtude e vício no mesmo homem, mas a impossibilidade de ocorrer o predomínio absoluto de uma ou outra.

Para Silva (2002, p.09)



A ‘contradição humana’ aludida no texto remete à contradição da religião cristã em eterno conflito com a essência do homem. Se, para a religião, só Deus existe e atua, agindo verdadeiramente, essa idéia religiosa contradiz o entendimento e o sentido natural que concede às coisas naturais uma certa espontaneidade; o livre-arbítrio humano. Criam-se dois pólos, um positivo que é Deus, e outro negativo que é o mundo. Deus só existe, na verdade, para explicar o sentido da máquina do universo. O homem, que é limitado de entendimento, revolta-se contra esse poder originalmente divino. A religião cristã vê o mundo num sentido prático, de uma origem mecanicista, como algo que foi criado por Deus. Essa máquina controlada divinamente leva o homem a crer alegremente numa força desconhecida despertando, desse modo, a consciência do homem de sua nulidade e dependência de Deus. O homem quer se libertar contra essas verdades presentes, contestando sua origem.



Emerge, assim, uma idéia bastante próxima das possíveis pretensões de Machado de Assis no conto, quais sejam, primeiro demonstrar que a religião cristã ou quaisquer outras assentadas em premissas equivalentes, não levam em conta a natureza do homem, isto é, necessitam de um ser humano coadunado com suas normas e regras sem terem presente que esse tipo de ser simplesmente não existe; segundo, não são capazes de libertar o homem do jugo de sua própria miséria, logo, são ineficientes como instrumento efetivos de redenção.

Nesse sentido, a conclusão lógica de tais premissas é que o homem, para Machado de Assis, será sempre a conjugação de Bem e Mal, vício e virtude, mas com nítida preponderância para o lado negativo pois, uma vez que a tendência do homo sapiens é ser atraído pelo proibido e atendendo ao fato de que não existe, oficial ou oficiosamente, uma Igreja do Diabo, apenas uma que se volta para Deus, é mais do homem ser da terra (do vício) que do céu (virtude). Daí o pessimismo do escritor, sempre presente em suas obras.



7. CONCLUSÃO



Conforme procuramos evidenciar nesse artigo, a dialética de Machado de Assis encontrável no conto A igreja do Diabo é importante não apenas para dimensionarmos adequadamente as possíveis intenções do autor mas, também, em uma perspectiva mais ampla, que encampe sua produção literária como um todo, para situarmos o pessimismo do escritor diante da humanidade e seus atos.

A forma que Machado de Assis encontra para explicitar sua descrença em relação ao homem e sua virtude repousa, assim, obrigatoriamente no exame dialético, pois, como em Hegel, a dialética é a estrutura do real que, concebido como processo, apresenta três momentos, quais sejam a proposição do ser (tese); o da negação do ser (antítese); e, ainda, a negação da própria negação, do ser enquanto elemento constituído e da imagem simétrica que dele se forma (síntese).

No caso específico de A igreja do Diabo, é por intermédio da dialética machadiana que se revelam não apenas a contradição humana, mas também se coloca em xeque a própria fé alimentada pelos indivíduos, pois se não é possível haver o predomínio absoluto do Bem, temos que o Mal está irmanado com o primeiro, logo, encontra-se na essência do homem.

Em sendo assim, como rezar pelo Bem se este é apenas a face reversa do Mal e se as fontes de um e outro se mostram complementares e mesmo unas, revelando a impossibilidade de uma existência individual?

A síntese que se pode tirar de tais proposições, contudo, é tão amara quanto a constatação da fraqueza do homem, de seus vícios perenes e de sua impossibilidade de abarcar plenamente a virtude: é a negação, seja esta do bem supremo e da verdade absoluta, seja ainda de Deus e do poder de redenção da religião e da fé humanas.



REFERÊNCIAS



ASSIS, Machado de. A Igreja do Diabo. Organizado por Virtual Books (Terra). Disponível na Internet em http:// www.virtualbooks.com.br/



BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular e no renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução Yara Frateschi Vieira. Brasília: Hucitec, 1999.



GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto & Werther. Tradução Alberto Maximiliano. São Paulo: Nova Cultural, 2003. (Coleção Obras-primas).



HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Estética: a idéia e o ideal – Estética: o belo artístico ou o ideal. Tradução de Orlando Vitorino. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Coleção Os Pensadores).



NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. Tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Coleção Os Pensadores).



PLATÃO. Diálogos. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Coleção Os Pensadores).



RABELAIS, François. Gargântua e Pantagruel. Tradução David Jardim Júnior. Belo Horizonte: Villa Rica Editoras Reunidas, 1991.



SILVA, Meire Oliveira. A igreja do Diabo - (des)ordem rabelasiana. Disponível na Internet em: http://vbookstore.uol.com.br/ensaios/igreja_do_diabo.shtml





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