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Artigos-->A SUB-CIVILIZAÇÃO LATINO-AMERICANA: FATO OU IDEOLOGIA? -- 03/01/2005 - 13:43 (Elias dos Santos Silva) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A SUB-CIVILIZAÇÃO LATINO-AMERICANA: FATO OU IDEOLOGIA?



Elias dos Santos Silva



RESUMO



O presente estudo analisa a afirmação do estrategista político norte-americano Samuel P. Huntington, segundo o qual a América Latina é uma sub-civilização do Ocidente ou mesmo uma civilização não-ocidental. Valendo-se do método dialético de exame crítico, o artigo conclui que não apenas a classificação da América Latina como sub-civilização está equivocada, mas também que essa idéia traz em seu bojo um claro componente ideológico, mostrando-se, assim, danosa para as relações internacionais futuras entre os países latino-americanos e o Ocidente.



Palavras-chave: Choque de civilizações. Ideologia. América Latina.



1 INTRODUÇÃO



O fim da chamada Guerra Fria, no início dos anos 90, trouxe como uma de suas mais complexas conseqüências a substituição da tensão bipolar entre o Ocidente capitalista e o bloco comunista da Europa Oriental por novas modalidades de conflito, de natureza inédita e multipolar. De fato, como se verifica facilmente na atualidade, os principais embates parecem se dar entre o mundo muçulmano e Ocidental e deste com a China, dentre outros choques de configuração diversa daquela verificada entre 1945 e 1990.

No âmbito de tais transformações, diversos estudiosos (FUKUYAMA, 1992, principalmente, entre outros) dispuseram-se a examinar, de maneiras e com motivações diversas, as implicações inerentes à Nova Ordem Mundial. Para tanto, elaboraram teorias e paradigmas que buscavam apreender não apenas os porquês do novo quadro mundial, mas também prever os desdobramentos e ocorrências que podem vir a ter lugar no futuro.

Nenhum analista de geopolítica internacional logrou obter, contudo, até o momento, tanto êxito quanto o professor do Departamento de Estratégia Política da Universidade de Harvard, Samuel P. Huntington. Partindo da tese de que os conflitos, doravante, dar-se-ão por conta das diferenças culturais e religiosas entre os povos e não mais entre ideologias imanentes aos Estados, Huntington primeiro classifica as civilizações do planeta, antes de discorrer sobre os choques que terão lugar entre as mesmas.

O problema é que a categorização de civilizações proposta pelo cientista é não apenas arbitrária, mas carece de uma sustentação estrutural. Os mesmos critérios de que se utiliza para classificar as diferentes culturas demonstram os equívocos cometidos em sua classificação.

Tendo em vista tais considerações, o presente artigo efetua uma análise dialética e comparativa da delimitação da América Latina como sub-civilização ou civilização não-ocidental feita por Huntington, com o objetivo de demonstrar a falácia tendenciosa de sua argumentação nesse pormenor.

Evidentemente, não é intenção deste trabalho acadêmico esgotar as muitas facetas e desdobramentos políticos e culturais do pensamento do estrategista americano. Uma iniciativa de tal quilate, aliás, mostra-se inviável já pela complexidade e abrangência da obra, já porque o texto possui inúmeras nuances e elementos passíveis de interpretações divergentes. Nosso propósito fundamental é tão somente colocar em evidência alguns dos equívocos cometidos por Huntington na classificação civilizacional que promove e, numa perspectiva mais ampla, o quanto de nocivo, em termos de programa ideológico, existe nesta nova doutrina.



2 A OBRA DE HUNTINGTON



“O choque de civilizações e a recomposição da ordem mundial”, do professor e ensaísta norte-americano Samuel P. Huntington pode ser concebido como uma obra que busca, essencialmente, traduzir fatos. Evidentemente, essa iniciativa se dá sob a ótica ocidental, ao mesmo tempo em que busca apontar direções e tendências futuras no relacionamento entre nações e povos.

A tese principal defendida por Huntington é resumida pelo próprio autor no artigo em que, inicialmente, condensou suas concepções sobre a política internacional (vide referências bibliográficas). Esse mesmo artigo, posteriormente, foi transformado no livro acima mencionado e afirma que (1993, p.135)



(...) a fonte fundamental de conflito nesse novo mundo não será essencialmente ideológica ou essencialmente econômica. As grandes divisões na humanidade e a fonte predominante de conflito serão de ordem cultural. As nações-Estados continuarão a ser os agentes mais poderosos nos acontecimentos globais, mas os principais conflitos ocorrerão entre nações e grupos de diferentes civilizações. O choque de civilizações dominará a política global. As linhas de cisão entre as civilizações serão as linhas de batalha do futuro.



Segundo Huntington, se durante toda a história da humanidade as guerras e os conflitos derivaram de divergências econômicas, políticas, ideológicas ou de outras matrizes, no futuro, esses fatores motivadores darão lugar ao conflito civilizacional. Ou seja, é o choque das diferentes culturas de cada uma das civilizações existentes e das conseqüentes divergências basilares entre elas.

Tendo em vista tais pressupostos, Huntington elenca um número expressivo de argumentos para defender seus pontos de vista, alguns dos quais irrefutáveis, posto que se baseiam em dados quantitativos ou elementos fatuais. O núcleo de sua obra, contudo, não se mostra imune a críticas ou interpretações diversas daquelas que o pensador norte-americano promove. Isso porque a própria classificação de civilizações promovida por Huntington é falha e incoerente. Os dados e argumentos da obra parecem indicar uma possível tentativa de Huntington de justificar, ideologicamente, ações que, posicionadas sob o crivo da perspectiva histórica, são antes instrumentos de agressão e domínio do Ocidente do que mecanismos legítimos de defesa de interesses.

Por se tratar de um texto extremamente complexo e multifacetado, nos isentamos, neste artigo, de buscar apreender o sentido da obra como um todo. Limitamo-nos apenas à categorização de civilizações feitas por Huntington e, mais especificamente, à classificação que faz da América Latina como uma sub-civilização, assim como às implicações dessa teoria.



3 CONCEITO DE CIVILIZAÇÃO x CULTURA



Elemento fundamental na argüição contra a categorização civilizacional de Huntington, o conceito de civilização mostra-se, não obstante, como algo assaz complexo. De fato, sua delimitação depende, entre outros aspectos, de quais os elementos básicos que formam as civilizações e, ainda, das crenças e concepções dos diversos autores que estudam o tema.

Da mesma forma, antes de nos propormos a delimitar o que vem a ser, em linhas gerais, a civilização, cumpre diferenciá-la da cultura, pois se tratam de configurações distintas, ainda que erroneamente tidas como semelhantes por alguns.

Exemplo dessa asserção é a afirmação de Tylor (apud THOMPSON, 1995, p.171) ao salientar que



Cultura ou civilização, tomada em seu sentido etnográfico amplo, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e todas as demais capacidades e hábitos adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade. A condição da cultura, entre as diversas sociedades da espécie humana, na medida em que é passível de ser investigada nos princípios gerais, é um tema apropriado para o estudo do pensamento e da ação humanos.



Nesse sentido, é oportuno dizer que as discussões sobre o binômio cultura-civilização têm ocupado espaço nas mais diversas épocas e lugares. Segundo Thomas Mann (apud BRAUDEL, 1992, p.242) “cultura eqüivale à verdadeira espiritualidade enquanto civilização quer dizer mecanização”.

Lucien Febvre (apud BRAUDEL, 1992, p.253), por outro lado, afirma que “A civilização, tal como a conhecemos, é um movimento, não uma condição; é uma viagem, não um porto”.

Assim, a cultura parece indicar o conjunto de valores, hábitos e costumes que, em menor ou maior escala, definem a identidade societária de um agrupamento humano em relação a outros grupos. A civilização, por sua vez, contém a cultura e expressa-se em um patamar mais amplo, capaz de englobar aspectos como religiosidade, ideologia e matrizes idiomáticas próximas.

Civilização e cultura, são, pois, conceptos distintos, ainda que possuam pontos de convergência, o que é natural, aliás, tendo em vista que uma está contida noutra. Oliveira (1995, p. 36) explica que



A herança cultural não se confunde, porém, com a herança biológica. O homem ao nascer recebe essas duas heranças: a herança cultural lhe transmite hábitos e costumes, ao passo que a herança biológica lhe transmite as características físicas ou genéticas de seu grupo humano. Se uma criança, nascida numa sociedade bororo, é levada para o Rio de Janeiro, passando a ser criada por uma família de Copacabana, crescerá com todas as características físicas -- cor da pele e do cabelo, forma do rosto, em especial os olhos amendoados -- de seu grupo bororo. Todavia, adquirirá hábitos, costumes, a língua, as idéias, modos de agir da sociedade carioca, em que se cria e vive.



Eloqüente, nessa problemática, é a afirmação de Suess (2004), ao comparar criticamente os dois conceitos e ao salientar que



É útil distinguir entre civilização e cultura. A civilização é algo mais abrangente. A civilização não fornece identidade. Você tem identidade junto ao seu grupo social. Não somos cidadãos da modernidade, somos cidadãos do nosso bairro, da nossa comunidade, da nossa família. Por isso distinguimos entre inculturação numa determinada micro-estrutura, e apropriação civilizatória. A civilização é uma caixa comum para a qual todos os povos contribuíram. Depois podemos nos apropriar dos projetos de prata dessa civilização e testar sua utilidade no interior das nossas culturas. As pessoas não se inculturam na modernidade; apropriam-se de elementos da modernidade que são importantes. As conquistas civilizatórias ora ajudam, ora conturbam o estilo de vida dos diferentes povos. O caminhão que entra na aldeia indígena não precisa destruí-la. Uma emissora de rádio, nas mãos dos sem-terra, pode ser politicamente muito importante. Não é a civilização que destrói as culturas, mas a desapropriação política dos respectivos sujeitos culturais.



Isto posto, cumpre agora delimitarmos, em seus contornos gerais, o que é e como se estrutura a civilização, tarefa para a qual concorre o bem urdido pensamento de Elias (apud PEREIRA, 2004, p.3), ao salientar que



a delimitação do conceito de civilização seria aproximadamente como o conjunto de regras de convívio, construídas historicamente, e ligadas diretamente à moral, na qual nos possibilita dizer o que é ou não é civilizado, isto é, o que permite dizermos se um sujeito é ou não civilizado. Este conceito expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo, e carrega em seu bojo tudo aquilo que a torna “especial”, ou seja, aquilo que a permite se distanciar das sociedades primitivas [e de outras civilizações – grifo nosso].



Assim sendo, ao falarmos em civilização no âmbito deste artigo, o fazemos na crença de que os traços civilizacionais atuam no sentido de situar no mesmo patamar pessoas e povos, aproximando-os e congregando-os sob a mesma égide evolucional. Já a cultura irá operar no sentido de distinguir, entre si, esses mesmos povos e pessoas.

Em outras palavras, se tomarmos a religião, um dos marcos basilares de civilização, como parâmetro, tendem a pertencer à mesma civilização argentinos e canadenses (cristãos). Da mesma forma, se utilizamos o idioma, outro traço primário, como balizador, povos cujos idiomas sejam os mesmos ou tenham a mesma raiz, mantêm entre si origens civilizacionais comuns.



4 A IDEOLOGIA EM SEUS CONTORNOS CONCEITUAIS



Temática tão complexa quanto soem ser cultura e/ou civilização, a ideologia, não obstante, é um sistema que se diferencia, in totun, dos elementos culturais/civilizacionais. Em outros termos, seja pelo seu caráter de abrangência restrita (nem todos comungam, num determinado espaço-tempo, ideologia semelhante), seja por implicar em convicção, não em hábitos ou arte ou lei.

Dentre os teóricos que se dedicaram ao estudo do tema, talvez um dos mais profícuos tenha sido Marx, cuja concepção de ideologia, a exemplo de outros tópicos de sua doutrina, encontra-se relacionada com o devir social e histórico. Segundo Magalhães (2004)



Marx entendia a ideologia vinculada às condições materiais de produção, sendo as idéias produzidas a partir do dinamismo das relações humanas. Apesar de objetivar ocultar a realidade, a ideologia faria parte dela, pois a vida determinaria a produção das idéias, e não o contrário, em interpretação que ultrapassava tanto os ideólogos como os empiristas, ao vincular a ideologia com as relações sociais, procurando na história as causas da alienação. Marx foi ainda mais longe ao afirmar que a humanidade era caracterizada pela produção das condições materiais e espirituais de sua existência, e não pela consciência. Desta forma, as idéias adquirem caráter secundário em sua obra, pois são elaboradas a partir das relações sociais de produção, e expressam a realidade de modo simples, imediato e sem reflexão, que ocorreria somente a partir das condições reais de existência.



Elemento importante do conceito de Marx, a intenção de ocultar, mascarar a realidade, é algo igualmente significativo neste artigo, posto que, quando utilizamos o termo ideologia, o fazemos com a crença de que se trata de uma convicção parcial sobre o real. Logo, a ideologia despreza ou alija de si concepções, idéias ou fatos que não se coadunem com sua conformação de pensamento e/ou convicção.

Isso não significa, porém, que concebamos a ideologia ao modo como, simplisticamente, o fazem alguns teóricos, isto é, como uma forma de inversão do real, de distorção total dos efeitos e eventos que formam e moldam a realidade.

Na verdade, a delimitação de ideologia com que trabalhamos nesse artigo coaduna-se com o pensamento de Thompson (1995, p.76) quando salienta que



Fenômenos ideológicos são fenômenos simbólicos significativos desde que eles sirvam, em circunstâncias sócio-históricas específicas, para estabelecer e sustentar relações de dominação. Desde que: é crucial acentuar que fenômenos simbólicos, ou certos fenômenos simbólicos, não são ideológicos como tais, mas são ideológicos somente enquanto servem, em circunstâncias particulares, para manter relações de dominação. (...) Podemos compreender os fenômenos simbólicos como ideológicos e, por isso, podemos analisar a ideologia somente quando situamos os fenômenos simbólicos nos contextos sócio-históricos, dentro dos quais esses fenômenos podem, ou não, estabelecer e sustentar relações de dominação. Se fenômenos simbólicos servem, ou não, para estabelecer e sustentar relações de dominação, é uma questão que pode ser respondida somente quando se examina a interação de sentido e poder em circunstâncias particulares – somente ao examinar as maneiras como as formas simbólicas são empregadas, transmitidas e compreendidas por pessoas situadas em contextos sociais estruturados.



Essas considerações são oportunas no sentido de demarcarmos nossa posição nesse estudo ou, mais precisamente, de fazer emergir a noção de que não concebemos ideologia nem como elemento neutro, nem como fator de distorção da realidade.

Na verdade, quando utilizamos a palavra ideologia, o fazemos de modo a indicar que, na situação especifica da enunciação, tendo como referentes a intenção do(s) defensor(es) da ideologia e o propósito de dominação, o fenômeno ideológico busca assegurar a eclosão ou manutenção de um status quo definido.

Assim, ao nos referimos à ideologia no presente texto, ela deve ser compreendida, especificamente, como as ações, o pensamento e as articulações que visam dar sustentação aos conceitos de Huntington sobre e com vistas a dominação. Do mesmo modo, tal ideologia subjaze à convicção dos que avalizam o pensamento do autor americano e, bem assim, atuam, de modos e em situações diversos, de maneira a conseguirem manter, reafirmar ou criar formas de dominação.



5 AS CIVILIZAÇÕES ATUAIS, SEGUNDO HUNTINGTON



Elemento altamente polêmico do livro de Huntington, a classificação que promove das civilizações ora existentes no mundo mostra-se assaz arbitrária, contradizendo-se, inclusive, na determinação de seus próprios critérios de categorização civilizacional.

Segundo Huntington (1997, pp.50-53), o mundo divide-se atualmente em sete civilizações, com características idiomáticas, religiosas, étnicas e sociais bastante distintas, isto é, tratam-se de culturas diferentes entre si. São elas:



Sínica: (...) O termo “sínica” (...) descreve de forma apropriada a cultura comum da China e das comunidades chinesas do Sudeste Asiático e em outros lugares fora da China, bem como as culturas com ela relacionadas do Vietnã e da Coréia.

Japonesa: Alguns estudiosos combinam as culturas japonesas e chinesa (...) A maioria, porém, não o faz e, ao contrário, reconhece o Japão como uma civilização distinta que foi fruto da civilização chinesa (...).

Islâmica: (...) Originando-se na Península Arábica no século VII d.C., o Islã se espalhou rapidamente através do norte da África e da Península Ibérica, bem como, na direção do leste, pela Ásia Central, pelo Subcontinente e pelo Sudeste Asiático.

Ocidental: A civilização ocidental é geralmente dada como tendo surgido por volta de 700 ou 800 d.C. De forma geral, ela é vista pelos estudiosos como tendo três componentes principais na Europa, América do Norte e América Latina.

Latino-americana: A América Latina (...) evoluiu por um caminho bastante diferente dos da Europa e da América do Norte. Um produto da civilização européia, ela também incorpora, em graus variados, elementos de civilizações indígenas americanas que não se encontram na América do Norte e na Europa. Ela teve um cultura corporativista, autoritária, que existiu em muito menor grau na Europa e não existiu em absoluto na América do Norte. (...) A América Latina poderia ser considerada uma subcivilização dentro da civilização ocidental ou uma civilização separada (...). Dessa forma, o Ocidente inclui a Europa e a América do Norte, e também outros países de colonização européia como a Austrália e a Nova Zelândia.

África (possivelmente): (...) O norte do continente africano e sua costa leste pertencem à civilização islâmica. Historicamente, a Etiópia, com suas instituições distintas, igreja monofísica e língua escrita, constituiu uma civilização própria. Em outros pontos, o imperialismo e os colonizadores europeus trouxeram elementos da civilização ocidental. (...) Contudo, pela África afora, as identidades tribais são profundas e intensas, embora os africanos também estejam desenvolvendo cada vez mais uma noção de identidade africana, sendo possível que a África subsaárica se junte numa civilização distinta (...).



Como podemos perceber na classificação de Huntington, são sete as principais civilizações que particionam o planeta na atualidade, mostrando-se, na concepção do estrategista político, basilarmente diferentes entre si.

Cumpre ressaltar que tal classificação, em que pesem os argumentos do autor em contrário, não é (nem pode) ser absoluta.

O primeiro elemento contrário à distinção de civilizações feitas pelo autor é quanto ao pseudo caráter fechado das culturas primárias que distinguem os Estados-núcleos e povos de cada agrupamento. Huntington parece não ter presente que civilizações são, em última instância, a forma maior da identidade cultural de vários povos e que tal identidade, até mesmo em função do natural dinamismo dos agrupamentos humanos, não é estática, antes, mostra-se passível de evolução e mudança (BRAUDEL, 1992).

Em sendo assim, como impedir que, em contato, tais culturas se interpenetrem, mesmo que de forma desigual? Como não aceitar a hipótese de que as civilizações não sejam híbridas, quando até o hermético Islã traz em seu livro sagrado, o Alcorão, claros elementos do cristianismo? O que dizer, ainda, da cultura japonesa, que se assenta, estruturalmente, em ensinamentos, práticas e postulados chineses?

Ao desconsiderar tais aspectos, a classificação de Huntington traz à tona não a verdadeira essência das diferentes culturas que se agrupam em civilizações diferentes no mundo atual, mas sim suas concepções pessoais.

Ainda nesse aspecto, ao afirmar que a África, possivelmente, tenderá a unir grande parte do seu território em uma civilização distinta das demais, Huntington incorre em uma contradição estrutural. Em outras palavras, se os principais elementos que delimitam as civilizações são a religião, idioma e valores, como acreditar que grupos tão diferentes em termos religiosos, idiomáticos e valores possam aglutinar-se sob o mesmo manto civilizacional? Isso só seria possível se o conceito de civilização de Huntington estiver errado, assim como a classificação que promove.

Isto posto, contudo, não iremos aprofundar as questões subjacentes à divisão do mundo em civilizações proposta por Huntington, mas sim enfocar um dos aspectos dessa classificação que é a exclusão da América Latina da civilização ocidental, como se vê a seguir.

6 AMÉRICA LATINA: CIVILIZAÇÃO À PARTE OU SUB-CIVILIZAÇÃO?



Tendo por base os objetivos centrais deste artigo, no presente tópico propomo-nos a rever, criticamente, a afirmação de Huntington de que a América Latina nada mais é que uma sub-civilização do Ocidente (isso, caso queira ser “inclusa” em tal civilização). Outra hipótese levantada pelo autor é a de que os contornos culturais e a trajetória histórica que a civilização latino americana apresenta a tornam uma civilização não-ocidental, embora de feições indistintas e próximas do Ocidente.

Para que seja possível contra-argumentar as assertivas de Huntington, é necessário, inicialmente, referirmos o que vem a ser o Ocidente ou antes, quais os elementos caracterizadores da civilização ocidental.

Com exceção da modernidade (da qual, aliás, o autor é um dos grandes defensores e teóricos), Huntington (1997, pp.83-85) afirma que os traços que podem ser legitimamente identificados como ocidentais são:



O legado clássico: (...) São muitos os legados recebidos pelo Ocidente da civilização clássica, inclusive a filosofia e o racionalismo gregos, o Direito Romano, o latim e o Cristianismo.

Catolicismo e protestantismo: O Cristianismo ocidental, primeiro Catolicismo e depois Catolicismo e Protestantismo, é, do ponto de vista histórico, a característica isolada mais importante da civilização ocidental. (...) A Reforma e a Contra-Reforma, bem como a divisão da Cristandade ocidental num norte protestante e num sul católico, são também aspectos característicos da história ocidental, inteiramente inexistentes na Ortodoxia oriental e em larga margem distanciados da experiência latino-americana.

Idiomas europeus: O idioma só fica em segundo lugar para a religião como um fator que distingue as pessoas de uma cultura das de outra. O Ocidente se diferencia da maioria das outras civilizações por sua multiplicidade de idiomas.

Separação da autoridade espiritual e temporal: Através de toda a História ocidental, primeiro a Igreja e depois as muitas igrejas viveram separadas do Estado. (...) Essa divisão da autoridade contribuiu de forma incomensurável para o desenvolvimento da liberdade no Ocidente.

Império da lei: A noção de que a lei é um elemento essencial na existência civilizada foi herdada dos romanos. Os pensadores medievais elaboraram a idéia do direito natural, segundo o qual os monarcas deviam exercer seu poder, e uma tradição de direito comum se desenvolveu na Inglaterra. (...) A tradição do império da lei assentou as bases para o constitucionalismo e a proteção dos direitos humanos, inclusive os direitos de propriedade, e também contra o exercício do poder arbitrário.

Pluralismo social: Historicamente, a sociedade ocidental tem sido altamente pluralista. Como observa Deustch, o que é específico do Ocidente é a ‘ascensão e persistência de diversos grupos autônomos não baseados em relações de sangue ou casamento’. (...) A maioria das sociedades européias ocidentais incluiu uma aristocracia relativamente forte e autônoma, um campesinato substancioso e uma classe porém importante de mercadores e comerciantes.

Corpos representativos: O pluralismo social logo levou ao surgimento de assembléias, parlamentos e outras instituições para representar os interesses da aristocracia, do clero, dos comerciantes e outros grupos. Esses órgãos proporcionavam formas de representação que, no curso do processo de modernização, evoluíram para as instituições da democracia moderna. [Da mesma forma, as organizações evoluíram do nível macro para o micro – grifo nosso] (...) A representação em nível nacional foi assim suplementada por uma dose de autonomia em nível local que não se repetiu em outras partes do mundo”.

Individualismo: Muitos dos aspectos da civilização ocidental mencionados acima contribuíram para o surgimento de uma noção de individualismo e uma tradição de direitos e liberdades individuais únicos dentre as sociedades civilizadas. (...) O individualismo continua sendo uma marca típica do Ocidente dentre as civilizações do século XX.



A bem da verdade, Huntington (1997, p. 85) afirma que a enumeração das características ocidentais anteriormente citadas não tem a pretensão de exaurir as possibilidades nesse sentido. Alerta, ainda, que elas não são, individualmente, exclusivas da civilização ocidental, mas sim que, quando somadas, formam o amalgama primordial que distingue o Ocidente de outras civilizações.

Não obstante, apesar dessas ressalvas, a argumentação contida no livro mostra-se falaciosa quando categoriza a América Latina como sub-civilização ou mesmo como civilização não-ocidental. Senão, vejamos:

1 - O legado clássico: A América Latina, como um todo, e o Brasil em particular, foram, a exemplo do que ocorreu com a Europa e, depois, com a América do Norte, depositários, ao longo de sua História, daquilo que Huntington denomina de legado clássico. De fato, vicejaram no Brasil e na América Latina desde o pensamento filosófico clássico (o homem em suas múltiplas manifestações e relações) até o pensamento racional, o Direito Romano, o latim e o Cristianismo. Evidentemente, tais elementos não se verificaram ao mesmo tempo e/ou na mesma intensidade, mas os registros de sua ocorrência na América Latina ao longo dos séculos são por demais evidentes para serem negligenciados. Exemplo eloqüente dessa asserção são as obras do realismo-naturalismo literário latino-americano e brasileiro em particular. As bases desses movimentos estão assentes no racionalismo cartesiano e no empirismo inglês, que haviam desembocado no Iluminismo do século XVIII. Logo, a América Latina foi, no decorrer de sua evolução, influenciada e norteada pelo pensamento filosófico advindo da Antigüidade. O Direito Romano, por sua vez, é recorrente nos códigos latino-americanos. Tanto as Ordenações do Reino Filipinas, quanto as Manuelinas e Afonsinas, assim como os subseqüentes códigos civis dos países da América do Sul que as seguiram mantinham claros elementos do Direito Clássico, como soem ser as obrigações, o direito de família, o direito à propriedade, etc. (PINHEIRO, 2001). Do latim e do cristianismo pouco há que ser dito, posto que os idiomas predominantes na história de todos os países da América Latina são derivados, in totun, da matriz latínica, língua que até os nossos dias empresta termos ao português e ao espanhol. No tocante ao cristianismo, a Igreja Católica foi a mentora espiritual oficial (amplamente predominante) nos países latino-americanos durante séculos. Quando passou a ter sua hegemonia ameaçada, nas últimas décadas do século XX, foi para a vertente protestante do cristianismo, como o próprio Huntington (1997) reconhece.

2 - A religião: conforme Huntington (1997) afirma, a religião é o traço civilizacional mais significativo, independente do contexto histórico-situacional que se tome como parâmetro. Assim, chega a ser surpreendente que, reconhecendo na América Latina, desde os primórdios de sua história, o predomínio do Cristianismo, primeiro com o catolicismo e, mais recentemente, com o Protestantismo, o ensaísta negue a inserção integral dos latino-americanos no Ocidente. Tal argumento é válido apenas se a imigração de protestantes europeus para a América do Norte durante a colonização americana e canadense for considerada um elemento diferenciador, em termos de civilização, dos norte-americanos em relação aos sul-americanos. Isso, porém, não se verifica, já que, caso assim fosse, países como a Itália, França e Espanha (visceralmente católicos) estariam automaticamente excluídos da civilização ocidental, o que Huntington não afirma em momento algum. Outra possibilidade que pode ser aventada é a de que o ensaísta, ao excluir a América Latina do Ocidente, o faça na convicção de que a religião cristã, nos países da América Latina, tenha “contaminado-se” com outras crenças (de origem africana ou indígena). No caso de tal hipótese ser correta, trata-se de um erro de avaliação de grande monta. Afinal, em que pese a influência das religiões afro na cultura latina ou ainda da eventual presença de elementos pertinentes aos ritos indígenas passíveis de serem constatados no inconsciente místico latino-americano, são fatores religiosos quase insignificantes no totun social. Assim, são incapazes de influenciar ou alterar substancialmente a pureza da dogmática católica. Além disso, é fato público que os protestantes não são exatamente admiradores de ritos indígenas ou do candomblé. Tendo, pois, a religião como cerne da identidade civilizacional, não é possível diferenciar um argentino e um brasileiro de um americano e/ou de um canadense, no que tange à sua identidade cultural. De fato, as influências que sofreram da religião, sejam estas decorrentes da dogmática católica ou da corrente protestante, não foram em grau tal de diversidade que fomentem e sedimentem configurações de civilização contrastantes. Em outras palavras, o catolicismo brasileiro, boliviano, chileno ou peruano não se apresenta, em seus aspectos primordiais, tão diferente do protestantismo americano ou canadense de maneira a moldar indivíduos com identidades civilizacionais heterogêneas. Tal diferença é ainda menor se compararmos o catolicismo argentino com o francês ou ainda com o italiano.

3 - Separação da autoridade espiritual e temporal: um outro argumento bastante eloqüente contra a afirmação de Huntington sobre a não-inclusão da América Latina no Ocidente é a inegável separação entre Estado e Igreja nos países da América do Sul. De fato, ao longo da história, ocorreu uma nítida influência da Igreja nos negócios do Estado nos países latino americanos. Não obstante, é igualmente claro o fato de que, oficial e institucionalmente, os clérigos tiveram que se ausentar progressivamente dos negócios do Estado a partir do momento em que as nações americanas do hemisfério Sul conquistaram sua independência. Logicamente, nem todos os países latino-americanos apresentaram o mesmo grau de laicidade na condução das atividades do Estado, mas esse dado, ao invés de depor a favor da tese de Huntington é, na verdade, contraproducente. Afinal, nações consideradas essencialmente ocidentais, como a França, jamais foram excluídas dessa civilização mesmo tendo exemplos, relativamente recentes, de um poder conjugado entre Estado e Igreja. O mesmo pode ser dito com relação à Itália, cuja separação oficial entre os negócios religiosos e estatais somente se deu na segunda metade do século XIX, o que não torna os italianos, na perspectiva de Huntington, sub-civilizados ocidentais.

4 - Pluralismo social: também no que diz respeito ao chamado pluralismo social, a América Latina apresenta-se como um continente ligado, essencialmente, ao Ocidente. Tratam-se de países nos quais a mobilidade social, as oportunidades de crescimento, assim como a conseqüente associação de grupos semelhantes sempre ocorreu, ainda que não na mesma proporção que nos Estados Unidos, para ficarmos em único exemplo. Se utilizarmos como parâmetro a reunião de grupos e a formação de corpos representativos ocorridas na Argentina e Brasil a partir do início do século XIX, poderemos verificar o quanto existe de tendencioso na hipótese de Huntington. Classes como a dos estancieiros, dos comerciantes, dos artesãos, dentre muitas outras, cuja atuação deu-se não apenas nas áreas políticas e econômicas, mas também em outras esferas, são bastante eloqüentes como indicadoras do pluralismo social existente na América Latina. No Brasil, em particular, a História é fértil em exemplos de grupos que, irmanados por interesses comuns, fizeram da associação (embora nem sempre da organização) seu patamar de ação e atuação. Tome-se, aliás, como referência, as muitas revoltas e revoluções ocorridas no Brasil e na América Latina e ter-se-á um painel bastante nítido do quanto o pluralismo social marcou a trajetória das nações latino-americanas (PRADO JÚNIOR, 1961).

5 - Individualismo: o individualismo é um outro aspecto no qual Huntington (1997) baseia-se para delimitar a civilização ocidental e no qual temos, mais uma vez, um claro indicador da plena inserção latino-americana no Ocidente. Exemplo inequívoco dessa asserção é a constatação feita por Holanda (1988, p.04), referindo-se ao caráter do homem que povoou o Brasil e, em parte, a América Latina, que ele provinha de um local (a Península Ibérica) no qual vicejava o individualismo: “Pode-se dizer, realmente, que pela importância particular que atribuem ao valor próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um dos homens em relação aos semelhantes no tempo e no espaço, devem os espanhóis e portugueses muito de sua originalidade nacional”. Ou seja, desde os seus primórdios, a América Latina, em especial o Brasil, foi povoada por um tipo autônomo. Esse indivíduo mostrava-se mais propenso a garantir e a lutar por aquilo que considerava ou que de fato era direito seu, do que atirar-se os entreveros em defesa de instituições e entidades para ele abstratas como a pátria, a fraternidade ou quaisquer outras de mesma jaez. Ora, de um tal tipo de colonizador e, posteriormente, de latino-americano, pode-se dizer que seja qualquer outra coisa que não individualista, que não puna pelo que considera seu, legitimamente, batendo-se ainda pela preservação dos seus direitos e garantias. Desse modo, acreditar, como faz Huntington (1997), que tal indivíduo não seja identificado com o Ocidente, mesmo com tamanha autonomia individual, é laborar em engano, quando não em má-fé.

É possível constatar, assim, que as mesmas características citadas por Huntington (1997) como primordiais à civilização ocidental e que antecedem, inclusive, a modernização verificada no Ocidente, dão-se, integralmente, na história da América Latina.

Evidentemente, o grau, a forma e até mesmo a duração com que esses caracteres são identificáveis nos países latino-americanos são bastante variados. Isso não significa, todavia, que, na ausência de um ou mais desses indicadores civilizacionais, um Estado ou mesmo toda a América Latina possa ser excluída, à sua revelia, do Ocidente. Caso contrário, os países da Europa que, em épocas e com graduações diversas, apresentaram as mesmas variações, seriam sumamente alijados, mediante os critérios do autor norte-americano, da civilização ocidental.

Tais dados, porém, não esgotam os argumentos contra a tendenciosidade de Huntington ao rotular a América Latina, como se vê na seqüência.



7 A INDIGENIZAÇÃO DA AMÉRICA LATINA



Tão importante quanto os tópicos anteriormente relacionados nesse artigo no sentido de contrapor as afirmações de Samuel Huntington sobre o caráter sub-civilizacional latino-americano, é o entendimento daquilo que o autor denomina de indigenização dos países da América do Sul.

Conforme reitera o cientista político, a indigenização caracteriza-se pela retomada daquilo que se poderia convencionar de “valores culturais próximos”, ou seja, dos elementos da cultura (incluindo-se aí valores, crenças, aspectos lingüísticos, folclore, etc.) que encontram-se na base da formação e evolução dos povos.

Ora, no caso da América Latina essa indigenização a que se refere Huntington nada mais é que o corpus não-ocidental, isto é, as linhas de pensamento e ação que divergem das diretrizes ocidentais (leia-se americanas). São, em síntese, as visões que buscam revalorizar o elemento essencialmente nacional, regional, distanciando-se em certa medida do que o ensaísta considera como elementos coadunados com a civilização ocidental. Trata-se, pois, de um conceito político (indigenização, nesse âmbito, eqüivale a esquerdismo político) e literal (engloba as culturas silvícolas, não-ocidentais).

Se não é possível negar que, na América Latina, a esquerda sempre esteve na contramão do que preconizam Washington e os países alinhados aos EUA, também é fato que a expressividade e a extensão desse sentimento anti-ocidental ou, por outro viés, anti-americano, nunca logrou ultrapassar o acanhado recinto material das discussões politicamente engajadas. Ou seja, tal indigenização não possui a influência e a compleição necessárias para alijar, ideologicamente, a América Latina do bloco ocidental. Basta lembrar que, até o momento, nenhum governo comunista ou abertamente hostil a Washington deteve o poder na América do Sul ou no México, por exemplo.

Outrossim, ao abordar essa questão como se a referida indigenização ocorresse de maneira homogênea na América do Sul, América Central e México, Huntington promove uma massificação grosseira, que atenta contra a investigação cientificamente respaldada.

Em outras palavras, não se pode colocar no mesmo patamar a indigenização peruana e argentina, por exemplo. No Peru, as visões culturais, religiosas e políticas são repassadas de um claro laivo indígena de fato; na Argentina, por sua vez, temos uma população étnica, religiosa, política e, mais importante, culturalmente não-indígena. Da mesma forma, não é possível comparar, em termos de nacionalismo indígena, um país eclético em termos étnicos como o Brasil e uma nação de ascendência predominantemente guarani, como é o caso do Paraguai.

Emblemática, nesse sentido, é a afirmação de Prado Júnior (1961, p. 79), quando explica que



Os povos que os colonizadores aqui encontraram [refere-se ao Brasil, embora isso também se aplique à América Latina como um todo – grifo nosso], e mais ainda os que foram buscar na África, apresentam entre si tamanha diversidade que exigem discriminação. Debalde se quererá simplificar o problema, e como tem sido feito, no caso dos negros em particular, esquecer aquela diversidade sob pretexto de que a escravidão foi um molde comum que os identificou.



A ressalva de Caio Prado Júnior (1961), um dos mais eminentes historiadores brasileiros, é extremamente oportuna quando analisamos realidades históricas tão distintas quanto a dos países latino-americanos.

Em outras palavras, tanto os negros trazidos para o Brasil, quanto os indígenas que aqui já residiam, não tinham ou mantinham laços culturais próximos. Pelo contrário, eram freqüentes os antagonismos e conflitos entre os grupos tribais. Em sendo assim, como esperar que tais diversidades e mesmo tais discrepâncias pudessem formar um amalgama entre si e, numa perspectiva mais ampla, com o colonizador branco, de modo a indigenizar visceralmente a população brasileira e latino-americana? Como fazê-las, a despeito de todos os traços ocidentais aqui encontrados, dar origem a uma civilização não ocidental ou ainda a uma mera sub-civilização?

A insipiência do pensamento anti-americano na América Latina, a conformidade carente de alcance social e repercussão popular da ideologia e da dogmática de espectro socialista, assim como o massacre cultural das manifestações indígenas pelo rolo-compressor ocidental parecem ter sido totalmente negligenciados por Huntington. O autor não sabe ou finge ignorar que a reação indígena, que ele credita como um dos principais fatores da não-ocidentalização latino-americana, é por tal maneira inócua que, per si, jamais poderia mudar os rumos e as diretrizes religioso-culturais dos países da América Latina.

Prado Júnior (1961, p. 79) complementa esse raciocínio, salientando que



A distinção apontada se impõe, e se manifesta em reações muito diferentes para cada um dos vários povos africanos ou indígenas que entraram na constituição da população brasileira [e, também, latino-americana – grifo nosso]; diferença de reações perante o processo histórico da colonização que não pode ser ignorada. No caso dos índios, o avanço da colonização, a ocupação do território, a maior ou menor facilidade com que prestam seu concurso ao colono branco, com ele coabitam e amalgamam, contribuindo assim para as características étnicas do país, são outras tantas circunstâncias da maior importância sem dúvida, para a história, que derivam de particularidades étnicas próprias a cada um daqueles grupos e povos.



Temos, pois, um quadro extremamente lúcido da origem étnica dos povos da América Latina, embora Prado Júnior (1961) refira-se, no caso em tela, ao Brasil. Cabe alertar que, quando Huntington menciona a indigenização ocorrida na América Latina, não o faz tendo o cuidado de diferenciar povos, origens, formação e desenvolvimento populacional e cultural.

Em outras palavras, o ensaísta americano coloca no mesmo “balaio” desde povos de cultura historicamente indígena como os peruanos e os guatemaltecos, até grupos de indivíduos com uma clara orientação étnica e mesmo cultural européia. No caso destes últimos temos exemplos inequívocos, como ocorre com o Uruguai e a Argentina. É desse “balaio” que emerge a América Latina sub-civilizacional concebida por Huntington.

Segundo explica Sampaio (2001, p. 08), o ensaísta americano



(...) ao realçar nossas raízes em Portugal e no indígena e na cultura negra (com seu centro na Bahia) no coloca, claramente, diante de sua classificação: não somos ‘o Ocidente’ ou não somos um ‘Ocidente puro’ e o mesmo se aplica à Latinoamérica, com sua enorme herança indígena; seja o ‘chollo’ peruano ou o araucano do sul do Chile ou os Chibchas e Bochicas, no Equador, Venezuela, além dos índios dos altiplanos bolivianos ou a herança dos guaranis no Paraguai.



Dessa forma e valendo-se de argumentos que, aparentemente ou ainda dependendo do ponto de vista de interpretação, podem ser considerados factíveis, Huntington constrói sua tese, à revelia daqueles a quem classifica, inferioriza ou realoca no cenário geopolítico mundial. Dessa forma, faz jus ao subtítulo de sua obra, isto é, “a recomposição da Ordem Mundial”.

Nesse sentido, cabe indagarmos por que Huntington argumenta dessa forma? Por convicção científica? Ideológica? Vaidade acadêmica? Algumas das possíveis respostas para tais indagações são dadas no tópico seguinte, quando procuramos não apenas examinar as ilações do texto do estrategista político, mas também, dentro das limitações desse estudo, as falácias e perigos de sua tese.



8 IMPLICAÇÕES DA IDEOLOGIA DO “CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES”



A tese principal de Huntington, as hipóteses que aventa, assim como os argumentos que elenca são revestidos de um inequívoco tom ideológico. Essa afirmação torna-se ainda mais factível quando verificamos que o cientista sempre esteve ligado ao pensamento político norte-americano e mantém, desde meados da década de 60, estreita relação com membros do governo dos Estados Unidos.

Sobre ele, Sampaio (2001, p.02) esclarece que



(...) a par de sua posição na Universidade de Harvard, onde é diretor do Instituto para Estudos Estratégicos, preside a Academia de Harvard para Estudos Internacionais e foi diretor de Planejamento de Segurança do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, durante o governo Carter. Tem atuação na revista Foreign Policy e já exerceu a presidência da Sociedade Americana de Ciência Política. Assim, o que ele escreve deve ser objeto de profunda análise por nós.



Logo, quando faz chegar até o leitor uma sucessão de fatos, dados e interpretações, Huntington não está, ao contrário de grande parte dos seus conterrâneos, reforçando estereótipos ou veiculando idéias desinformadas sobre o resto do mundo. Ao contrário, trata-se de um indivíduo com conhecimento de causa, tanto no plano teórico, quanto no prático e, ainda, dos complexos desdobramentos culturais e sociológicos inerentes aos temas abordados em sua obra.

Nesse sentido, a sondagem da categorização da América Latina como sub-civilização ou civilização diferente da ocidental, bem como da carga ideológica contida em tal âmbito, é crucial à compreensão dos rumos que, provavelmente, deverão ser tomados na política externa americana, em relação aos latino-americanos.

Como o próprio Huntington salienta, os contatos, em qualquer nível, entre os povos, mostram-se mais produtivos e fecundos entre aqueles pertencentes à mesma civilização. Assim, a América Latina, suas relações com a Europa e os EUA e, mais especificamente, os eventuais pontos de tensão que existem ou existirão em tal relacionamento, tende a ter problemas. Numa perspectiva sombria, a separação dos latino americanos da civilização ocidental poderia conceder margem a ações, inclusive de natureza belicosa, do Ocidente contra os países do hemisfério Sul na América. Se são civilizações diferentes, pela perspectiva de Huntington, tratam-se de iniciativas legitimas.

Isso decorreria em linha direta da aplicação prática dos doutrinamentos da obra, pois



(...) na medida em que nos colocando fora da civilização ocidental, que é a de Huntington e dos americanos e europeus, ele estabelece uma clivagem, uma diferenciação, de caráter geopolítico, querendo significar que somos ‘diferentes’ e, nesta diferenciação, sutilmente, ele nos alinha naquilo que o teórico francês Jean-Christophe Rufin chamou de ‘os novos bárbaros’ ou ‘bárbaros do sul’ (SAMPAIO, 2001, p.04).



Ainda que um tal tipo de ilação possa ser, compreensivelmente, rotulada de alarmista, não é preciso que concebamos uma possível ação bélica ou mesmo tão francamente agressiva como esta, para que a ideologia de Huntington se mostre perigosa para os latino-americanos.

Se circunscrevermos as possíveis implicações geopolíticas da obra de Huntington à esfera econômica e, em especial, ao comércio tri-lateral entre Estados Unidos, Europa e América Latina, poderemos verificar que falta muito pouco para o protecionismo ocidental desencadear um processo que se aproxima muito mais da retaliação comercial depredatória do que de uma agenda para o consenso. Eloqüentes, nesse sentido, são as penosas e infrutíferas negociações com os EUA em relação à ALCA, para ficarmos em um único exemplo.

Aliás, a ALCA, as cláusulas que deverão integrar o acordo, seus reflexos e implicações econômicos e comerciais, além de outros aspectos subjacentes à Área de Livre Comércio das Américas, é, possivelmente, um dos mais eficientes instrumentos de mensuração e análise do quantun ideológico da doutrina de Huntington.

Em outras palavras, como se percebe já em nossos dias, os governantes americanos têm demonstrado uma flexibilidade cada vez menor de se curvarem às exigências de países que integram outras civilizações quando de negociações de natureza diversa. No caso das relações comerciais entre o Brasil e os EUA, verifica-se facilmente que os aspectos mais importantes para os brasileiros são justamente os que nunca são modificados, nem mesmo superficialmente. Ora, se comercialmente isso pode ser contornado de forma mais ou menos eficiente pelos negociadores comerciais brasileiros, em uma perspectiva mais ampla, que encampe também a intenção política e ideológica, um tal posicionamento é antes a reafirmação de uma estratégia definida do que um fato isolado.

Eloqüente, nesse sentido, é a afirmação de Cannabrava (1977, p.27), segundo o qual



O conceito de política, no sentido tecnológico, define todo e qualquer comportamento em que cada decisão subseqüente se encontra determinada pela decisão antecedente (...). As condições iniciais da decisão política figuram, na programação dinâmica, sob a forma de estratégia adaptada aos fatores econômicos ou sociais aleatórios que se modificam sob a influencia das situações (...). A programação dinâmica das decisões políticas preserva a sua flexibilidade através da revisão periódica das alternativas perante os critérios de seleção. A modificação de estratégia política, porém, determina novas seqüências de decisões que se mantenham dentro das normas fixadas. A mudança de uma estratégia de decisão, porém, exige o exame qualitativo dos problemas que não dispensa, entretanto, o conhecimento prévio de cada fase da programação política subjacente.



Se mantivermos o foco na asserção de Cannabrava (1977), não teremos dificuldades em inferir que, do ponto de vista da estratégia de atuação geopolítica internacional do ocidente, ações que levem ao predomínio dos interesses, das necessidades e da maior capacidade de influência das nações ocidentais, são fundamentais para a guerra ideológica e para a reafirmação da liderança do Ocidente no mundo. Além disso, pretender redirecionar essas estratégias implicaria na aceitação de uma ideologia diversa daquela que ora se constata na elite americana, o que, convenhamos, não é muito provável.

Uma pergunta poderia ser, contudo, formulada nesse âmbito: se o Ocidente lidera, como sustenta Huntington (1997) o mundo, que razões teria, pelo menos sob a ótica da estratégia geopolítica, para adotar uma postura tão protecionista, retaliadora e mesmo belicosa?

A resposta é dada pelo próprio Huntington (1997, p.98) quando afirma que



A vitória do Ocidente na Guerra Fria produziu não o triunfo, mas a exaustão. O Ocidente está cada vez mais preocupado com seus problemas e necessidades internos, ao mesmo tempo em que enfrenta um lento crescimento econômico, o desemprego, enormes déficits públicos, uma ética de trabalho em declínio, baixas taxas de poupança e, em muitos países, inclusive nos Estados Unidos, desintegração social, drogas e criminalidade. O poder econômico está se deslocando rapidamente para a Ásia Oriental e o poder militar e a influência política estão começando a ir pelo mesmo caminho.



Tendo presente esses dados, a posição francamente belicosa do Ocidente em relação aos povos culturalmente diferentes pode ser considerada uma conseqüência lógica do seu próprio declínio e do simultâneo aumento de poder de outras civilizações.

Se remetermos essas considerações para a o âmbito hipotético da América Latina como sub-civilização (inferior) ou não-Ocidental (diferente), teremos duas alternativas possíveis: ou o Ocidente servir-se-á de nós como aliados subalternos (instância na qual acordos comerciais, relações políticas e culturais tenderão a ser fortemente desiguais) ou então irá nos combater com as armas e os meios ditados pelas circunstâncias. Assim, ou nos alinhamos ao Ocidente em posição basilarmente servil (a ALCA tende a evidenciar esse dado) ou nos colocamos como não-ocidentais, com todos os riscos inerentes.

Aliás, sobre isso, é extremamente eloqüente a afirmação do líder líbio Muammar al Khadafi (apud Sampaio, 2001, p.14), para quem



A nova ordem mundial significa que os judeus e os cristãos controlarão os muçulmanos se puderem e que eles, depois, irão dominar o Confucionismo e outras religiões da Índia, da China e do Japão. Atualmente, o que os cristãos e os judeus estão dizendo é: nós estávamos decididos a esmagar o comunismo e, agora o Ocidente tem que esmagar o Islamismo e o Confucionismo. Nós esperamos ver, agora, uma confrontação entre a China, que encabeça o campo confucionista e os Estados Unidos, que encabeçam o campo dos cruzados cristãos. Não temos nenhuma justificativa para não termos preconceito contra os cruzados. Estamos do lado do Confucionismo e, ao nos aliarmos com ele, lutamos ao seu lado numa única frente internacional, para eliminarmos nosso adversário mútuo. De modo que nós, como muçulmanos, apoiaremos a China, na sua luta contra nosso inimigo comum. Fazemos votos pela vitória da China.



Temos, pois, assim, um quadro bastante claro do significado prático, em termos de relações internacionais, da tese de Huntington e um alerta cristalino para a América Latina quanto às suas relações futuras com o Ocidente e, em especial, com os Estados Unidos.

Se somarmos a isso o arquétipo estratégico-político preconizado por George Bush e os “Falcões da Casa Branca”, reeleitos em 2004, não é difícil fazer algumas ilações substancialmente periculosas para o futuro e mesmo à soberania latino americanos.

O próprio Huntington (1997, p. 288) é de uma clareza vítrea quando analisa o tenso relacionamento dos EUA com a China. Suas afirmações podem, sem corrermos o risco de promover uma inferência equivocada, ser trasladadas também para um possível choque entre o Ocidente e a América Latina, quando salientam que



A China não está disposta a aceitar a liderança ou a hegemonia americana no mundo e os Estados Unidos não estão dispostos a aceitar a liderança ou hegemonia chinesa na Ásia. Durante mais de 200 anos os Estados Unidos tentaram impedir o surgimento de uma potência com predomínio absoluto na Europa. Durante quase 200 anos, também, a começar por sua política de “portas abertas” em relação à China, os Estados Unidos tentaram fazer o mesmo na Ásia Oriental. Para atingir esses objetivos, os Estados Unidos travaram duas guerras mundiais e uma guerra fria, respectivamente contra a Alemanha Imperial, a Alemanha Nazista, o Japão Imperial, a União Soviética e a China Comunista. Esse interesse americano persiste... a ascensão da China como potência regional dominante na Ásia Oriental, caso prossiga, põe em risco esse interesse americano fundamental. A causa subjacente do conflito entre os Estados Unidos e a China está na sua diferença básica quanto a como deve ficar a futura balança de poder na Ásia Oriental.



As possíveis reverberações políticas, econômicas, diplomáticas e até bélicas que esse tipo de conjuntura produzirá são de tal magnitude e risco que, ignorando-as, corremos o risco de sermos surpreendidos por um futuro catastrófico, ainda que passível de ser visualizado já na atualidade.

Eventualmente, alguém poderia aventar, com bom senso aliás, que Huntington não é, em última instância, detentor da verdade e que suas análises podem estar simplesmente erradas, assim como suas previsões. Isso, evidentemente, é possível. Quando se aborda, porém, um autor e uma obra dessa natureza com descrédito ou ceticismo irresponsável, corre-se o risco de não se perceber aquilo que poderia ser definido como a “maldição programada” ou, como explica Santos (1993, p.153)



Uma análise de alto risco funciona quando suas previsões se convertem em profecias que se autocumprem. Nisso consiste sua periculosidade. Uma profecia que se autocumpre é aquela que, ao ser anunciada, aumenta consideravelmente a probabilidade de que venha a acontecer de fato. Se um soldado manifesta a opinião de que ele e seus companheiros vão perder o próximo combate, ele já está de antemão derrotado. Se outros o acompanham na previsão, o combate será efetivamente perdido. Pois bem: uma análise política de alto risco tenta tornar realidade aquilo que não estava fatalmente na lógica natural das coisas.



O mesmo autor complementa seu raciocínio, salientando que, no caso do choque de civilizações preconizado por Huntington



Não é necessário que sobrevenha um confronto de civilizações, sobretudo quando estas são definidas de maneira oportunisticamente interessada. (...) Ajudando a fazer cumprir uma previsão de altíssimo risco, esses analistas transformam-se em instrumentos da mais recente ousadia do brilhante Huntington, para transformar a América Latina numa ‘civilização’ realmente à deriva do resto da humanidade.



Ainda nessa esfera, alguém poderia ressaltar, com razão, que apenas um livro não é capaz de influenciar de tal forma as relações entre os povos. De fato, isso aparentemente não seria possível. É preciso que se diga, porém, que não se trata de um livro qualquer, mas sim de uma das mais instigantes obras geopolíticas já publicadas. Além disso, seu autor é um homem que, como afirma Sampaio (2001, p. 09) “sabe o que faz”.



E é lido pela elite econômica, militar, intelectual norte-americana, européia, japonesa, enfim, mundial. Talvez só a nossa elite teime em desconhecê-lo, mas, de resto, ela pouco lê mesmo, como o indicam as pesquisas (SAMPAIO, 2001, p. 09).



Fica claro, diante desses dados, que ignorar a obra de Huntington, suas análises e, principalmente, suas temíveis previsões que, com probabilidade significativa, podem se autocumprir, é negligenciar um perigo que ultrapassa em muito as esferas acadêmicas da qual Huntington é oriundo, chegando, na verdade, até nossos lares, empregos e, quiçá, às nossas perspectivas de futuro.



9 CONCLUSÃO



Conforme procuramos evidenciar neste estudo, a categorização da América Latina promovida por Samuel P. Huntington é antes de natureza ideológica do que técnica, dado que, no seio de sua própria argumentação, verificam-se contradições que inviabilizam a lógica de particionamento civilizacional efetuada pelo pensador.

Isto posto, se Huntington, a despeito do grande conhecimento que possui sobre o Brasil e a América Latina em geral, insiste numa tal posição, deve-se depreender que o faz com alguma intenção. Tal propósito mesmo não explicitamente declarado, é deduzível a partir do exame criterioso dos liames de sua obra.

Em outras palavras, por trás dos dados, das informações e das argüições repassadas de um racionalismo acadêmico evidentes, Huntington pode ser considerado, em termos primários, como um cientista pragmático. Além disso, é um homem de convicções políticas não impulsionadas pelo idealismo utópico e irreal que viceja em parte da direita americana.

Mais precisamente, o realpolitiker emerge por sob os meandros do texto de Huntington, demonstrando que, para além das considerações científicas e racionais que promove, o autor acredita naquilo que praticamente todos os americanos acreditam: na suposta legitimidade de sua liderança no mundo Ocidental e, em que pese a ascensão de outros Estados-núcleos na atualidade, no mundo.

Assim, o complexo e extenso trabalho que promove é, numa simplificação grosseira porém necessária, o corpus teórico e doutrinário que busca legitimar as ações e iniciativas ocidentais, capitaneadas pelos EUA, no mundo pós-Guerra Fria. Huntington, conscientemente, concede aos George Bush e aos demais linha-dura norte-americanos, bem como aos seus aliados, as bases teórico-racionais e ideológicas que fomentarão o comportamento coletivo dos países do Ocidente nos anos vindouros.

Criam-se, dessa maneira, as condições ideais para dois objetivos básicos de Huntington: o primeiro, de natureza política e ideológica, que é referendar as estratégias geopolíticas ocidentais com a roupagem teórica racionalista e dogmática de que essas carecem; o segundo, no plano pessoal e acadêmico, é obtido quando o primeiro objetivo é cumprido, isto é, as teses de Huntington e, mais especificamente, suas previsões se cumprem, ou melhor, se autocumprem, para a evidente satisfação e vaidade do ensaísta acadêmico e daqueles que subscrevem suas idéias.

Em sua cruzada contra as demais civilizações, o Ocidente precisa arregimentar forças e definir, mesmo que com critérios que não excluem as diferenças e as desigualdades internas às civilizações, quem são seus aliados culturais. Para tanto, em um exercício de gregariedade civilizacional, reunir-se-á aos semelhantes e combaterá os diferentes. Isso equivale dizer que, para a América Latina, as alternativas são extremamente restritas e altamente preocupantes, já pelo seu caráter de subordinação (hipótese 1), já pelo seu caráter de diferenciação (hipótese 2) em relação ao Ocidente.

Perigosa para os latino-americanos tanto do ponto de vista político, quanto social e político, tal ideologia repassada de um suposto crivo científico, é ainda mais temível se levarmos em conta que são poucos os membros de nossa elite política e econômica que se dão ao trabalho de entender o novo mapeamento geopolítico do mundo, considerando-o, de resto, algo tão distante de nossa realidade como se em Marte estivéssemos.

Evidentemente, não se trata aqui de incorrermos em um alarmismo desnecessário, nem de buscarmos prever fatos que, em síntese, são derivados da interação de fenômenos tão complexos quanto virtualmente diáfanos, como soem ser os eventos da política internacional. Trata-se, isso sim, de procurar chamar a atenção para aspectos que, aparentemente de ocorrência isolada, formam, na verdade, um grande bloco de ações cuja origem encontra-se ligada à política externa do Ocidente e dos Estados Unidos em particular.

Homens como Huntington, se bem observados à luz da História, são, via de regra, os “visionários pragmáticos” (perdoe-se a contradição semântica da expressão) que não são capazes, de fato, de prever o futuro, mas sabem como moldá-lo através de suas idéias, criando teorias e disseminando crenças.

De outro modo e apenas porque os fatos recentes parecem dar-lhe razão, isso não implica que o futuro não possa ser moldado de forma diversa daquela que Huntington espera. Em caso contrário, teremos uma profecia autocumprida, justamente no mesmo mundo em que, décadas depois de combater a ideologia perniciosa do nazi-fascismo, corre o risco de envolver-se em conflitos generalizados nos quais, ao invés de raças, propaga-se a suposta superioridade de civilizações.



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