Tinha consciência de que guardar as feições, o rosto das pessoas, me era difícil. Depois de 2, 3, 5 anos de vista, nem pensar em reconhecer ninguém. Hoje não me atrapalho mais, entro direto no assunto, peço logo que me diga o nome. Se não satisfeito, fico “babatando”, caçando na memória de quem é aquela cara, trabalha onde, quando nos vimos pela última vez etc.
Apuro o ouvido e digo:
– Ah, é o... – e gaguejo.
– Honório!
Se digo errado e a criatura se propõe finalmente a declarar o nome, a partir de então a conversa desfia plácida. Graças a Deus.
Há aspectos do nosso íntimo que relutamos em aceitar. Muito menos nos dispomos a revelá-los. Quem já se imaginou na pele de um adolescente apelidado de “feio” pelos seus colegas, mesmo que não o seja totalmente, apenas tenha orelhas de abano, nariz adunco (que para nós, brasileiros, não tem nada de bonito), uma cara cheia de espinhas? Ser feio é natural, não é excepcionalidade nenhuma. Mesmo que fosse. É materialidade, vem de fora, da natureza. Mas existe algo que seja apenas corpo, matéria, ou espírito? É possível acreditar-se que haja ação, sinal, movimento oriundo apenas da alma, especialmente se nasce da vontade, da emoção ou do pensamento.
Recentemente li uma reportagem na revista “Veja”, edição de 15.12.2004, sobre “pesquisas que desvendam os mecanismos usados pelo cérebro para identificar rostos”. Pequena mas esclarecedora. A mim me consolou porque há gradações, os que são muito afetados e os que apenas possuem pequena deficiência. Penso que me enquadro no último caso.
Mas nunca confessei minha dificuldade em reconhecer as pessoas. Exceto aquelas de minhas relações mais íntimas: pais, filhos, irmãos, sobrinhos, tios, cunhados, primos, compadres, vizinhos, etc. Quando o reconhecimento se torna demorado, peço à pessoa que fale. A voz humana, meus ouvidos gravam bem. O riso, os gestos... Minha mulher sabe perfeitamente, não adianta tentar esconder. Algumas vezes se impacienta comigo por isto e, então, lhe digo:
– “Você é minha secretária, ajude-me”.
No meu caso, o fenômeno se estende a marcas de carro – só conheço o meu próprio, e olhe lá, muitas vezes já me surpreendi metendo a chave em automóvel alheio – e a artistas de cinema, tevê. Daí uma certa dificuldade em entender filmes e novelas, só superada por alguns mecanismos para driblá-la, os quais só a necessidade é capaz de criar. Dizem os cientistas que os que sofrem de prosopagnose têm uma deficiência numa parte do cérebro identificada como responsável pelo reconhecimento de rostos. O nome cientifico é prosopagnosia. Mas se trata de algo que pode ser amenizado. Segundo a referida revista, “a inglesa Jane Goodal, portadora de tal disfunção, é talvez a maior especialista viva no estudo de chimpanzés e em suas pesquisas na floresta da Tanzânia, ela aprendeu a diferenciar um macaco de outro, no entanto é incapaz de distinguir rostos humanos”.
As pesquisas avançam, pode ser que dentro em breve o mal seja curável. É uma esperança, não para mim, mas para os que estão começando hoje, pois se calcula que não são poucos os que padecem de prosopagnosia, embora não se tenha estatística disponível a respeito.
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*Francisco Miguel de Moura é escritor brasileiro, mora em Teresina.