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Artigos-->OS SONETOS DE GLAUCO -- 05/02/2005 - 10:38 (Jayro Luna) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


Jayro Luna

Resumo:



A trilogia de livros de sonetos, editados pela Ciência do Acidente, configura-se como uma das mais originais contribuições poéticas para esse período de transição entre milênios no âmbito da criatividade poética. A adoção da forma do soneto associada à mais perspicaz ironia e à sátira temperada com doses de escatologia e erotismo transformam-na, para alguns, numa espécie de obra do “boca do inferno” redivivo ou de um lendário Bocage pornográfico do século XX.

Glauco já ensaiava a técnica sonetista desde os tempos do Jornal Dobrabil e dos seus primeiros livros marginais, mas é nesta recente trilogia que o poeta apresenta um domínio do verso medido dos mais exemplares. Neste artigo destacaremos alguns aspectos formais, alguns aspectos temáticos e, por fim, apresentaremos um juízo de valor, sem dúvida, tendencioso.



1. Considerações acerca do soneto glauquiano:



A trilogia de Glauco Mattoso é composta pelos livros Centopéia: Sonetos Nojentos & Quejandos; Paulicéia Ilhada: Sonetos Tópicos e Geléia de Rococó: Sonetos Barrocos. Neste último temos um apêndice composto de três partes: 1) Dez Considerações (ou desconsiderações) acerca do soneto; 2)Decálogo do decassílabo e 3) Nomenclatura quantitativa.

Na primeira e segunda parte deste apêndice, o autor demonstra um bom conhecimento sobre a técnica da metrificação do soneto em decassílabo, utilizando inclusive estas partes para explicar-nos determinadas soluções adotadas pelo poeta no processo de composição. Por exemplo, na nota 10 da primeira parte o poeta escreve: “Considerar como irrestrito o emprego do emjambement e de pontuações internas, que em nada interferirão no comportamento das tônicas ou na escansão. Destarte, nada impede que o verso comece com minúscula, que a frase termine no meio do verso, e que a frase seguinte, iniciada por maiúscula nesse ponto intermediário, também continue até o meio do próximo verso.”

A versificação de Glauco Mattoso possui algumas peculiaridades que julgo serem motivadas pelo ritmo urbano e contemporâneo que caracteriza nosso modus vivendi. O enjambement é um dos elementos que pode acentuar uma ligeireza de leitura, acelerando o compasso da leitura num ritmo mais próximo da música popular ligeira (rock, pop, etc...) do que de um Wagner que influenciava os versos de Baudelaire.



“Agora que estou cego, só me ocupo

curtindo som em meio a muita bronha

sonhando ser o roadie de algum grupo.



Prefiro banda punk, que me ponha

debaixo do coturno, enquanto chupo

na sola seus escarros de maconha...”

(“Soneto Rockeiro”, Centopéia, 2.59)



Ou ainda, este exemplo:



“A ‘História de O’, porém, melhor define

escravas femininas como reses

treinadas a chicote. Esses franceses!

Não há no mundo quem os recrimine!”

(“Soneto Desvirtuado”, Paulicéia Ilhada, 2.161)



Outro aspecto determinante da composição sonetística glauquiana é a pontuação do último verso. Aquele verso que para os parnasianos tinha o peso de ser a “chave de ouro”, de fechar o poema com uma frase lapidar e definitiva no conceito proposto pelo poema. Tal preceito já se fazia notar mesmo em épocas anteriores, como no Arcadismo – Cláudio Manuel da Costa, exímio sonetista; Tomás Antônio Gonzaga, que quase não fez sonetos e Alvarenga Peixoto não escreveram um último verso de soneto que tivesse um ponto final internamente. Em geral só se utilizava a vírgula como sinal de pontuação interna desse verso final, algumas vezes o ponto e vírgula e raramente outros sinais como a interrogação, a exclamação e os dois pontos. Aliás, era mais comum nenhum sinal de pontuação aparecer internamente no verso final. Se quisermos comparar com Bocage, a quem o poeta paulista se identifica na sátira, num levantamento preliminar que fiz, a regra continua válida – não se usa ponto final internamente no último verso.

No caso do barroco Gregório de Matos, nas Obras Completas segundo o códice de James Amado, não encontrei tal tipo de pontuação. Idem em Camões, em que inclusive no soneto “Vencido está de amor”, que é dividido em duas colunas – uma de seis sílabas a outra de quatro – no final da primeira coluna não aparece pontuação alguma, como que para não ferir a regra. Em Bilac, embora não tenha feito um levantamento na obra completa, também não encontrei o ponto final interno no último verso, tendo encontrado sim, a utilização das reticências em alguns poucos casos.

Colocar um ponto final internamente no último verso é um procedimento até que raro nos dois primeiros livros da trilogia de Glauco Mattoso, mas bem comum no Geléia de Rococó:



“ e mijo, quanto aos bebes. Deu empate” (“Soneto Comestível”)

“o pé. Depois, cunete e felação” (“Soneto Seletivo”)

“ao Glauco, que é seu fã. Bença, Patrono!” (“Soneto a Laurindo Rabelo”)

“Marmanjo, chora. Pau no cu do cara!” (“Soneto Chupeta”)

“o gênio do ocular na cor. Loucura!” (“Soneto a Salvador Dali”)

“‘É a bota do Pezão. Só tô engraxando...” (“Soneto Triangular”)

“Sem mais. Dou fé. Reserva-se os direitos.” (“Soneto Burocrático”)

“Um grito. Um corpo. Um tiro. Uma facada.” (“Soneto Travesti”)

“degradante degrau. Pise! Me puna!” (“Soneto Baixo”)





Por outro lado, um dos recursos relativamente mais comuns dos sonetos do barroco: a gradação ou a sua consorte, a enumeração no último verso quase não ocorre em Glauco Mattoso. Versos com gradações ou enumerações do tipo “Em apa, epa, ipa, opa, upa” (Gregório de Matos, “Neste é mais rico o que mais rapa”) ou “Cobepá, Aricobé, Cobé, Pai” (Gregório de Matos, “Há coisa como ver um Paiaiá”), ou ainda, “Do sol, da nau, da flor, da planta, a queda.” (Gregório de Matos, “Esse farol do céu, fímbria luzida”) quase não ocorrem em Glauco Mattoso.

E se a enumeração e a gradação não aparecem no verso final em Glauco Mattoso, aparecem com certa constância no desenvolvimento das outras partes do soneto. Bem característico disso é o “Soneto Trambiqueiro”, Geléia de Rococó, todo constituído dessa forma, sendo inclusive, um dos poucos sonetos que possui a enumeração no último verso:



Bandido, celerado, meliante,

pirata, bucaneiro, bandoleiro,

corsário, flibusteiro, pistoleiro,

falsário, plagiário, ator, farsante.



Mentor, capanga, cúmplice, mandante,

ladrão, sequaz, comparsa, quadrilheiro,

facínora, assaltante, tesoureiro,

banqueiro, vigarista e tutti quanti.



Prefeito, magistrado, malfeitor.

Jagunço, deputado, edil, suplente.

Um estelionatário, um senador.



O vice, o candidato, o pretendente.

O correligionário, o estuprador.

O Papa, o ditador, o presidente.



Assim, temos a sensação de que o ritmo da poesia de Glauco Mattoso possui características que o aproximam de aspectos conquistados pelas inovações de pontuação de movimentos posteriores aos dos grandes sonetistas com que sua poesia é comparada. Movimentos como o Modernismo e as Vanguardas Poéticas do século XX fizeram por destruir toda forma rígida, e o poeta conhecedor desta destruição e que pretendesse reconstruí-la acabaria inconsciente ou conscientemente utilizando-se de certas licenças poéticas e remendos modernos e pós-modernos que o poeta anterior raramente se permitiria. Suponho que esteja aí, em termos formais, um dos méritos de Glauco Mattoso, o de ser um poeta que “sonetiza” como quem saudoso dum passado mais ingênuo, passa a utilizar as formas deste passado para preenche-las com o material do presente. Em tal operação, quase alquímica, o poeta procede como quem enchesse sifos de coca-cola em ânforas, espécie de escanção kitsch. Nessa operação sobraria ou taça ou líquido, uma vez que a medida antiga é diferente do copo moderno. Assim também, em termos de medida, temos dificuldade em imaginar a medida do templo de Salomão, que o texto bíblico nos fala em côvados, e na operação de transformação para metros, sempre sobra ou falta centímetros se quisermos números inteiros, uma vez que o côvado equivaleria a aproximadamente 66 cm. Glauco Mattoso vai compondo os seus sonetos, derramando sobre a sucessão de quatorze versos uma matéria complexa formada, entre outras coisas, por contracultura, rock’n’roll, homossexualidade, urbanidade, violência urbana, marginalidade, etc. Ao final do líquido contemporâneo, como nos sifos dos convivas, ou nas medidas do templo, temos a falta ou a sobra. Assim, explica-se o emjambement, recurso que permite ao poeta a adequação da matéria em ritmo moderno e ligeiro à forma continente do soneto. Assim, explica-se a gradação e enumeração no desenvolvimento do soneto - pelo mesmo motivo de que se vale do enjambement -, assim também, explica-se a pontuação do último verso. Só que neste último caso, a sobra ou a falta na medida exige um remendo, este feito de matéria recortada, colada, que permite a transformação alquímica final deste líquido em conteúdo da taça antiga. Dito de outro modo, é como se o líquido só fosse suficiente para ir até o ponto final interno do último verso, o que vem depois é um acréscimo, um “chorinho” que o balconista do Mcdonald’s coloca para encher a taça antiga do exótico cliente.

Não é este um defeito, ou uma maluquice qualquer é, sim, uma virtude, que qualifica os sonetos de Glauco como a adaptação da forma antiga à matéria contemporânea, de uma poesia que desliza por entre personagens cinematográficos, ritmos urbanos e eletrônicos e, por fim, entre clones literários duma genética pós-apocalíptica.



2. O barroco homossexual escatológico:



Evidentemente não é só devido à forma do soneto que Glauco Mattoso pode ser comparado numa visão intertextual com Gregório de Matos e Bocage, mas sim devido à temática satírica e erótica. A trilogia de Glauco Mattoso apresenta um vocabulário de termos chulos dos mais completos e atualizados. A ironia com que utiliza muitos desses termos colocam-no como um dos grandes “sarristas” da literatura brasileira. Alguns de seus poemas parecem verdadeiras anedotas pornográficas vestidas com a pele do soneto:



“Vencidos por egípcios, os mais fracos

são feitos prisioneiros e zoados.

Em grupos, uns aos outros amarrados,

levados vão em fila, qual macacos.



Hirsutos, que parecem ter casacos,

Inspiram brincadeiras aos soldados.

Nas barbas pentelhudas são currados

e as bocas ficam sendo outros buracos.



São estes os hititas. Norman Mailer

descreve a cena em seu ‘Noites Antigas’,

que o Glauco vê num sonho, como um trailer:



Estava em meio às hostes inimigas.

Mas sou domado e viro um... Rottweiler,

que chupa os egípcios, e suas vigas.”

(“Soneto Faraônico”, Paulicéia Ilhada,2.209)



No soneto acima já podemos destacar uma das características mais significativas da poesia erótico-satírica de Glauco Mattoso: a homossexualidade. Ao contrário de Bocage e Gregório de Matos, em que o poeta identificava-se com a figura do conquistador, do macho viril, em Glauco temos o poeta na condição de pervertido sexual que tem sonhos e desejos homossexuais. Sua principal tara, a de lamber pés, principalmente masculinos – aliás, já trabalhada pelo autor em um livro de prosa sarcástica e irônica: Manual do Pedólatra Amador – confere ao poeta uma posição peculiar em relação aos grandes debochadores da poesia, o Boca do Inferno e Bocage. Nestes últimos podemos ler versos como os que se seguem:



“Mas quando ferrugenta enxada idosa

Sepulcro me cavar em ermo outeiro

Lavre-me este epitáfio mão piedosa:



‘Aqui dorme Bocage, o putanheiro;

Passou vida folgada, e milagrosa;

Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro.’”

(Bocage)



“Não lamentes, oh Nise, o teu estado;

Puta tem sido muita gente boa;

Putíssimas fidalgas tem Lisboa,

Milhões de vezes putas têm reinado:

(...)

Todas no mundo dão a sua greta:

Não fiques pois, oh Nise, duvidosa

Que isto de virgo e honra é tudo peta.”

(Bocage)



“Brás pastor inda donzelo,

querendo descabaçar-se

viu Betica a recrear-se

vinda ao prado de amarelo:

e tendo duro o pinguelo,

foi lhe metendo já nu,

fossando como Tatu:

gritou Brites, inda bem,

que tudo sofre, quem tem

rachadura junto ao cu.”

(Gregório de Matos)



Tanto Gregório quanto Bocage definem-se como homens de muitas aventuras amorosas, de fazer companhias às putas, de conquistar mulheres casadas, de terem uma vida heterossexual muito intensa. Por sua vez, Glauco Mattoso, poeta destes tempos pós-modernos e neobarrocos, tem uma posição inversa. Glauco Mattoso surge como um poeta homossexual. Homossexualidade que se torna elemento de um jogo em que os papéis sexuais se subvertem, em que todos os personagens apresentam-se como pervertidos sexuais, defensores, via de regra, de uma falsa moral:



“A superlotação requinta a cena,

e sempre cabe mais um fidaputa:

eu mesmo, o cego vil que se condena.



Lá dentro vai piorar minha conduta,

pois quero acumular paixão com pena,

lambendo o pau que come e o pé que chuta.”

(“Soneto Carcerário”, Centopéia, 2.63)



“Polícia abusa às custas do bandido;

Bandido usa requinte no refém;

Político abandona o seu partido.



Só o cego não se vinga de ninguém:

Suporta o desaforo pelo ouvido

E, pela boca, o pênis e o desdém.”

(“Soneto Inescrupuloso”, Paulicéia Ilhada, 2.129)



“Estou desesperada, mas, no fundo,

aquilo já esperava acontecer.

Marido como o meu tinha que ser,

um dia, lambe-cu de vagabundo.



Perdeu, e me tornou mulher do mundo

na mão dum parasita do poder,

que, agora, minha boca vai foder,

e a dele encher com algo mais imundo.”

(“Soneto Cônjuge”, Geléia de Rococó, 2.249)



Existe nestes sonetos glauquianos um elemento decisivo que vai transformar esta poesia em mais do que apenas o canto de uma homossexualidade urbanóide contra a opressão de uma sociedade que reprime. Tal elemento, como se fosse um catalisador, é o escatológico, que transforma o discurso da homossexualidade num discurso de insatisfação e ironia.

Num soneto do livro Centopéia, “Soneto Escatológico”, o poeta partindo de uma citação de Bocage (“Cagando estava a dama mais formosa...”), vai se definir como um poeta escatológico: “E então fui rei da merda com que agrido”. Esta escatologia já era marca de Glauco desde os seus primeiros trabalhos, do tempo da marginália poética, do Jornal Dobrabil: “eu cago / cago e penso / estar cagando” (“Cagando a 7000”, Jornal Dobrabil, folha 5, 1977).

O estudo etimológico da palavra escatologia revela-nos alguma surpresa. Se utilizamos “escatologia” como sendo formada pelas palavras gregas skatos [excremento] + logos [tratado], então temos o uso de expressões em anedotas, pilhérias e textos que giram em torno de ofensas morais em que é utilizado o tema das fezes. Gregório de Matos e Bocage têm poemas que bem exploram este aspecto. Porém, escatologia também pode ser o resultado de eskhatos [derradeiro] + logos [tratado], disciplina ou doutrina sobre o destino final do homem e do universo. Parece-nos claro que o poeta está utilizando a escatologia no sentido de coprologia, de empregar temas de natureza obscena e chula. Mas esta clareza fica um pouco enevoada se pensarmos na intensidade com que o poeta utiliza o tema. É como se Glauco Mattoso tivesse uma visão de mundo escatológica, uma visão de mundo em que o futuro da humanidade é definido por um presente em que o homem se vê atordoado. E a causa disso é um modo de vida que o impede de realizar seus desejos mais simples em decorrência de uma moral que exige a subserviência e a ocultação dos desejos sexuais e a obediência. Um mundo em que os papéis sociais exigem tarefas que, se bem realizadas, levam ao prêmio que se concretiza no consumo de algum produto. Esta visão da sociedade, próxima da crítica marcusiana, leva o poeta a propor sua homossexualidade como fiel da balança, como a caput corvi que vai revelar tudo como um conjunto de aparências. Neste panorama o futuro do homem e de sua civilização estaria fadado ao fracasso.



“Será que a frustração da tartaruga,

de nunca ser pisada pelo herói,

não é o grande dilema dessa fuga?



Comigo é a mesma coisa: o que me dói

é quando nenhum pé me subjuga

e a vã filosofia se destrói.”

(“Soneto Filosófico”, Centopéia, 2.22)



“O Cosmo não me inspira qualquer pasmo,

qualquer perplexidade ou maravilha.

Até pelo contrário, é uma armadilha:

Tão rara a luz, e as trevas pleonasmo.



Já sei que vão chamar de iconoclasmo,

Mas minha voz de cego só estribilha

Que nada resplandece nem rebrilha.

Não há no céu motivo pra entusiasmo.”

(“Soneto Celeste”, Geléia de Rococó, 2.304)



Assim a escatologia glauquiana é muito mais fruto de um pensamento em que o mundo é o inferno e, como tal, não resta aos humanos o pensar num paraíso redentor, não há salvação. A diferir Glauco ainda de Bocage e Gregório nisto, pois estes, paralelamente às suas críticas e sátiras mordazes, aos seus eventuais versos escatológicos, compunham poemas do mais elevado sentimento religioso, fosse devido às circunstâncias jurídicas em que se encontravam, fosse por verdadeiro sentimento religioso, a verdade é que não se furtaram ao sentimento de sua época, em que a religiosidade cristã e católica era uma das colunas principais de sustentação daquela sociedade:



“Prazeres, sócios meus e meus tiranos!

Esta alma, que sedenta em si não coube,

No abismo vos sumiu dos desenganos.



Deus, ó Deus...! Quando a morte à luz me roube,

Ganhe um momento o que perderam anos,

Saiba morrer o que viver não soube.”

(Bocage)



“Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,

Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,

Perder na vossa ovelha a vossa glória.”

(Gregório de Matos)



Glauco Mattoso é o poeta do pós-tudo, do pós-marxismo ateu, do pós-modernismo, da pós-revolução, da pós-ditadura, da pós-contracultura. É o poeta do fim, o poeta do apocalipse sem redenção. Não há em sua poesia o espaço e o tempo da culpa ou do arrependimento, o poeta crê apenas e tão somente nos seus desejos. Glauco é o poeta dos tempos dionisíacos redimensionados numa atmosfera de Laranja Mecânica.



“Na terra de ancestral filosofia

raríssimas poetas são safadas;

Milhares de mulheres, hoje me dia.”

(“Soneto a Safo”, Geléia de Rococó, 2.269)



“ ‘Laranja’ tem o close que mais beira

o belo absoluto em sua escola,

e a cena me persegue na cegueira.



É quando Alex lambe aquela sola...

Já fui o próprio ator. Minha carreira

É o prêmio com que um cego se consola....”

(“Soneto Cinematográfico”, Centopéia, 2.47)



4. A Metalinguagem e o meter a língua:



Terminando este breve artigo, tenho a considerar que a poesia de Glauco Mattoso nesta trilogia, se apresenta como a poesia do “boca do inferno” ou do Bocage que nosso tempo pode criar. A homossexualidade associada ao escatológico, tudo apimentado com um tom de descrença, é servida numa atmosfera da mais asfixiante boite contracultural. Poeta do submundo urbano de São Paulo, onde, diversamente da noite carioca, nem há a visão noturna do mar para poder permitir um ponto de fuga com perspectiva mais profunda como escape ao sufocamento – daí talvez a bossa-nova ser mais carioca e o rock brasileiro mais paulista. Em São Paulo o horizonte é obstruído pelas paredes de arranha-céus que formam não só as laterais das avenidas e viadutos, mas parece que sempre se termina nalgum beco escuro, ou nalgum subúrbio sem horizontes: “Alguns passos além do Marco Zero / a catedral da Sé, quase acabada, / resume em neogótico a salada / humana e desumana onde me gero.” (“Soneto Paulopolitano”, Paulicéia Ilhada, 2.110). Na junção das suas características formais de composição de soneto (o enjambement, a pontuação) com a temática satírica e irônica, temos o poeta que fala de sua própria poesia, de sua capacidade inventiva na composição de sonetos. Não são poucos os poemas da trilogia que apresentam este viés e, na maioria deles, o poeta sempre está a medir sua arte com a de Gregório, Bocage e Camões: “Já li Lope de Vega e li Gregório / pois ambos sonetaram do soneto, / seara na qual minha foice meto, / tentando fazer algo meritório.” (“Soneto Sonetado”, Geléia de Rococó, 2.233). Este sonetar do soneto é o aspecto metalingüístico mais característico desta trilogia. Glauco Mattoso sabe que a arte do soneto é um tema dos mais polêmicos nesta nossa época de fim da arte, pelo menos daquela visão ingênua da arte de que os artistas compartilhariam com os “heróis” e “bem-aventurados” um espaço meritório das virtudes humanas. A forma rígida, tão avessa aos padrões da poesia contemporânea, é utilizada por Glauco como elemento que traz em si mesmo a contradição da própria poesia contemporânea, o de ser inútil e de ser ao mesmo tempo social e oniricamente necessária. Desse modo os sonetos de Glauco, que podem ser avaliados como representativos daquilo que Irlemar Chiampi define como Neobarroco latino-americano, e o próprio subtítulo de Geléia de Rococó confirma isto: “Sonetos Barrocos”; tais poemas são também a mais hiperbólica visão do sarcasmo que alguns decadentistas tiveram da sociedade: “Nós ficaremos, como os menestréis da rua, / Uns infames reais, mendigos por incúria, / Agoureiros da Treva, adivinhos da Lua, / Desferindo ao luar cantigas de penúria?” (“Vencidos”, Emiliano Perneta). Como observou Wilson Bueno:



“Mais que o corrosivo humor que os atravessa, em torno do obsedante tema da podolatria homoerótica (fetiche por pés), o que fica destes sonetos é, sobretudo, o seu ‘tom’ – não conseguindo em nenhum momento, apesar da paródia e do chiste, disfarçar uma incontornável amargura. E isso é o que, no mínimo, confere dignidade a esta poesia, cuja musa é o Sofrimento, ainda que, pelo viés do gozo, auto-afligido.”

(BUENO, Wilson. In: O Estado de S.Paulo)



Este sofrimento indisfarçável e, no entanto, disfarçado sobre o humor, a crítica social, a pornografia, a escatologia, parece que tem como único contraponto o próprio fazer poético. E no compor que o poeta se realiza, sendo suas fantasias sexuais apenas o combustível que a tarefa compositiva se utilizará para dar forma ao tema, para circunscrever o poético nas contradições da realidade intangível: “Debato-me, portanto, na fobia / durante os pesadelos, lado a lado / co’a lúcida libido na filia.” (“Soneto Dionisíaco”, Paulicéia Ilhada, 2.199). Leiamos em Glauco o avesso do avesso paulistano, como cantou Caetano, e já que vivemos a época dos anti-heróis, classe de personagens fruto de nossa descrença nos velhos deuses, leiamos em Glauco não sonetos, mas anti-sonetos. Pois digo que um anti-soneto é o soneto que é fruto dum descrédito que o poeta tem pelos padrões formais, utlizando-os apenas como jogo e não como cânone. Assim como houve na mitologia um Glauco, filho de Sísifo, que foi comido pelos próprios jumentos, temos hic et nunc, tupiniquim, um Glauco que está sendo comido pelos próprios poemas – anti-sonetos-, transformando-se em matéria poética sob um ignis innaturalis.





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