Antonio Donizeti da Cruz (Universidade Estadual do Oeste do Paraná)
A lírica de Lila Ripoll destaca-se no panorama da Literatura Brasileira pela disciplina artística, clareza verbal e comunicabilidade lírica, na qual a poeta alia inteligência criativa ao estro poético. Assim, a construção poética da autora revela a sintetização e a marca do corte preciso em relação à linguagem. Ripoll desenvolve em sua obra poética o mito e o tema do duplo, representado pelo mito de Narciso, pelas imagens dos desdobramentos do eu, dos espelhos, retratos, reflexos, sombras, entre outros.
Lila Ripoll nasceu em Quaraí, RS, no ano de 1905 e faleceu em 1967, em Porto Alegre, RS. A obra poética ripolleana publicada entre 1938 a 1961 compõe-se de sete livros, de que foi realizada somente uma edição: De mãos postas, Céu vazio, Por quê?, Novos poemas, Primeiro de Maio, Poemas e canções e Coração descoberto.. Em 1954, Ripoll presidiu a seção regional da União Brasileira dos Escritores e organizou em Porto Alegre o 4º Congresso Brasileiro de Escritores. No ano seguinte a Poeta recebe o Prêmio Pablo Neruda da Paz. Tendo em vista o seu engajamento, Ripoll elaborou ao longo de sua trajetória uma lírica intimista que evoluiu para uma concepção dilacerada da existência. Cumpre destacar que a lírica de Lila Ripoll se aproxima em muito com a poesia de Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Helena Kolody, entre outras vozes da lírica brasileira Segundo Alice Campos Moreira, “Os efeitos líricos que emanam da musicalidade e da simplicidade temática de seus versos, de comunicação imediata, permitem aproximá-la dos mais altos representantes da poesia brasileira” (1998: 11). Ripoll faleceu em 1967, e deixou uma obra quase desconhecida. Tendo em vista o seu engajamento, a poeta elaborou ao longo de sua trajetória uma lírica intimista que evoluiu para uma concepção dilacerada da existência.
O tema do duplo pode expressar-se mediante os recursos imagéticos: espelho, alteridade, retrato, sombra, reflexos, mito de Narciso, personagem gêmeo ou sósia, entre outros. A princípio, este tema se refere à existência do outro, que duplica a existência do sujeito lírico. O tema do eu e do outro é regido por uma lógica que lhe confere unidade: relacionado ao tema do duplo, o desdobramento do eu reflete uma inquietude metafísica e, ao mesmo tempo, aponta para uma profunda reflexão sobre a vida.
O tema do duplo tem sido recorrente na literatura ocidental, aparecendo sob as mais diversas formas. Na história da literatura uma das primeiras manifestações do duplo aparece no mito de Anfitrião quando o deus Júpiter toma a aparência física de Anfitrião, enquanto este estava no campo de batalha, adentra no palácio e seduz Alcmena, esposa de Anfitrião. Na obra Anfitrião, de Plauto, tem-se a versão conservada do mito. Já nas versões posteriores, tais como a de Molière, Juan de Timoneda, Camões, entre outros, caracteriza-se o aspecto cômico.
Para Jorge Luis Borges, a definição de duplo é comum a muitos povos. Ele é “sugerido ou estimulado pelos espelhos, as águas e os irmãos gêmeos”. Na Alemanha denominaram-no doppelgänger; na Escócia fetch, “porque vem buscar (fetch) os homens para levá-los à morte”. Assim, encontrar-se consigo mesmo é, conseqüentemente, funesto. No tema do duplo, a noção de encontro consigo mesmo provém da Alemanha e Escócia. Na acepção judaica, “a aparição do duplo não era presságio de morte próxima, mas a certeza de se ter alcançado o estado profético. [...] Na poesia de Yeats, o duplo é nosso anverso, nosso contrário, o que nos complementa, o que não somos nem seremos” (Borges, 1981: 153-154).
Nas palavras de Otto Rank, em O duplo, a sombra, inseparável do homem, tornou-se a primeira objetivação da alma humana, provavelmente bem antes de o homem ter percebido sua imagem refletida na água. Foi através da sombra e do reflexo que o homem viu pela primeira vez a sua forma. Posteriormente, representou a sua alma e esta crença primitiva se tornou a origem da crença na alma, sustentada pelos povos da cultura antiga. E salienta, ainda, que o duplo é a própria personalidade (sombra, reflexo), assegurando sobrevivência futura (Rank, 1939: 96).
Para Sigmund Freud, o tema do duplo foi abordado de forma completa por Otto Rank, que penetrou nas ligações que o duplo tem com os reflexos em espelhos, com as sombras, e com os espíritos guardiães, com a crença na alma e com o medo da morte. Originalmente, o duplo era uma segurança contra a destruição do ego, uma enérgica negação do poder da morte, como salienta Rank. Dessa forma, Freud assinala que a manifestação da figura do duplo e a qualidade de estranheza advêm do fato de o duplo ser “uma criação que data de um estádio mental primitivo, há muito superado - incidentalmente, um estádio em que o ‘duplo’ tinha um aspecto mais amistoso. O ‘duplo’ converteu-se num objeto de terror, tal como, após o colapso da religião, os deuses se transformaram em demônios” (Freud, 1976 [Vol. XVII-1917-1919]: 295. Grifos do autor).
Por sua vez, Jacques Lacan, em O seminário, assinala que, no sujeito humano, o desejo é realizado no outro e pelo outro. O desejo do outro se realiza mediante a linguagem, pois é no outro e pelo outro que o desejo é nomeado. É também através da palavra, essa roda de moinhos por onde incessantemente o desejo humano se mediatiza (Lacan, 1994: 206-207). Lacan observa que, no homem, o imaginário é reduzido, especializado, centrado na imagem especular, que opera ao mesmo tempo os impasses e a função da relação imaginária. A imagem do eu resume toda a relação imaginária do homem. É no outro que o sujeito reencontra o seu eu-ideal (Lacan, 1994: 206-207).
Na acepção de Gerárd Genette, em Figuras, o tema do Narciso constitui o que em nossos dias Gaston Bachelard chamará de “complexo de cultura”, em que se fundem dois motivos ambíguos: o da fuga e o do reflexo. Essa imagem de si mesmo sobre a qual se inclina Narciso, não lhe traz, em sua semelhança, suficiente segurança, pois em si mesmo, o reflexo é um duplo, ou seja, ao mesmo tempo um outro e um mesmo. O eu se confirma, mas sob as espécies do outro: a imagem especular é um perfeito símbolo de alienação. Prisioneiro de sua imagem, Narciso fixa-se numa imobilidade inquieta, justamente por ele saber estar à mercê do mínimo desvio que, ao suprimir seu reflexo, do qual já não é senão uma pálida dependência, viria a destruí-lo. Ao menos o espelho é imóvel. A fonte de Narciso é menos segura, sempre pronta a retirar novamente, por um imprevisível capricho, a imagem que parece oferecer (Genette, 1972: 24-25).
O mito de Narciso tem uma relevância muito grande na nossa época. Ele alude à difícil tarefa de relacionamento com o outro, pois este é um elemento fundamental na constituição do sujeito. Para Raïssa Cavalcanti, o mito de Narciso narra o surgimento da consciência, o seu desenvolvimento e a ampliação no processo do conhecimento. Ele expressa o “arquétipo” do nascimento da consciência a partir do artifício de mitificação do herói Narciso, no qual se encontram “o despertar da consciência, o nascimento do ego, da identidade e a ampliação da consciência e do conhecimento na busca da individuação” (Cavalcanti, 1992: 12).
As articulações da linguagem no intuito de apresentar o tema do duplo e o mito de Narciso se concretizam na poesia de Lila Ripoll. O recurso dos desdobramentos do eu e do mito de Narciso para alicerçar um poema e, ao mesmo tempo, dar consistência a um elemento imaginário totalmente inusitado, são evidenciados na lírica de Ripoll. O tema do desdobramento de eu aparece sob as mais diversas formas na poesia ripolleana. Assim, cada verso reflete a imagem do eu poético na amplidão do espelho, no reflexo, na sombra, entre outras formas de duplicação que o universo poético possibilita.
Em “Retrato”, os versos registram a sutileza de um fazer poético alicerçado na força da linguagem e no tema especular, em que o eu-lírico declara: “Chego junto do espelho. Olho meu rosto./ Retrato de uma moça sem beleza./ Dois grandes olhos tristes de agosto,/ olhando para tudo com tristeza.// Pequeno rosto oval. Lábios fechados/ Para não revelar o meu segredo.../ Os cabelos mostrando, sem cuidados,/ Uns fios brancos que chegaram cedo./ [...]/ Meu retrato. Eis aí: Bem igualzinho./ O espelho é meu amigo. Nunca mente./ No meu quarto, ele é o móvel mais velhinho.// E sabe desde quando estou descrente!.../ (1998: 40)
Note-se, nos versos, a capacidade criadora da poeta em dar sentido à sua construção lírica. Tal como Narciso busca a fonte, o sujeito lírico mira o próprio rosto no cristal do espelho. O espelho, aferidor de verdades, tem a capacidade de demarcar fronteiras entre o simbólico e o imaginário. No texto, o sujeito lírico trata o espelho como “amigo” pelo fato de ele não mentir e “saber” o sentimento de tristeza ou descrença que toma conta desse Eu que se desdobra. O sujeito lírico feminino contempla o próprio rosto: “retrato de uma moça sem beleza”. Nos versos, o retrato surge duplicado.
A imagem do espelho simboliza o espaço mágico, intermediário entre o plano humano e divino. Simboliza ainda a “reciprocidade das consciências”, pois, segundo Chevalier e Gheerbrant, a única função do espelho não é a de refletir uma imagem. Tornando-se a alma um espelho perfeito, ela participa da imagem e, por meio dessa participação, passa por uma transformação. Há, portanto, “uma configuração entre o sujeito contemplado e o espelho que o contempla. A alma termina por participar da própria beleza à qual ela se abre” (Chevalier & Gheerbrant, 1993: 396).
No poema “Serão triste”, os versos remetem para o tema especular e à condição de solidão do sujeito lírico. O mito primordial da palavra narrada do “Era uma vez...” fica evidente nas palavras do eu lírico, que se deixa levar pela imaginação: “OITO horas. A sala bem vazia./ A lareira está acesa. Mas que frio/ aqui dentro. Que frio! Dia por dia,/ esta chuva a descer, igual a um rio.// Coloco minha manta sobre os joelhos./ Os pés sobre a lareira. Olho. Penso./ Outra sala no fundo dos espelhos./ Uma mulher sentada. Tem um lenço/ apertado entre as mãos. Chorou, talvez...// Ninguém. Tudo parado Tudo morto./ Imagina uma história: “Era uma vez...”// O vulto lá no espelho está absorto!/[...]/ O cristal que reflete a sua imagem,/ não mostra os pensamentos que ela tem./ O espelho é um lago triste, sem miragem,/ dentro da sala fria e sem ninguém./ As brasas não aquecem quase nada./ Há um ambiente mortal de desconforto./ Nenhum ruído. Nem passos na calçada...// Tudo imóvel. Parado! Tudo morto!...” (1998: 33). Nos versos, a imagem do espelho é comparada a um “lago triste”, cristal que reflete a imagem, mas não é capaz de desvendar os pensamentos do sujeito lírico, que vivencia um estado de solidão e isolamento. Tudo em volta do eu lírico gira em torno da ausência, do silêncio e solidão.
Nos versos sobressai a imagem do “cristal” que é símbolo de transcendência, de sabedoria, adivinhação e dos poderes misteriosos conferidos ao homem. Sua transparência é exemplo de união dos contrários, pois o cristal, ainda que material, permite que se veja através dele, como se não fosse material. O cristal representa o plano intermediário entre o visível e o invisível (Chevalier & Gheerbrant, 1993: 303).
Na tradição imaginária da humanidade, o espelho simboliza aquilo que reflete a verdade, a qual pode ser oriunda de uma ordem superior. É também símbolo da manifestação que reflete a inteligência criativa. A palavra espelho também pode significar a pureza perfeita da alma, do espírito sem nódoa, a reflexão em si da consciência (Chevalier & Gheerbrant, 1993: 395). Para Gilbert Durand, o espelho simboliza a translucidez cega. O espelho, além de duplicar a imagem, também simboliza o duplicado tenebroso da consciência, que igualmente se liga à água: espelho originário, pois a água foi o primeiro espelho dormente e sombrio (Durand, 1997: 209).
Para Bachelard, a água tem por objetivo “naturalizar a nossa imagem”. Um poeta que inicia pelo “espelho” precisa chegar à “água da fonte” se quiser transmitir “uma experiência completa”. Narciso diante das águas tem a revelação de sua identidade e de sua dualidade. Somente junto à fonte secreta, no mais recôndito dos bosques, ele sente que é “naturalmente duplo; estende os braços, mergulha as mãos na direção de sua própria imagem, fala à sua própria voz [...]” (1989: 25). Já o narcisismo, no dizer do filósofo, nem sempre é neurotizante. Tem também um papel positivo na obra estética, especialmente na obra literária. “A sublimação nem sempre é a negação de um desejo; nem sempre ela se apresenta como uma sublimação contra os instintos. Pode ser uma sublimação por um ideal” (Bachelard, 1989: 25).
Já no poema “Retratos”, os versos remetem à solidão e às perdas, tal como nas passagens: “Minha casa tem paredes/ de silêncio./ Silêncio miraculoso/ com mil faces invisíveis.// Os retratos nas molduras/ com rostos mortos e vivos./ A família repartida,/ Solidão de ambos os lados./ Exílio de céu e terra./ Caminhos todos truncados./[...]// Pelas salas silenciosas,/ Vou passando silenciosa/ Sou um retrato entre os retratos/ Antecipando o futuro./[...]” (1998: 258). Nos versos, o tema do duplo e a condição existencial do sujeito lírico marcam o limite de uma consciência do sentido de finitude frente ao tempo que flui e pelo sentido amargo das perdas. O silêncio com suas “mil faces invisíveis” e a casa e a sala com suas paredes de silêncio deixam o eu lírico em mesmo estado. Há o reconhecimento por parte do sujeito lírico da condição de finitude.
No texto “Retorno”, o eu-lírico (re)memora o passado e centra a enunciação no memorialismo fixado na infância e na indagação frente as solicitudes da vida e também nas perdas: “Diante do velho poço,/ fiquei olhando as datas/ que só eu conhecia.// As uvas maduras tinham sabor de infância/ nos meus lábios/ e as árvores me estendiam os braços enrugados.// Com elas conversei quase em surdina.// Ai que sonhos, os meus sonhos!// Onde terá perdido a face daquele tempo?” (1998: 228).
A indagação do eu poético é uma constante na lírica ripolleana. A linguagem metafórica, o mito de Narciso redivivo no ato de olhar para o “velho poço”, o diálogo do sujeito lírico com as árvores e a visão onírica, são elementos de integração do eu com a natureza. Assim, através do fazer poético e da força das palavras, Ripoll realiza o poema – ser de palavras – enquanto experiência humana concreta de busca de liberdade e revelação.
No texto, o sujeito poético leva avante o jogo especular. Fonte da vida, o segredo e o conhecimento, a imagem do poço pode representar o homem que atingiu o conhecimento. Nos versos do poema, o sujeito poético constrói uma rede de imagens que apontam para a duplicidade. O signo olhar destaca-se no poema. É um olhar que vê mais longe, capaz de captar além da materialidade das coisas, ou seja, consegue desvendar as coisas mais essenciais, tal como “as uvas maduras” com “sabor de infância” e “as árvores amigas” que aparecem nas reminiscências do sujeito da enunciação.
No imaginário, o signo “poço” simboliza a fonte da vida, o segredo e o conhecimento. No texto, ocorre um desdobramento do eu, quando o sujeito lírico “Diante do velho poço” olha as datas que só ele conhece. Nos versos, a imagem do espelho reflete o outro que é ele mesmo.
No poema “Saudade”, o eu lírico declara: “Conheci todas as saudades/ desde que a terra abriram/ para cobrir-te de silêncio.// Não sei se levaste teu rosto verdadeiro,/ nem como ficaste modelado,/ na postura que impuseram a teu corpo,/ onde moravam tantos crescimentos.// Eu quis olhar teu rosto,/ tocar as tuas mãos,/ guardar tua expressão definitiva./ mas tudo foi em vão,/ e minhas lágrimas não chegaram a tocar-te./ [...]/ Foi vão o meu clamor.// E agora – onde buscar/ a face que não vi,/ o rosto verdadeiro,/ que não foi o que deixaste/ nos retratos?/ (1998: 243)
Nos versos, o tema da morte fica evidente. Há, por extensão, a atitude de Narciso buscando a imagem e a impossibilidade do gesto, bem como a indagação do eu lírico em relação à procura do “rosto verdadeiro”. O tema do desdobramento, a princípio, se refere à existência do outro, que duplica a existência do sujeito lírico. O tema do eu e o outro são regidos por uma coerência que lhes confere unidade, relacionado ao tema do duplo, no qual reflete uma inquietude metafísica, que aponta para uma profunda reflexão sobre a vida e a literatura. Assim, nota-se, nos versos, que as imagens especulares, com suas associações, direcionam para a reflexão contínua e permanente em direção à morte.
Em “Estrelas e areia”, o sujeito lírico afirma sua condição de enfermo, circunscrito aos limites do seu leito, fazendo “um curso de silêncio e solidão”. Momento de reflexão e tempo de ponderar: “No meu quarto é tempo de pensar./ Tempo de alongar o olhar/ para além das paredes. De entender/ as mensagens secretas. De ler/ os muros apagados.// Nunca imaginei tão grande/ o peso das palavras. Dos pensamentos/ escondidos. Das confissões não enunciadas./ Agora é tempo de avaliar./[...]// É tempo de pensamento e solidão./ Tempo de procurar em mim./ Tempo de me ver inteira num espelho” (1998: 272). As imagens do tempo aparecem sob as mais diversas formas. Há o tempo de pensar, olhar, ver, entender, avaliar e ponderar, mas acima de tudo, o tempo de procura do eu lírico feminino se ver “inteira no espelho”.
As articulações da linguagem no sentido de apresentar o tema do desdobramento (mito de Narciso, espelho, sombra, reflexo) se concretizam na lírica de Ripoll. Nos versos do poema “Manchas” (I parte), os temas do desdobramento do eu, do mito de Narciso, da ausência e da solidão ficam evidentes nas passagens, em que o eu-lírico declara: “Foi sempre tristeza. Tristeza remota, vinda quem sabe/ de onde. De que desesperados apelos. De que exilado/ sonho./ De que grandeza mutilada.// E foi também solidão. Secreta solidão./[...]// Na rua alegre e colorida, foi uma mancha/ de inútil dissonância./ Ninguém sentiu sua tragédia./ A ausência de seu riso./ A forma quase definitiva de seu rosto.// Um dia, inclinei-me sobre ela/ Como quem se procura num espelho./[...]” (1998: 223)
Entre presenças e ausências, o sujeito lírico, em meio a mais “secreta solidão”, parece lutar contra a passagem temporal, entre o ser e não-ser, presença e ausência, acentuada pela duplicidade. Tal como Narciso debruçado sobre a fonte, o eu-lírico inclina-se sobre “a mancha de inútil dissonância”. A tristeza, a melancolia e a solidão vivenciadas pelo eu-lírico contrastam com o colorido e a agitação festiva da rua.
Ainda em “Manchas” (II parte), a negação do instante se dá pela aceitação de um outro momento, o da poesia: “Não é meu este instante. É teu, Poesia./ É tua esta irreal melancolia/ que resvala da noite, das estrelas,/ das janelas abertas para vê-las.// Não é meu o momento que germina/ de uma antiga tristeza.// Nem a sombra que me divide em duas/ pela rua/ Nem os braços cruzados,/ onde deitou-se a solidão.” (1998: 224). O eu-lírico feminino, “desdobrado”, complementa que mesmo que poesia multiplique o próprio rosto, ele a reconhece devido à melancolia que o atinge.
O texto “Sombra” revela a dimensão de um eu que busca o outro. As lembranças e a condição dilacerada da vida ficam registradas nos versos do poema: “Estás tão longe de mim,/ tão distante dos meus olhos,/ que hoje nem minha memória/ tem lembranças de teu rosto./ [...]/ A noite invadiu meu sonho./ Confundiram-se os caminhos/ e as distâncias aumentaram/ Teu rosto ficou na sombra./ Minha memória perdida.// Quem pisa, então, flores secas?/ Quem risca nomes na areia?/ Que face assoma de noite/ no velho espelho do poço?// Ai! do teu rosto de sombra!/ Ai! do meu sonho perdido!”(1998: 121).
Nos versos sobressai a imagem do tempo que não deixa vestígios na memória. A imagem de Narciso mira na noite “o velho espelho do poço” Já as imagens da noite, do sonho, dos caminhos e da sombra “constelam-se” em torno dos regimes diurno e noturno. Ou seja, as antíteses presença e ausência, o ser e o não-ser, se manifestam numa oposição dos contrários. Nos versos do poema, a sombra e o eu se conjugam numa relação recíproca. É comum associar a sombra à constelação de símbolos noturnos, regidos pela noite. Segundo Durand, o regime noturno do imaginário presume as representações simbólicas do mergulho na interioridade, da intimidade em relação a todas as coisas, próprios da estrutura mística. O arquétipo da noite, ponto de dissolução da vida e também de origem, remete ao regime noturno. Para Chevalier e Gheerbrant, a sombra é o que se opõe à luz. Por outro lado, é a própria imagem das coisas fugidias, irreais e mutantes.
No poema “Rosto”, o eu lírico declara: “Das três dores de meu peito,/ Só uma se mostra. Mas/ Sem grito.// Conciliados se encontram/ rosto e dor.// É uma pedra lisa e fria/ o silêncio de meu rosto.// Nem no retrato de ontem – / – corroído pelo tempo – / nem no de agora – tão triste! – / o grito transpõe a face./ Costurados de silêncio/ dor e rosto se confundem[...]” (Ripoll, 1998: 219).
No texto, a atitude “artística narcisista”, o “desdobrar-se sobre si mesmo” do fazer poético, que encontra no leimotiv do espelho, leva a uma aproximação com o mito de Narciso, apontando para um fazer poético enquanto construção autoconsciente que implica uma revelação do ser. Por esta forma, a linguagem se apresenta enquanto arte da estranheza e do assombro, num mundo estranho, no qual o homem, dividido, se vê frente às situações de incertezas e questionamentos e, sempre em busca de si mesmo.
O tema do duplo, na poesia de Lila Ripoll, constitui um recurso literário por meio do qual a poeta desenvolve a análise reflexiva de uma de suas grandes inquietações: o problema da identidade. Por outro lado, aparecem elementos relacionados à duplicidade, às indagações, tais como: a coincidência dos opostos, o oxímoro, o problema do tempo e a interrogação da própria essência da linguagem.
Na obra Lila Ripoll: obra completa, as imagens do desdobramento do eu aparecem de maneira nítida. Há, também, um entrelaçamento de temáticas: a infância, o tempo, a solidão, a memória, a efemeridade e permanência, o humor, a ironia, entre outras. O fazer poético também fica notório no realce ao amor às palavras, à metapoesia, ao diálogo com o leitor, à comunicação literária. Dessa forma, as articulações da linguagem no sentido de apresentar o tema do desdobramento (mito de Narciso, espelho, sombra, reflexo) se concretizam na lírica ripolleana.
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