Ninguém sabia porque Miguel Guarani, nascido no “Diogo”, onde moravam seus pais e seus irmãos, fora morar, depois do casamento, numa casinha que construiu no lugar “Curral Novo”, perto do povoado Jenipapeiro. Casinha de taipa e telhas, de uma única porta no único quarto. O resto era um alpendre que servia de sala, copa, e, talvez de mais outras funções. A cozinha, um alpendre menor, dava para o cercado ao lado. Situada entre catingas-de-porco, velames, cipós, mofumbos, urtigas, croás, macambiras, xiquexiques e “favelas”, a maioria dessa flora era de arbustos muito espinhentos. Ali a família morou por cerca de 5 anos e, a partir daí, Mestre Miguel torna-se uma espécie de andarilho, gostava muito de mudar-se. Ou a isto se via obrigado.
Quando casou Josefa Maria de Sousa (Zefa de Chico Ana), de família pobre mas tradicional na região, era órfã de pai e mãe e possuidora daquele pedaço de terreno estéril à beira dum riacho também seco na seca, e somente no inverno, quando chovia muito, via água. Era bonito para os olhos dos meninos, pois feito de pedras de altitudes diferentes por onde as águas desciam em cachoeiras. O leitor “não se vexe não” como diz o baiano. Água era só por um ou dois dias no ano. Os imbus, que dão nas primeiras chuvas, normalmente em janeiro, eram uma festa para o estômago da garotada. Depois sobrevinha a terrível estação das secas, permanecendo verdes apenas os juazeiros da beira do rio e alguns paus-ferros para comida das cabras. Além do terreno onde Miguel levantou a casa acima, havia uma roça no baixão, também pequena, de produção limitada de milho, feijão, abóbora e melancia. Acabado o inverno, acabava a fartura. Quem plantava na “Serra”, teria a mandioca para fazer farinha e tapioca, para comer e vender para comprar roupas e chinelos, sapatos e redes, e outros pertences como pente, sabão, querosene para a lamparina, e acho que só.
Quem não plantava mandioca na “Serra”, tinha a vazante no rio, plantio de alho e cebola, um trabalho muito duro, penoso. O resultado, nalguns anos, dava mais ou menos para comprar os alimentos que faltavam; noutros, perdia-se tudo com a enxurrada extemporânea do rio Riachão de setembro/outubro. Perdia-se “tudo o que Marta fiou” e ficava-se no “ora, vejam!”.
Para suprir as necessidades da seca, Miguel trabalhava nas “desmanchas” (farinhadas) como forneiro. Era sua especialidade torrar a massa de mandioca no forno para transformar-se em farinha. Era o trabalho mais leve, que merece uma certa “ciência”, cousas que bem se adaptavam ao perfil de trabalhador que tinha. Passava nesse trabalho dois/três meses, quando não pisava em casa, não obstante os reclamos de D. Zefa de Chico Ana, ou, para outros, Zefa de Miguel. Depois, era mesmo apelar para o trabalho de escola, na casa dos fazendeiros.
Conforme depoimentos da própria Josefa Maria de Sousa, que fazia nas suas conversas uma separação entre os seus parentes (irmãos, cunhados, primos) e os de Miguel de Sinhô, seu povo não consentia no casamento dela – a mais nova da família – se Miguel não resolvesse a morar perto deles.
E foi o que aconteceu.
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*Francisco Miguel de Moura é escritor brasileiro e está escrevendo a biografia de Miguel Guarani, seu pai.