Quando pequeno, eu imaginava o apocalipse como uma batalha. A luta final se parecia exatamente com um dos episódios finais do Jaspion - pessoas más de um lado, pessoas boas do outro - com uma diferença: havia todos os bilhões de soldados infernais, com seus gritos de fúria, suas ameaças, fogos de artíficio, asas deformadas (me demorava um pouco descrevendo essa parte); e, do outro lado, apenas um rapaz magro, vestido de branco (com um cajado, talvez). O homem estalava os dedos e toda a horda Inferior era dizimada. Jesus Cristo nos salvaria, enfim.
Com exemplos desse tipo eu me explicava o salmo 23 sem nunca tê-lo lido; e mesmo do filho de Deus não compreendia muita coisa, mesmo entendendo. O que era o moço na cruz? Alguém que tinha dito uma porção de coisas que as pessoas achavam importantes, e tinha sofrido deveras. Até a cruz - e havia uma cruz no quarto, com sua morte eternizada, o sangue pintado na madeira, nos lembrando do acontecido. Jesus era a pessoa para a qual eu deveria rezar antes de dormir - para o filho de Deus: com a ordem de deus me deito, com a ordem de Deus me levanto, Nossa Senhora me cubra com seu divino manto - havia os santos, havia a confusão da trindade e seria mentira se eu dissesse que algum dia me importei com isso. Só as crianças têm fé.
Jesus Cristo é o golpe literário mais crível da Bíblia. Os santos, Moisés, Salomão, Davi, Sansão, todos são personagens semelhante aos Power Rangers, ganhando seus poderes e fazendo o que Queriam que fizessem; Cristo é o xerife mui habilidoso que aparece no meio da série. Os outros são levados pela força inexorável do destino, Jesus aprendeu e fez por livre e espontânea vontade. Morreu por um monte de idiotas usando de seu livre-arbítrio. Mártires são assassinados; Jesus Cristo permitiu tal acontecimento, suicidou-se por um monte de idiotas. É uma coisa difícil de digerir em curto prazo. Foi humano dizendo que não era, ajudou dizendo que não se deve ajudar, ensinou sem dizer exatamente o que ensinava. O que ele fez? Tão somente contou que coisas deveriam ser feitas, aumentou o número destas - em uma analogia bastante aproximada: multiplicou os peixes de um rio que parecia vazio. O filho de José era alguém para seguir-se. Salvaria a nós todos.
Desde que me conheço por gente, no dia de Natal ou na semana da Páscoa a televisão nos apresentava filmes bíblicos. No último natal, eu - mais velho - percebi que minha família se concentrava no sofrimento, passava por cima das idéias assim como se joga fora a semente de uma azeitona. Ou então interpretavam tudo de uma maneira particular. Por exemplo, meu avô via na parábola do filho pródigo apenas como um aviso de que não se deve tratar de tal jeito os pais, de que deve-se esperar feito um cordeiro. Interpretação válida, você diz - mas o próprio contexto da cena indicava outra coisa. Jesus, em meio aos bêbados e das mulheres sem pudor (para usar termos que caberiam bem no Levítico) - explicou em cinco minutos o porque de estar ali, a razão de aceitar todos - o simples axioma que afirma que os perdidos é que precisam de companhia. Faziam como eu, então - com meu Jesus Cristo a la live action japonês.
Viam o sofrimento e este era o seu sofrimento. Observavam-no sem ser escutado e isso era toda a parte da sua vida em que não possuíram quem os ouvisse. Cabem tantas vidas em Jesus como cabem nas variáveis de fiéis, representadas pelos apóstolos. E os super-poderes eram um atrativo magnífico. Jesus Cristo é o golpe literário mais crível da Bíblia. E aqui começam as minhas especulações - nessas projeções de personalidade não se perde todo o conteúdo filosófico? Jesus sem ser Mandrake perde seu valor, suas palavras são despojadas do seu peso? Fora do contexto, as palavras dele são lixo?
Quando pequeno, eu aprendi que devia escrever "deus" com letra maiúscula. Na terceira série, quando ainda usava o lápis em todo o caderno, Deus era um nome em azul de esferográfica, sublinhado. Também não se devia dizer nome de doença ruim em casa, e, por raízes que se parecem muito com a desses conceitos, não discutem seu Messias. Jesus foi colocado em uma estante como algo a ser observado - exatamente como as tábuas de Moisés, que, no mesmo filme citado, Jesus dizia para que não fossem guardadas, para que estivessem em cada um. Se as palavras de Jesus, estando na Reader s Digest e não na Bíblia são lixo, então não há razão para Igreja. Se o filho de Deus for só isso, impávido como Tupã, devemos temer - e não há a palavra "medo" no Evangelho. Se ele, enfim, for filho de José, do lado direito do peito, sem a necessidade dos efeitos especiais, há um mundo de mudanças a serem feitas, de coisas a serem abandonadas, a serem revistas. Porque podemos estar como aquela personagem de Cem Anos de Solidão, que pensava rezar para um santo e na verdade o fazia para alguns quilos de ouro, como ela mesma exclamou.
E assim como acontece com as crianças, que falam alguma verdade e são destroçadas por que erraram na conjugação de um verbo, ou porque alguns dias antes derrubaram um vaso, e ninguém nesse mundo diz coisa verídica se errou na vida, pelo que parece - alguém me vem e diz que, ora, como não! Há a palavra "medo" na Bíblia, e eu deveria ler mais para poder dizer e...não é esse o objetivo. Se questionar é um erro, que permaneçam os camelôs para sempre, naquele templo do qual Jesus os expulsa. Se não é um erro, olhe-se no espelho. Levanta-te e anda.