Ouvimos falar, nos livros de História, do costume de alguns povos nativos dessa terra chamada Brasil (sim, existiram, não é lenda urbana) de devorar ritualmente seus mortos (assim como inimigos capturados). Numa peculiar articulação corpo-alma, esses povos viam no canibalismo uma forma ritual de socialização da virtude – as características mais honrosas do sacrificado seriam incorporadas a seus, digamos, degustadores. No dizer do alemão Hans Staden, que teve contato freqüente com esse fenômeno (felizmente para ele, não suficiente o bastante), os tupinambás, por exemplo, consideravam o estômago do inimigo como a sepultura ideal.
Corte para 500 anos depois. Saem de cena os nativos, entra em campo a civilização, a Modernidade, o século 21. A morte midiática do papa não teria sido um exemplo de canibalismo simbólico? O pontífice agonizante, cada um de seus nacos atirados via TV para multidões famélicas por algo de "fé" em frente à telinha? Cada ação do papado transformada numa commodity à escolha do freguês?
Ao invocar o sacrifício escatológico, derradeiro do Cristo como analogia para a agonia secular papal, a Igreja só acelerou esse processo de sacralização do mundano, invertendo a lógica do Deus que se faz homem e se sacrifica em prol de nossa salvação – a vitória da vida, dispensando o veículo da matéria. Uma afinidade eletiva tem então lugar.
Encruzilhada
A Igreja precisa de mortos ilustres que permaneçam bastante vivos – capazes de referendar, primariamente, sua primazia como instituição que procede à mediação com um sagrado cada vez mais distante e rarefeito, no contexto de uma Modernidade laicizante. Um herói refundador, João Paulo II, já "o Grande", opera um milagre ainda maior para uma instituição secular e secularizada.
Os fiéis, por seu turno, têm oportunidade de purgar seu materialismo e se "conectar" – sem muito esforço, digamos ao toque de um botão – com algo que remotamente invoque o sagrado. Estes, pois, sem saírem do conforto de suas poltronas e de suas práticas por demais consolidadas, receberão os eflúvios do sagrado, serão admoestados da forma mais suave possível. Mais importante – se sentirão, enfim, partícipes de uma empreitada global num mundo cada vez mais atomístico. Os cortejos defronte ao altar projetado por Bernini permitem deixar para trás os problemas mundanos – sem que as benesses da Modernidade desapareçam por completo.
A mídia global deu tratos à bola e ergueu a ponte sobre essa encruzilhada da fé mundana. O relevante a este respeito não se reduz às sempre redivivas teses conspiratórias, a mídia como manipuladora global, suas cordas atravessando os meridianos e paralelos e disciplinando as opiniões públicas, qual marionetes.
Desperdício
A mídia certamente buscou seus objetivos, mas estes não foram exclusivos, nem se traduziram como submissão. TVs, rádios, jornais, blogs não foram entrepostos simbólicos das posições da Santa Sé. Os dois (ou mais) "lados da moeda" foram bastante visíveis, nesse tocante, justiça com a mídia, que buscou com veemência problematizar o acontecimento. Talvez – aí mora o perigo – não o suficiente. Seria querer demais esperar que a mídia operasse em contraposição aos fiéis (audiência primordial, nesse tipo de evento) e à própria Igreja, questionando o sentido conferido aos rituais levados a cabo. Inadvertidamente, a mídia global uniu as duas pontas da tesoura. Seu papel foi o de catalisador – permitiu as condições ideais para que os verdadeiros interessados realizassem seus desígnios. A commoditização do corpo morto não foi sua obra – ela apenas forneceu o espaço público para que tivesse lugar o encontro de "compradores e vendedores".
A morte, assim, deixa de ser mediação e se torna um instrumento para referendar o poder temporal. O corpo morto do papa se torna parte de um relicário globalizado, é congelado no tempo e no espaço. A salvação – o corpo que desaparece para dar lugar à alma – é colocada de lado em prol da irradiação da catarse mundana da morte para todo o seio da Igreja, os corpos dos fiéis se amoldando ao esquife papal. Um ritual de revalidação do mundano, uma vez rompido o elo com o transcendente em prol do concretismo da carne como invólucro da fé, é o que se segue.
A adoração ao corpo morto do papa não soaria estranha aos tupinambás do século 16. Eles só nos perguntariam (tivessem oportunidade) o porquê de se desperdiçar tanta virtude, depois do enterro.