A IMPORETÂNCIA DA LEITURA NA FORMAÇÃO DO SENSO CRÍTICO
Francisco Miguel de Moura
(Da Academia Piauiense de Letras)
Para começar, prefiro um momento de leitura literária, ou seja, a prática do tema que vamos desenvolver intelectualmente. Escolhi uma obra clássica, no caso o romance “Ana Karênina”, de León Tolstói (1828 – 1910), o ramancista-filósofo russo, que dedicou os últimos anos de sua vida a pregar uma espécie de nova religião (sem dogmas), “baseada na fraternidade e na renúncia a todas as formas de violência e exploração do homem.” Desse seu célebre romance retiro nosso primeiro momento de reflexão. Trata-se do comportamento de um dos principais personagens da história, contumaz ledor como os russos daquele tempo, o qual, ao longo de sua vida, vinha planejando escrever uma obra. Talvez possamos considera Liêvin, esse personagem, um paradigma do bom leitor. Essa, outra razão para a escolha.
Apresentações feitas, comecemos:
“Depois do jantar Liêvin sentou-se, como de costume, na sua poltrona, a ler um livro; mas enquanto lia continuava a pensar no objetivo da sua viagem. Via agora com especial clareza a importância do seu empreendimento, e no espírito iam-se-lhe formando frases inteiras que exprimiam perfeitamente a essência do seu pensamento. ‘Tenho de tomar nota disto’, pensava. ‘Servirá de breve introdução, essa introdução que sempre me parecera desnecessária.’ Levantou-se e aproximou-se da secretária. Laska, estendida a seus pés, levantou-se também, estirando-se, como que a perguntar-lhe onde devia ir. Mas não teve tempo de tomar nota daquelas idéias, pois chegavam os capatazes que vinham receber ordens e Liêvin teve de os atender.
Depois de dar as suas ordens para o trabalho do dia seguinte e de receber todos os mujiques que o queriam consultar, Liêvin meteu-se no escritório disposto a trabalhar. Laska aninhou-se debaixo da mesa e Agáfia Mikháilovna sentou-se no lugar do costume a fazer meia.
Depois de escrever algum tempo, Liêvin viu Kitty de repente diante de si, com extraordinária clareza, bem como a cena em que ela o repelira e a da última vez que a vira. Levantou-se e principiou a andar de um lado para o outro.” (pág.322-323)
É hora, então, de refletirmos intelectualmente. O tema comporta duas abordagens separadas – a importância da leitura e a formação do senso crítico – que se imbricam na vida, porque sem senso crítico não se vive, ou se vive mal, tal como sem escola, o que vale dizer sem leitura e sem literatura. Mas tentarei resolver a questão sem dissociá-la de forma estanque. E começo por citar uma frase de origem burguesa e já popularizada:
– “Uma foto vale por mil palavras.”, cuja frase virou um mito, um dos monstruosos mitos da atualidade. Por falar em mitos da atualidade, a escritora Lia Luft, no seu artigo da revista “Veja” (20.4.2005) enumera uma série deles, entre os quais os “da boa mãe”, “do bom velhinho”, “da juventude como glória”, todos criados e/ou alimentados pela televisão. Nem todo velho é bom, nem toda mãe é modelo, nem todo jovem é feliz. Assim, ela, a tevê, que é feita de imagens, muito bem se encarregou de criar o seu mito soberano, “o da imagem” – que se pode traduzir, para melhor compreensão como sendo “o mito da figura em movimento.”
Vamos por etapas: Dizer palavra, hoje, quer dizer leitura, escrita, texto. Dizer foto significa comunicação rápida, melhor e mais moderna (outro mito – será que tudo moderno, contemporâneo, é bom, excelente? A civilização e a cultura são feitas pela acumulação tanto quanto pelas substituições que sejam necessárias e não apenas desejadas. Evidentemente que não vamos entrar nessa polêmica tola de “o que vale mais: o visual em palavras ou o visual da telinha?” Afinal de conta a civilização exclusiva da imagem (na pré-história, ou antes, na selvageria) terminou há milênios talvez, antes de Gutemberg, dos egípcios, dos chineses...
Embora a leitura possa ser aprendida e praticada no lar e noutros ambientes, e deverá ser, a escola é lugar de leitura, sem leitura nada é feito, todas as matérias tem porta de entrada na leitura, mesmo as artes visuais precisam da leitura. Não há como fugir. “Quem mal lê, mal ouve e mal vê” é também da sabedoria popular, devendo portanto ser mais divulgado pelos escritores, pelos autores de livros didáticos. A escola antiga fazia isto. Como é que vamos resolver um problema matemático sem leitura? Como é que vamos aprender anatomia, biologia, geografia, história? Só vendo imagens na televisão ou no cinema?
O escritor Osman Lins, que teve uma boa experiência de professor universitário e de estudioso da cultura, escreveu um livro-libelo denominado “Do ideal e da glória: problemas inculturais brasileiros”, cuja principal finalidade, com base em profunda e intensa pesquisa, é a crítica dos livros didáticos brasileiros do 1º e 2º graus, e registrou que as ilustrações empregadas neles “são de três tipos: fotografias, reproduções de obras de arte e desenhos. As fotografias, em geral, de uma grande banalidade e mal impressas. As reproduções, verdadeiramente lamentáveis, quase sempre borradas e, por vezes, sem informação sobre o original. Mas são os desenhos, feitos expressamente para os livros que adornam (?), que pedem comentário especial. Todas parecem advir dos mesmos princípios: estamos na era da imagem; o aluno, habituado à TV e às revistas em quadrinhos, resiste à página escrita, tendo dificuldade em captar mensagens verbais; a média da inteligência dos educandos é baixa, não estando muito longe da debilidade mental. Só isso explica o uso (ou melhor, o abuso) dos desenhos, isto é, as noções freqüentemente elementares que através deles se procura transmitir; e, outro aspecto importante, seu caráter: sempre cômicos, ou pretensamente cômicos.” Como se o senso crítico do mundo fosse apenas uma visão engraçada da vida. E os outros aspectos? Onde ficam o lírico, o dramático, o belo, o sublime? E o onírico?
Noutro capítulo, Osman Lins assevera: “Antes de perguntar se é possível viver ignorando a existência das obras literárias. Resposta óbia: sim. À qual devemos acrescentar: a preço do empobrecimento interior. Pois nem a lógica mais abstrusa pode concluir que a falta de literatura enriquece alguém. Que diríamos, então, do indivíduo que – portador de certo grau de instrução – volta as costas para a literatura do seu próprio país? Sua atitude assemelha-se à dos que desdenham seu patrimônio artístico: as esculturas, as pinturas, as obras arquitetônicas do passado, as cidades históricas. Com as seguintes agravantes: a literatura utiliza um instrumento de todos em todos os instantes, a linguagem, que se revigora através das obras literárias; os escritores, mesmo quando parecem transgredir a realidade (seria o caso, entre nós, de um José J. Veiga, ou de um Murilo Rubião), pensam-na, com intensidade e constância acima do comum, através de uma ótica que afinal é a do país a que pertencem (e não a de alguma estrela perdida nas esferas).”
Agora sou eu quem diz: Não acredito na cultura de quem não leu um romance, um livro de contos ou de poemas, em toda a sua vida. Pode ser o maior técnico, o melhor advogado, o excelente executivo e até um bom homem de estado, mas sua cultura ressente-se de uma certa deficiência crítica que a televisão, o rádio e o jornal são incapazes de supri-la. Deficiência interna, mas existe.
Por pertinência, não poderei deixar de referir, aqui, a um dos processos de ensino da língua e da leitura em vigor, na escola evidentemente, referidos por Ozildo Batista de Barros, como “um processo pedagógico marcado pelo mecanicismo, preocupado mais com a correspondência letras X sons”, que “se utiliza, enfim, de um material didático de fácil manipulação pelo professor, mas de pouquíssima ou nenhuma utilidade para os alunos”. Isto, na alfabetização. O vezo passa para cursos mais avançados como o fundamental e o secundário, onde a ação pedagógica continua sempre autoritária, “numa relação de cumplicidade entre professor e aluno, e instrumentalizada pelo livro didático, o que resulta na reprodução do sistema vigente”,comenta Ozildo Barros, por observação em diversos autores comentados nos trabalhos de encerramento de curso e de mestrado de diversas unidades de ensino superior. Em razão disto, o advogado, escritor e professor Ozildo Batista de Barros assinala, em monografia recente, ser “de fundamental importância o surgimento de trabalhos que reflitam sobre a leitura literária nas escolas” e evitar os textos mal escolhidos, sem levar em conta a situação social e geográfica de educandos e educadores, textos que são lidos como modelo e se transformam, ora em objeto de leitura oral, ora de imitação escrita e de fixação de sentidos; e nesta última função o aluno é induzido quase sempre ao exercício adivinhatório, sob alegações as mais diversas.
É bom que se diga e se entenda que não queremos condenar o material visual/virtual auxiliar (internet, tevê, filmes, que participam da instrução da criança e do adolescente de forma passiva) combinado com o material real levado da vida comum para o local de estudo. Nada disto. Ao contrário, acreditamos que não podemos nem é preciso livrar-nos da imagem, o que não se quer é o domínio absoluto dela, sua ditadura.
Vamos agora do lado da crítica para o positivo de nossa argumentação, apresentando um processo que começa pela alfabetização, método quase desconhecido entre nós, contido no livro “Como Multiplicar a Inteligência do seu Bebê”, de Glenn Doman e Janet Doman. Quem o lê pela primeira vez tomará por uma panacéia. E foi com certa descrença, na época em que minha filha era criança de 1 e meio a 2 anos, que recebemos o método apregoado, para nossas experiências. Mas, passados já 9/10 anos, hoje sabemos, resultou melhor do que eu e minha mulher esperávamos. Minha filha Mécia, sujeito da referida experiência, desde a conclusão do curso de alfabetização lê divinamente bem – e nem sei se esse adjetivo/adverbalizado está aqui bem posto, um lugar comum do qual peço me desculparem. É uma das experiências mais fascinantes que se está fazendo em diversas partes do mundo, inclusive com crianças excepcionais: a de ensinar leitura (não propriamente ensinar, mas expor textos à criança) desde a mais tenra idade. Não quer isto dizer que quando matriculamos nossa filha no maternal ela já sabia ler, não; nossa experiência foi tímida. Mas vimos que aprendeu com uma facilidade incrível, sendo hoje uma das melhores alunas do seu colégio e até tendo publicado um livro recentemente, sério, impresso em gráfica, com o título “Foclore Piauiense e Outras Histórias”. Antes já havia feito outras tentativas bem sucedidas de contar pequenas histórias, aproveitando os próprios exercícios de redação feitos na escola.
Sumariando, para respeitar o tempo que me cabe, o livro do mencionado do casal de educadores Glenn/Janet Doman assenta-se em alguns princípios, ao que se sabe, científicos: 1 - de que a criança, ao nascer, é um livro em branco com potencial para ser qualquer coisa que um ser humano tenha sido, seja ou possa vir a ser, e permanece assim até os seis anos; 2 – a genialidade está disponível a todos os bebês humanos, e a mãe tem capacidade de aumentar a inteligência de sua criança até onde sua vontade e habilidades permitirem; 3 – as crianças são gênios lingüísticos, e é mais fácil ensinar-lhes uma língua escrita que uma falada. Nalguma outra parte, ainda na exposição intelectual da obra, os autores acrescentam que “não é verdade que usamos somente um décimo do nosso cérebro; nós não vivemos o bastante para usar nem um milésimo do potencial de nosso cérebro”.
Caso haja algum exagero, e há – o do idealismo – nas afirmações acima como nesta de que “a inteligência é o resultado do raciocínio e não o raciocínio um produto da inteligência”, que o casal de educadores acrescentam, é preciso ver-se que elas remexem com os saberes assentados há séculos e em vigor entre os cientistas da educação.
É idealismo sim, mas é também novidade que convém, agora, descer à prática dessas teorias novas, para serem mais bem entendidas pelos que nos escutam. Eu e minha mulher começamos a fazer conforme a prática estabelecia no livro. Consistia, em resumo, em organizar pequenos cartões de cartolina com 10 x 60 cm, escrever sobres estes, com pincel atômico, nomes, números mas nada de letras isoladas (porque ninguém come, ninguém ama uma letra), em traços com 7 cm de altura por 1,5 cm de largura. Letras de forma bem bonitas, se possível de cores destacadas. Na primeira etapa: só palavras simples; na segunda – pares de palavras; na terceira – frases curtas; na quarta – sentenças; e na última – livros. Exemplos dos nomes: PARTES DO CORPO: mão, cabelo, perna, ombro... OBJETOS: cadeira, mesa, porta... E assim por diante. Na matemática, mostrar um quadro com cinco pontos e o ao lado ou antes o algarismo 5, procedendo assim com os outros e com operações mentais menos simples. Claro que essas fórmulas (ou outras diferenciadas) já têm sido incluídas nas práticas de alfabetização, mas não em casa (pela mãe), não com muita intensidade e constância, não com crianças que ainda não freqüentam a escola, não com excepcionais.
De todo o exposto, só queremos sugerir que novos métodos devem ser criados e testados para casa e para a escola. A criança quanto mais cedo possível deve ir para a escola. Aos 6/7 anos devem saber ler e escrever muito melhor do que acontece na atualidade. A regra seria uma bem maior intimidade com o texto e com a escrita, não para reproduzi-los em exercícios comandados pelos orientadores, mas servirem de descobertas e não serem desviados para outros fins sem interesse para o educando. Que escrevam como falam, quem saber falar saberá expressar-se também por escrito e essa expressão vai abrir caminho para novos mundos antes de chegarem à gramática normativa. No caso do Brasil, essa dificuldade que tantos apregoam como intransponível só o é porque muito autoritária, conservando regras antiquadas, heranças de quinhentos anos que recomendam usos não coerentes com a realidade do nosso quotidiano. Os educadores devem estimular a leitura não-obrigatória de textos da língua atual, dos autores atuais, de contextos da experiência vital, em crônicas, contos e histórias que tenham arte. O resultado da exposição de livros de tal natureza e o estímulo para que contem o que leram e critiquem o mundo representado, é transformar as crianças e os adolescentes em seres imaginativos e criadores éticos e estéticos para a vida inteira. Mais críticas e, portanto, mais preparadas para as escolhas e resoluções de problemas que o mundo lhes oferecerá. E se, através da imaginação, “encontramos as principais funções psicológicas superiores, como por exemplo o pensamento, a memória, a atenção e a percepção”, como apregoa a psicóloga Regina Célia Giora (pg. 88, do livro “Emoção na Criatividade Artística”), nada melhor do que poder sempre estimular a imaginação e por outrem ser estimulado a ela.
Mas, voltemos um pouco ao fio da meada desta palestra, agora com a palavra autorizada do mestre Paulo Freire:
“A necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita a distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética. Decência e boniteza de mãos dadas. (...) É por isso que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando. Educar é substantivamente formar.” E, como que em complemento, acrescenta ainda que “divinizar ou diabolizar a tecnologia ou a ciência é uma forma altamente negativa e perigosa de pensar errado. (...) Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática.”
Eu diria, para finalizar, se é que posso aditar o sábio Paulo Freire, que encaminhar o educando à reflexão crítica em todos os sentidos é dar-lhe a liberdade de escolha com responsabilidade. Com a leitura e a escrita – grandes caminhos a serem trilhados – devem continuar por toda a vida como meio de atualização dos conhecimentos, da crítica de si e do outro, mas sempre de uma forma que se torne agradável e jamais um fardo. A leitura deve ser um divertimento, uma brincadeira. “Parar de brincar na vida adulta significa renunciar ao prazer, e é penoso para o indivíduo renunciar àquilo que o engendro”, conferindo novamente Regina Célia Giora, (pg. 89).
Muito mais poderia ser dito sobre o assunto, embora sempre muito reste a dizer. Não creio é que eu seja competente para fazê-lo, porque não sou um profissional da educação, embora tenha sido professor. Por isto mesmo é que me tenho valido de escritores, mais que de educadores, neste momento. Porque é da leitura que sou profissional. Desta forma, desejo terminar com uma reflexão importante tirada do livro “Seis Propostas para o Próximo Milênio”, de Ítalo Calvino (1923-185), escritor italiano de nomeada, quando finalizava sua quarta proposta denominada de “Visibilidade”:
“Seja como for, todas as ‘realidades’ e as ‘fantasias’ só podem tomar forma através da escrita, na qual exterioridade e interioridade, mundo e ego, experiência e fantasia aparecem compostos pela mesma matéria verbal; as visões polimorfas obtidas através dos olhos e da alma encontram-se contidas nas linhas uniformes de caracteres minúsculos ou maiúsculos, de pontos, vírgulas, de parênteses; páginas inteiras de sinais alinhados, encostados uns aos outros como grãos de areia, representando o espetáculo variegado do mundo numa superfície sempre igual e sempre diversa, como as dunas impelidas pelo vento do deserto.”( pg.114).
E mais: “O escritor – falo do escritor de ambições infinitas, como Balzac (1799 – 1850) – realiza operações que envolvem o infinito de sua imaginação ou o infinito da contingência experimental, ou de ambos, com o infinito das possibilidades lingüísticas da escrita.”
Com esse testemunho de Ítalo Calvino para o século XXI, direi que a escrita, a literatura, é uma glória vã, nestes tempos de mesquinhezas e banalidades. Mas ainda é uma glória. Melhor do que ser escritor somente ser bom leitor (onde se aninham o educando e o educador), por ser meio caminho para ser bom homem e elevar o mundo.
Teresina, 4 de maio de 2005.
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Bibliografia:
- Luft, Lia. – Faxina dos Mitos, in revista “Veja”, 20.04.2005;
- Barros, Ozildo Batista de - Leitura, Literatura e Escola (monografia), UFPI, 2003;
- Giora, Regina Célia – Emoção na Criatividade Artística, in “Arqueologia das Emoções” – Vozes, Rio, 2000;