matéria é a herança mais provocante da Nova Física" (Paul Davies, físico)
Vaticano, abril de 2005: um novo papa é eleito, o primeiro do novo milênio. Como dirigente de uma das maiores religiões mundiais, estaria ele aberto a diferentes concepções de espiritualidade e busca do sagrado? Ou seja, estaria Bento XVI mais para João XXIII, um dos mentores do Concílio Vaticano II, ou para Sirício, papa do século IV, chamado de radical e neurótico sexual pela teóloga católica alemã Uta Heinemann?
Saindo do velho continente e mudando o foco por um momento, a cidade brasileira de Vitória, no Espírito Santo, prepara-se para sediar, em setembro de 2005, o II Congresso Mundial de Transdisciplinaridade.
Conforme os organizadores do evento, a transdisciplinaridade é uma nova abordagem científica, cultural, social e espiritual, estando anos-luz além de uma mera globalização do conhecimento, como imaginam alguns.
Dessa abordagem emerge, entre outros pontos, uma nova busca do sagrado, encorajando o nascimento de uma visão integrada entre ciência, arte, literatura e experiência espiritual, muito além de dogmas e cartilhas. Veja-se, por exemplo, o grande sucesso do livro O monge e o executivo (Ed. Sextante, 2004), em que James Hunter fala do boom de uma nova espiritualidade nas organizações modernas. Como, então, essa nova visão do ser humano, agora atrelada à ciência do transdisciplinar, se relaciona com a antiga e conhecida busca pelo sagrado das religiões?
A Igreja Católica, ao eleger Joseph Ratzinger como papa, parece dizer que não há o que discutir. Com Bento XVI e seu braço direito Ângelo Sodano, de fato, será difícil a instituição perceber o novo caminho que se faz para o sagrado através do enfoque transdisciplinar. Leonardo Boff, Hans Kung e a própria Uta Heinemann são considerados teólogos anátemas pela ala conservadora da Igreja Católica, por exemplo, por desejarem as mudanças profundas pregadas pelo Concílio Vaticano II e até hoje estancadas por setores retrógrados do clero, dos quais Ratzinger sempre foi um dos expoentes.
Sabe-se hoje que boa parte do povo que ainda vai aos templos também se consulta com benzedeiras, videntes, astrólogos ou vai tomar passe na Casa Espírita. Como também o paciente do oncologista reducionista vai, furtivamente como fez Nicodemos no Evangelho de João, buscar a homeopatia, a acupuntura, a massagem ou a fitoterapia, porque sabe que funcionam. Continuar a dizer que isso é pecado, não-científico ou coisa do demônio, não mais resolve, nem na esfera da Igreja e nem na da ciência, mesmo porque, além da posição dos teólogos citados, desde o século passado o conceito de “científico” também passa por inúmeros questionamentos (The Lancet, vol. 355, p. 586, 2000).
Por que, por exemplo, doutrinas mais abertas em relação ao sexo e à imortalidade do espírito existentes no início do cristianismo foram derrubadas por excomunhões e concílios, favorecendo a manutenção do medo e da culpa entre os fiéis? Por que, também se pergunta, castrações como essas da cúpula da Igreja Romana se afinam com outras da cúpula da academia clássica, onde a mensagem oculta é que somente os “doutores da lei” conhecem os segredos da vida? E o conhecimento popular, como diz Paulo Freire, onde fica?
Paradoxalmente, entretanto, os leões-de-chácara da academia, que hoje classificam as aplicações não-ortodoxas da Nova Física de atitudes pseudocientíficas, estão no mesmo time que abomina os arautos da Inquisição que atingiu em cheio uma ciência que ansiava por drásticas mudanças no século XVI, como foi o caso de Giordano Bruno. Não percebem que fazem a mesma coisa?
Não seriam justamente os ensinamentos rígidos das igrejas de hoje que fariam subir exponencialmente os interessados em temas de espiritualidade não-dogmatizada (revista Você S/A, abril de 2005), assim como estourar o número de leitores do Código da Vinci (Ed. Sextante, 2004)? E se somente 50% das afirmações de Dan Brown nesse livro fossem verdadeiras, o que fariam fiéis, padres e pastores que se questionam em silêncio, com muito medo de que algo ali seja verdadeiro? Proibir a leitura do livro? Da mesma forma, o que fariam os acadêmicos clássicos se apenas 50% das bizarras conseqüências da Física Quântica deixassem de ser o que eles rotulam de especulação? Proibir a leitura dos físicos F. Capra, D. Zohar e D. Bohm nas aulas de Física? Esquecem que qualquer sistema que se fecha acaba gastando energia para manter o status quo e nada mais cria, não evolui?
Isso mostra que, tanto na defesa a qualquer preço dos catecismos como na defesa ferrenha das idéias clássicas da ciência, há o perigo de se formar “igrejas fechadas”, com direito a promoções internas que valorizam prioritariamente os fiéis súditos que a tudo rezam um gregoriano “amém”. Ainda que Ratzinger tenha pronunciado que a verdade é propriedade exclusiva da Igreja Católica (Declaração Dominus Iesus, 2000), no encontro de Vitória há chances para a ampliação dos limites aceitos de uma ciência que propõe englobar o sagrado e o sutil em diferentes dimensões (B. Nicolescu em O Manifesto da transdisciplinaridade, Ed. Triom, 1999).
O fato inquestionável é que o povo leigo deste novo milênio, o simples e o culto, sem querer saber se a ciência clássica o acolhe ou Bento XVI o abençoa, clama por novas sendas alegres e sem culpas, em busca de um conhecimento integral da natureza, podendo escrever, ainda que de forma irregular, incerta e imprevisível, os novos caminhos do sagrado.
O físico Ivan Amaral Guerrini é professor titular do Departamento de Física e Biofísica do IB (Instituto de Biociências), campus da UNESP de Botucatu (guerrini@ibb.unesp.br).
(artigo publicado na edição de junho de 2005 do Jornal da UNESP, n. 201, pag. 2, São Paulo-SP, http://www.unesp.br/aci/jornal/201/opiniao.php)