Estou lendo uma obra que é considerada, por alguns, a bíblia de bolso para escrever poemas. Não, não me venha perguntar se resolvi virar poeta. Na minha idade, fica difícil alimentar presunções da espécie. Mas acho um privilégio poder ler sobre isso, ter tempo e cabeça para esses assuntos. Então, dou-me o direito de conhecer essa "bíblia". A obra em questão é O ser e o tempo na poesia, de Alfredo Bosi (Companhia das Letras), premiado como o melhor ensaio do ano (1977) pela Associação dos Críticos de Arte de São Paulo. Bosi, um dos ícones sagrados da USP – e que hoje também ocupa a cadeira nº 12 da Academia Brasileira de Letras – parece uma fonte inesgotável de conhecimento, técnica e domínio do senso artístico. Com propriedade, beleza e objetividade, discorre de Aristóteles a Peirce, evoca de Camões a Drummond e convida Freud e teóricos dessa envergadura para avalizar a relação entre Semiótica e Poesia. Peço licença para reproduzir, a seguir, um trecho primoroso de seu ensaio: "A PALAVRA BUSCA A IMAGEM ...toda grande poesia nos dá a sensação de franquear impetuosamente o novo intervalo aberto entre a imagem e o som. A diferença, que é o código verbal, parece mover-se, no poema, em função da aparência-parecença. Esse aparecer é, a rigor, um aparecer construído, de segundo grau; e a ‘semelhança’ de som e imagem resulta sempre de um encadeamento de relações, de modos, no qual já não se reconhece a mimese inicial própria da imagem. Karl Bühler, falando da onomatopéia, e revendo com extrema agudez o velho problema da iconicidade da linguagem, comenta [...] o homem que aprendeu a ler e interpretar o mundo silabando vê-se, pelo instrumento mediador que é a linguagem e suas leis próprias, apartado da plenitude imediata do que os olhos podem ver, os ouvidos escutar, a mão aprender, e busca o caminho de volta, trata de lograr uma apreensão plena do mundo concreto, salvando o silabeio, no que é possível. Na poesia coexistem as sombras da matriz e o discurso feito de temporalidade e mediação. O discurso acha meios de trazer a matriz à tona, de explorar as suas entranhas, de comunicá-la. Os meios (no caso, procedimentos) visam a compensar a perda do imediato, perda fatal do ato de falar. A pergunta fundamental é: como a série temporal do discurso persegue o imediato, o simultâneo, o finito da imagem? Como se comporta o tempo à procura da matriz atemporal? Por hipótese, a resposta seria esta: O discurso tende a recuperar a figura mediante um jogo alternado de idas e voltas; séries de re(o)corrências. A expressão verbal em si mesma, ainda quando reduzida a blocos nominais atômicos, é serialidade. Implica sempre um mínimo de expansão, de diferenciação. Se assim não fosse, toda linguagem morreria logo depois de proferido o grito original, a interjeição, a onomatopéia. Mas a verdade é que mesmo a poesia mais primitiva, do esconjuro à palavra ritual e à narração mítica, já exibe todas as estruturas diferenciais da série fonológica, da morfologia, da sintaxe (atribuição, predicação...). Falar significa colher e escolher perfis da experiência, recortá-los, transpô-los, e arrumá-los em uma seqüência fono-semântica.”