Sou do tempo em que, se eu pronunciava "você", levava logo com esta: "Seja educado menino, "você" é estrebaria".
Ena, santinho, que corado eu ficava. Lá me emendei de vez para não estar sempre a ouvir a mesma coisa. Tempos houve também em que comecei a zurzir os outros com o "você é estrebaria".
O dicionário actual trata o "Você", quanto a mim, como deve ser:
De vosmecê - vossemecê - vossa mercê
Forma tónica do pronome da 2ª. pessoa do singular que desempenha a função, quer de sujeito, quer de complemento, e é empregue com o verbo na terceira pessoa.
Como pronome pessoal, designa a pessoa a quem se fala e é usado entre pessoas que se tratam com alguma familiaridade, mas não o suficiente para utilizar o pronome tu.
Mas, quanto a mim, graças à maioria dos cerca de 180 milhões de brasileiros, martelando todos ao mesmo tempo, o "Você" ganhou beleza cívica e implantou-se correntemente, concorrendo para desfazer a diferença no trato entre classes.
Então, oh, o Roberto e a Fafá pronunciando "Você", é uma beleza para escutar muito bem escutadinha.
Não sei porquê, mas brasileira a pronunciar "Você" de encontro a meu ouvido, me faz cocegazinhas maravilhosas no tímpano e daí por mim abaixo.
Afinal, o tal senhor, tanto chamou "você" ao seu escravo que, hoje, ao levar de volta com o som da submissão, soa-lhe mal ao ouvido. É, os génes de outrora ainda percorrem o sangue de muita gente, mas, isso, deveras acabou.
Amo você. E você, me ama?
Soa-me muito melhor do que:
Amo-te. E tu, amas-me?
É seco, frio, muito impetuoso, não tem expansão silábica, dá ideia de magoar o significado ao sujeito.
À brasileira tem mais som, dá para saborear, para ninar as palavras.
E não estou, não, a passar tinta dourada atrás da parede. Estou de facto a pintar de frente e porque assim sinto. O dicionário actual sente como eu, felizmente.
De resto, um portuga legítimo, que ama a sua língua e a sua gigantesca flexibilidade, a corroborar a evidência, alivia os que se martirizam sob a canga da expressão snob.
Em dadas circunstâncias, eu, António Torre da Guia, peido-me logo.
Já custa pra caramba suportar as algemas e as grilhetas da vida, quanto mais as da língua...
Você?!... Agora é lindo. O povo venceu. Falta vencer o resto.
António Torre da Guia
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