Na entrada de ano me senti só. Mesmo assim, aconchegado em minha biblioteca. E desejei a comunicação essencial do ser humano: a poesia. Fui tentar escrever um poema. Não saiu nada. Só palavras, palavras, palavras. Nenhum verso bom, sentimento que não fosse de tristeza. E o pior: tudo racionalizado.
– Meu Deus! Estou só com as palavras! Virei menino que fala sozinho com os seus brinquedos. A fantasia de um mundo róseo, saltitante, cheio de boas pessoas, ações, princípios, brinquedos à beça. Pois tudo vira brincadeira. O céu.
Claro que o leitor contumaz não passa muito tempo sem pensar num livro, seja qual for. O livro não precisa de energia, ele sozinho é a luz. O companheiro calado aceita buscas, questionamentos. Feche-o ou o abra, é sempre precioso. Fechado é um tesouro a ser descoberto. Aberto, quem soube dizer bem foi o poeta Belmiro Braga: “Um livro aberto parece / uma ave que quer voar/ e quem o lê reza uma prece / ao saber santo no altar”.
Mas teimo é volto às palavras, para com elas fazer um poema. Qual a palavra que mais me perseguia no momento? SUSPICAZ. Corro ao dicionário, não saberia dizer o que era ou seria. Para mim, suspicaz era a suspeita de uma coisa boa, aliviante como um suspiro. Como quando se expulsa um sentimento preso e deixa o coração livre para absorver o mundo em seu redor. SUSPICAZ? O “Dicionário Escolar”, de Silveira Bueno, aquele gramático mais ou menos liberal, que se alinhava no pensamento social democrata, participativo e consciente do que é o ser homem, da necessidade de ser gente no mundo.
– O que é suspicaz? Pergunto e o livro responde: “Suspeito; que tem suspeita; desconfiado”.
Eu nem você desconfiávamos, leitor, do sentido desta palavrinha. Uma simples palavra. Como então vamos conhecer-nos a nós, ao outro ser, conhecer o mundo? O conhecimento é incomensurável. Ninguém conhece. Talvez por isto José Saramago tenha escrito o romance “Tratado Geral da Cegueira”. “Ninguém merece!” Ou merece? Aí tive que consultar um livro que falasse do princípio do homem, de antes do nascimento. Segundo pensa o vulgo, lá estaria toda a cegueira do mundo. Mas engana-se. Lá é que está toda a nossa riqueza, toda a poesia.
Na realidade, o momento de minha solidão era um disfarce de criança, tinha querido voltar a ser criança, uma coisa impossível. Por mais que se brinque, se chute tampinhas, se torne um “endiabrado” moleque a mexer com quem vai e quem vem. O livro que peguei é muito rico: uma leitura que se deve fazer compassada, sem pressa. Autor: Dr. Marco Aurélio Dias da Silva. Doutor mesmo. Médico. Porém já falecido. Sobre a angústia dos primeiros anos do bebê, ele diz: “O mundo, tal como ele se nos apresenta, é, sem dúvida, áspero e hostil. A expulsão inegavelmente violenta do aconchego do útero materno constitui o nosso grande e primeiro trauma. Há quem tenha dito – e provavelmente está correto – que temeríamos mais o nascimento que a morte, se dele tivéssemos consciência”.
Tentando uma comparação que pode parecer absurda, eu diria que o poeta sofre um grande trauma quando nasce o seu grande poema, maior mesmo do que quando, decepcionado, não o consegue. E foi o que senti nos primeiros dias deste ano, tentando renascer-me.
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*Francisco Miguel de Moura, escritor brasileiro, mora em Teresina; e-mail: franciscomigueldemoura@superig.com. br