Ser escritor ou, pelo menos, ter alguma facilidade em expor, através da palavra escrita, os nossos sentimentos, pensamentos, sonhos, hipóteses, alegrias, frustrações, vitórias ou derrotas, é uma dádiva, pois, muitas vezes, é escrevendo que eu dou vazão ao que não cabe dentro de mim e que preciso extravasar evitando, assim, a depressão, a empolgação excessiva, a sensação de impotência, o acúmulo de idéias ou de sonhos neste meu coraçãozinho que, nos últimos anos, necessita de cuidados médicos freqüentes, para que eu possa seguir trabalhando, vivendo, cumprindo a missão que me foi destinada, ou que escolhi num outro plano, ou por determinação do Criador.
Entretanto, quanta coisa eu precisaria extravasar para arrancar o nó que tantas vezes me machuca, que sufoca o meu peito, que dilacera a minh’alma e que, por motivos óbvios eu não posso transportar para o papel ou para uma telinha fria de um computador?
E tenho pleno conhecimento do quanto isso seria vital para mim, pois sei o quanto eu me sentia melhor quando tinha alguém com quem podia compartilhar tudo que sentisse, pensasse, imaginasse, criasse, vivesse. Era maravilhoso sentir a cumplicidade, saber que seria ouvida, que poderia ouvir, que não precisava escolher palavras, temas, horários, meios de comunicação, pois tudo era válido e a existência da confiança mútua somada a um carinho infinito, a uma ternura ilimitada, me permitia ser eu mesma na minha integralidade. Creio que uma pessoa assim é única na nossa vida e se a perdemos, não saberemos substitui-la. E, se descobrimos a efemeridade de sua presença no nosso contexto, ficamos com a impressão de que ela não conseguiu assumir totalmente o nosso mundinho, como se fosse seu, rejeitando a nossa entrega total, sequer nos conhecendo verdadeiramente, por opção sua, restando-lhe, no entanto, a idéia de ter o poder de dominar nossos sentimentos, de nomeá-los, de interpretá-los, o que seria possível sim se permanecesse conosco, nos conhecendo cada vez mais.
Seria preciso uma convivência sem limites, uma entrega irrestrita de ambos, onde a cumplicidade fosse sempre presente e dotada de toda confiança, não só no outro, mas, principalmente em si mesmo, pois só vive desconfiado quem não alcança o tamanho do próprio valor. E esse valor não necessita ser divulgado, ser cantado, pois ele é transparente, como transparente é o amor verdadeiro, que nada mais é do que bondade, renúncia, humildade, perdão, respeito, admiração entrega, doação.
Esse conjunto num único ser já não existe para mim, todavia amigos não me faltam, graças a Deus. Só que sabemos bem que aos amigos nunca podemos nos abrir completamente, pois se extravasamos uma parte do que sentimos necessidade ou queremos, outra não pode sair do nosso íntimo e assim vamos acumulando dores, feridas, segredos tão nossos que nos dão conta, de repente, de que somos quase solitários.
Mas eu iniciei me manifestando sobre as vantagens espirituais e vitais de ser escritor ou, pelo menos, saber transmitir o que se sente, sonha, pensa, imagina, cria, ressaltando que isso faz um bem danado ao nosso coraçãozinho, principalmente quando ele está machucado, aliviando-o de alguma forma.
Penso que se todas as pessoas tivessem alguém com quem partilhar tudo que lhe diz respeito, sem exceção, sem regras, sem limites, não haveria suicídios. Todos teriam alguém para expor os seus mais íntimos pensamentos e, com toda certeza receberiam uma luz, a indicação de um caminho, sentir-se-iam protegidos, porque entre eles prevaleceria sempre o amor que os une.
E estou aqui conjeturando sobre tudo isso porque acabei de receber uma notícia que, além de me entristecer imensamente, me levou a mais uma vez indagar: o que leva uma pessoa ao suicídio? A depressão? A desilusão? O desespero? O despreparo para enfrentar a vida como ela é? A descrença? A imaturidade? O desconhecimento? A ignorância? O orgulho ferido? A insensatez? A ousadia? A ausência de sonhos, de propósitos, de ideais? A solidão? A tristeza? O desamparo? Ou a soma de tudo isso? Penso que qualquer que seja a justificativa que servirá de apoio ao suicida para cometer o ato criminoso, aos olhos de Deus e aos olhos do Homem, de tirar a própria vida, encontrará amparo em pelo menos uma dessas possibilidades mencionadas.
Tomei conhecimento, há pouco, de que o Samuel, não só um cliente, mas também um amigo, jovem ainda, pois não creio que tivesse mais do que quarenta e poucos anos, chefe de família, pai, trabalhador daqueles que não enxerga tempo ruim para o labor, dedicando-se à sua profissão inclusive em fins de semana se necessário, saudável, sem problemas de saúde em qualquer dos membros de sua família, enfim, um homem que sempre demonstrou despojo, garra, alegria, vigor, força, energia, fé, cercado sempre de amigos, profissional reconhecido em seu meio, decidiu tirar sua própria vida, tendo sido enterrado ontem. Uma de suas colegas de trabalho, nossa amiga comum, inconformada, me dizia que ali estivera para poder acreditar, pois um homem como ele não poderia ter sido capaz de cometer esse ato. Terá lhe faltado alguém como aquele alguém que eu tive em algum momento da minha vida?
O suicídio do Samuel me leva a aprofundar a minha reflexão sobre o assunto. O que pode ser tão superior à própria vida a ponto de alguém decidir tirá-la? Somos donos dos nossos corpos limitadamente, pois a nós compete cuidar deles com responsabilidade, para que a matéria tenha energia o bastante para viver por todo o tempo que lhe foi destinado. Mas, em hipótese alguma podemos nos julgar donos da matéria a fim de nos apoderarmos dela com um egoísmo trágico e insano, uma ingratidão ao Criador, visando pôr fim a qualquer problema, distúrbio ou derrota que se nos apresenta.
O Criador dotou o ser humano de uma inteligência incomparável a qualquer outra de suas criações, atribuindo-lhe o raciocínio, que somado ao sentimento e tudo o mais existente em toda a natureza, permitiu-lhe o progresso material, usando sua criatividade e todos os instrumentos que são encontrados no universo.
E de que serve o progresso material se o homem não progredir espiritualmente? Para que serve essa inteligência toda que tantos arrotam serem portadores de possui-la maior que os outros, se as coisas mais simples, mais profundas em sua essência, mais inteligíveis, mais visíveis não só pela alma, mas até na materialidade que nos rodeia e que serve aos nossos caprichos e desafios?
Para que pode servir uma inteligência que não sabe sequer respeitar sentimentos, respeitar a si próprio, respeitar o seu semelhante? De que adianta a cultura, o uso de palavras ou analogias mais sofisticadas, a experiência de vida, a sensibilidade inata, as qualidades superiores de que são dotados tantos de nós, se não soubermos sequer dizer um bom dia, um muito obrigada, um durma bem, ou se não soubermos abraçar, estender a mão e beijar qualquer um dos nossos irmãos e quem dirá a quem partilhou suas vidas conosco, depositando-nos confiança, dando-nos amor, trazendo-nos alguma felicidade? Terá a inteligência, por finalidade única, o egoísmo e a arrogância?
E vem então a grande questão que não sei responder: o que sentirá por si mesmo, o ser que não consegue visualizar, através dos olhos ou da alma, que o outro também tem sentimentos, tem vida, tem brio, tem sensibilidade, é matéria e espírito como ele? Não estará provocando o suicídio, o ser que não enxerga no outro, um seu semelhante, sujeito aos mesmos erros que ele, às mesmas ações e reações quando tocado em sua dignidade ou nos seus sentimentos? Ou será ele dotado de um poder inabalável que não o faça sofrer pelo menos um pouquinho, quando faz outro sofrer, ainda que faça para evitar o seu sofrimento?
Tirar a própria vida de forma brusca, premeditada, calculada é ser fraco, qualquer que seja a fundamentação utilizada para a justificativa. Entretanto, não estamos nos suicidando quando deixamos de cuidar do nosso corpo, da nossa mente, do nosso coração, do nosso espírito, reduzindo as energias que precisamos manter equilibradas enquanto temos vida, permitindo, assim, que a matéria possa nos deixar cumprir a totalidade da missão que nos trouxe a este plano?
O Samuel, como tantos outros suicidas, necessita de orações. Se você conseguiu ler as minhas elucubrações até aqui - amargas e possivelmente desorganizadas e desordenadas, quem sabe até infantis aos olhos de muitos, mas nascidas do meu inconformismo com a atitude de um amigo que optou por não esperar a sua passagem natural, somadas a tantas outras decepções e mágoas que, como dito acima, acabam se acumulando no meu interior, devido à impossibilidade de extravasá-las e de ver-me compreendida – reserve, também, alguns minutos do seu dia e faça uma prece rogando um breve tratamento ao seu espírito e a rápida conquista de Luz e Paz a esse amigo que, infelizmente, não soube obedecer aos desígnios de Deus.
Alguém me disse que eu não escrevo com a alma, mas que jogo com as palavras. Eu gostaria muito que esse alguém tivesse o dom de se transportar para junto de mim enquanto eu escrevo, pois talvez olhando no meu rosto e vendo as lágrimas rolarem ou vendo a emoção que me domina enquanto escrevo, certamente ele descobriria a pessoa que ele não consegue conhecer através dos meus escritos. Assim, se alguma dúvida ou incoerência eu deixei nesta reflexão escrita, eu peço que apenas acreditem que a escrevi tentando, mais uma vez, driblar as lágrimas e pacificar o meu coração.