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Artigos-->As "Paisagens" em Paulicéia Desvairada de Mário de Andrade -- 13/02/2006 - 16:42 (Jayro Luna) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Estudos dos poemas intitulados “Paisagem” em Paulicéia Desvairada de Mário de Andrade

Prof. Dr. Jayro Luna



A poesia de Mário de Andrade é daquelas do Modernismo que mais pode nos surpreender com respeito à utilização de recursos visuais e musicais conjuntamente. Em Paulicéia Desvairada, Mário de Andrade distribui pelo livro entre poemas como “Inspiração”, “Ode ao Burguês” e “Tietê”, além do famoso “Prefácio Interessantíssimo”, quatro poemas com o título “Paisagem”, numerados de 1 a 4 (Paisagem N.°1, Paisagem N.° 2, Paisagem N.° 3 e Paisagem N.° 4).

O livro Paulicéia Desvairada parece querer compor um retrato modernista da São Paulo progressista do início do século XX, metrópole paulista do café e de pequena mas já crescente indústria. O Vale do Anhangabaú, a Rua São Bento, o Rio Ipiranga emprestam também seus nomes para intitular poemas desse livro, reforçando esse aspecto de retrato modernista da cidade feito por Mário de Andrade.

Em “O Anhangabaú”, p.ex., Mário contrapõe o passado tradicional de uma oligarquia cafeeira representada nas suas estátuas com a velocidade do progresso urbano e industrial: “Estátuas de bronze nu correndo eternamente, / num parado desdém pelas velocidades”. A estátua é representada não pela imobilidade mas pela capacidade que tem de eternizar o movimento, recuperando assim uma lição de Lessing (Laocoonte). Não deixa Mário, de como fizera em “Inspiração”, nesse poema também comparar São Paulo a Paris: “Estes meus parques do Anhangabaú ou de Paris”. Faz ainda referência intertextual ao poema “Os Sapos” de Manuel Bandeira, que Mário lera na Semana de Arte Moderna e que por causa disso fora alvo de vaias (ao que parece, orquestradas por Oswald, com o intuito de causar escândalo ou notícia): “onde as mágoas dos teus sapos? / ‘Meu pai foi rei! / -Foi - Não foi. - Foi - Não foi.’”. E termina com a referência ao palimpsesto como forma de entender não apenas o poema, mas de representar a cidade como um palimpsesto de si mesma, em que o passado se apresenta nos interstícios do constante movimento progressista: “Meu querido palimpsesto sem valor! / Crônica em mau latim / Cobrindo uma écloga que não seja de Virgílio!”

Mas é nos quatro poemas de “Paisagem” que Mário de Andrade parece desenvolver a técnica poética que mais se aproxima analogamente da técnica cubista de pintura.

O Cubismo foi talvez das vanguardas européias aquela que mostra mais explicitamente a crise com a imagem fotográfica. A busca por uma nova percepção, por uma nova maneira de olhar, com suas angulações e geometrizações, com sua decomposição das formas dos objetos espelha essa desconstrução da imagem tridimensional e da perspectiva, delineando assim um limite técnico e teórico entre a pintura e a fotografia, esta insuperável no retrato, aquela guardando para si o domínio da imaginação e das dimensões psicológicas da mesma imagem.

Como comenta Gilberto Mendonça Telles:



“A pintura cubista, que desenvolveu o construtivismo de Cézanne, encontrou em Picasso, Braque, Delaunay, Picabia, Fernand Léger, Mondrian e Juan Gris os seus maiores representantes. A sua técnica é a da representação da realidade através de estruturas geométricas, desmontando os objetos para que, remontados pelo espectador, deixasse transparecer uma estrutura superior, a forma plástica essencial e verdadeira da beleza. Segundo explica Carlos Cavalcanti, ‘No desejo de transmitir a estrutura total do objeto, os cubistas começaram a decompor as formas em diferentes planos geométricos e ângulos retos, que se interceptam e sucedem. Tentavam sugerir a representação do objeto sob todos os seus aspectos, de face e de perfil, em suma, na sua totalidade, como se tivesse sido contemplado sob diferentes ângulos de visão ou se tivéssemos dando uma volta em seu derredor’.”

(TELLES: 1972, p. 86-87)



Ainda não era conhecida nessa época o efeito técnico da holografia - que permite a inserção da tridimensionalidade numa película de caráter bidimensional. Porém, não creio que se tal técnica fosse conhecida alterasse significativamente o desenvolvimento da técnica cubista, uma vez que ela está mais próxima da tentativa de compreender as possibilidades para além do universo físico das três dimensões, como já pensavam alguns físicos mais ousados após as descobertas da relatividade einsteniana. Era como tentar perceber a totalidade das dimensões de uma única vez, para tal as deformações, sobreposições, justaposições de partes dos objetos representados caracterizariam esse descompasso entre o mundo de três dimensões e a nova tentativa de percepção.

J.Berger em brilhante texto (Modos de Ver) comenta que o surgimento das técnicas cinematográficas e da câmera fotográfica causou modificações profundas no modo de ver com reflexos notáveis na pintura:



“La invención de la cámara cambió el modo de ver de los hombres. Lo visible llegó a significar algo muy distinto para ellos. Y esto se reflejó inmediatamente en la pintura.

Para los impresionistas, lo visible ya no se presentaba al hombre para que este lo viera. Al contrario, lo visible, en un fluir continuo, se hada fugitivo. Para los cubistas, lo visible ya no era lo que había frente a un solo ojo, sino la totalidad de las vistas posibles a tomar desde puntos situados alrededor del objeto (o la persona) representado.”

(BERGER: 1974, p. 25)



Na poesia modernista brasileira, a influência desse novo modo de ver - em especial o modo de ver cubista - teve implicações e ligações com a técnica da montagem cinematográfica de Eisenstein. Ambos os modos de ver, o einsensteniano e o cubista se mesclam como amálgama de influências na poesia modernista brasileira que é quase impossível dissociá-los.

Mas existe uma diferença conceitual entre os dois modos de ver. No caso da montagem no cinema, seu objetivo último é assegurar a capacidade narrativa das imagens selecionadas:



“(...) a ‘linguagem cinematográfica’ é primeiro a literalidade de um enredo; os efeitos artísticos, mesmo se forem substancialmente inseparáveis do ato sêmico pelo qual o filme nos apresenta a estória, não deixam por isso de constituir uma outra camada de significações que, do ponto de vista metodológico, vem ‘depois’.”

(METZ: 1972, p. 119)



Ao passo que na pintura cubista não é capacidade narrativa que se busca, mas antes a representação da totalidade dos vários ângulos de um objeto num dado momento da percepção. De certo modo, a diferença entre estes dois modos de ver retoma a questão já proposta por Lessing acerca das diferenças entre a poesia e a pintura.

Quando Mário de Andrade nos apresenta um conjunto de quatro poemas intitulados “Paisagem” em Paulicéia Desvairada, cremos que o título já nos remete a uma distinção entre capacidade narrativa e descrição de imagem num dado momento, ou ainda, entre a diferença entre cena e cenário e, por conseguinte, entre montagem cinematográfica e pintura cubista. Para André Helbo, a especificidade do teatro repousa sobre três aspectos bem fundamentais: 1) a encenação; 2) a dramaturgia e 3) a preeminência do espaço sobre o tempo. Desse modo, observa Helbo, a encenação é a “expressão visual colocada a serviço de uma concentração” ao passo que a dramaturgia se realiza na “subdivisão em ‘momentos’ (cenas?) com a “predominância da ação sobre o relato”.



“(...) como escreve Metz, ‘a peça de teatro é uma ação num cenário, o filme e o romance são pseudomundos homogêneos’. Da mesma forma, o cenário, em relação à ação ou à pessoa a que serve de suporte, está sempre ‘em retirada’, melhor ainda, os espaços do cenário (reduzido), do ator e do espectador são autônomos individualmente.”

(HELBO: 1980, p. 61)



No caso da poesia modernista, os poemas “Paisagem” de Mário de Andrade parecem nos indicar o cenário como ponto de partida imagética do poema. Mas longe de ser uma descrição de uma cena cotidiana da cidade de São Paulo, Mário de Andrade vai compondo um multi-expressivo painel de fragmentos de cenários e cenas, como se fosse a realização estética do mesmo desejo cubista de apreensão da totalidade perceptível. No caso, a cidade de São Paulo é o objeto, que por suas características de urbanidade, de cidade em crescimento contínuo e de grande movimentação de coisas e pessoas, torna-se o objeto, por assim dizer, próprio e propício à aplicação desse modo de olhar cubista, inclusive com insinuações cubo-futuristas, uma vez que a cidade e o movimento característico dela se tornam os motivos do texto.

Em “Paisagem N.° 1” a ocorrência de verbos no presente do indicativo e quase ausência de qualquer outro tempo verbal que não seja para indicar essa presentidade reforçam a impressão de uma cena estatizada num momento. Apenas o verbo “queimar” traz uma problemática indicação de pretérito: “Há duas horas queimou Sol. / Daqui a duas horas queimas Sol”. Iniciada pelo verbo “haver” a indicação de tempo no primeiro verso faz com que o pretérito do verbo queimar seja relativizado, ou seja, agora, no presente é que se completam as duas horas do referido fato. No verso seguinte, a expressão “daqui a duas horas” concordaria melhor com o verbo no futuro (seja do presente ou do pretérito): “daqui a duas horas queimará (ou queimaria) sol”. Notemos, porém, a troca de “há” (haver) do verbo precedente pela preposição “a”: daqui para duas horas queima sol. A idéia, ao que nos parece, é propor a forte luz e calor do Sol como contínuo independente da passagem do tempo.

Na tabela a seguir indicamos os verbos, os tempos verbais, a pessoa e o número de ocorrências no poema:



Verbo___N.°verso__Tempo Verbal__Pessoa__Ocorrência

haver___3 e 9___Presente________3.ª sing._______2

________14______Pres. Do Sub.___3.ª sing._______1

fazer___4_______Presente________3.ª sing._______1

ser_____7_______Presente________3.ª sing._______1

queimar_9_______Pret.Perfeito___3.ª sing._______1

________10______Presente________3.ª sing._______1

passar__11______Presente________3.ª sing._______1

cantar__11______Gerúndio________________________1

sentir__15, 18__Presente________3.ª sing._______2

________21______Gerúndio________________________1

dialogar17______Presente________3.ª sing._______1

dar_____20______Presente________3.ª sing________1

sorrir__20______Infinitivo Imp._________________1

seguir__21______Presente________1.ª sing._______1

ir______21______Presente________1.ª sing._______1



Os verbos haver, fazer e ser - como auxiliares que são - apenas indicam no poema as constatações de fragmentos de cenário que compõem o todo, como os recortes realizados pelos pintores cubistas nos seus quadros, na busca da totalidade sensorial e visível do objeto:



“Há neve de perfumes no ar.

Faz frio, muito frio...

E a ironia das pernas das costureirinhas

Parecidas com bailarinas...

O vento é como uma navalha

Nas mãos dum espanhol. Arlequinal!”



O uso da terceira pessoa do singular em quase todo o poema confirma esse aspecto de demonstração de um cenário multifacetado e fragmentado, que, se conclui na individualidade com que o poeta percebe tudo a sua volta, daí o uso dos verbos (seguir / ir) na primeira pessoa no final do poema: “E sigo. E vou sentindo”.

Os versos 13 e 14 parecem até conter uma substituição de um provável verbo que deveria estar no pretérito imperfeito por um substantivo, como se a transformação do verbo em nome auxiliasse o processo de presentificação e estatização da cena como uma paisagem: “Necessidade a prisão / para que haja a civilização?” (Parece-nos que o mais natural seria “Necessitava de prisão / para que haja a civilização?”).

O poema ainda apresenta intratextualidade, como no primeiro e no oitavo versos em que se faz referência aos poemas “Garoa do Meu São Paulo” e “Inspiração” respectivamente, criando assim um panorama intratextual de poemas que falam de São Paulo. Tal panorama intratextual reforça a idéia da tentativa de apreensão da totalidade perceptiva do cenário que é a cidade de São Paulo, criando assim uma rede de relações que se abre no poema.

Em “Paisagem N.° 2” o verbo lembrar (“Lembras-te?”) e outros que estão no pretérito perfeito dão uma nova dimensão ao tempo nesse poema em relação à “Paisagem N.° 1”. Um verso que se repete (“Oh! para além vivem as primaveras eternas!”) completa o novo panorama da paisagem.

O poema a primavera (que está distante, no campo) se opõe ao inverno da cidade com sua frieza de urbanidade. O poema chega a ganhar tons impressionistas por esse jogo de percepção das estações, da cor do céu, pelas impressões algo bem subjetivas colocadas nos versos.

O poema tem uma pontuação diferente do anterior também, treze versos de um total de 33 terminam em reticências, sendo que o segundo verso tem mais duas reticências internas: “Marasmos... estremeções... brancos...”.

Dez versos terminam em exclamação e três possuem exclamações internas. Além de dois versos que têm um travessão interno (“Verde - cor dos olhos dos loucos!” e “Primaveral - cor dos olhos dos loucos!”).

Esses aspectos relativos à pontuação e aos tempos verbais mostram como o poema está inserido num processo de composição marioandradino que Antônio Manuel analisou como sendo uma teoria poético-musical.



“(...) assim como existe a superposição entre palavras (harmonia), em oposição à linearidade discursiva das mesmas (melodia), há também superposição de ranses (polifonia), que se opõe a uma linearidade de várias frases entre si. Esta última relação linear volta a receber o nome de melodia, caracterizando uma redundância e um vazio. Redundância, porque o termo melodia se repete para caracterizar um mesmo fenômeno, quanto à natureza, numa relação distinta. Vazio, porque deixa de lado a diferença quanto ao grau e não explica satisfatoriamente o traço distintivo da nova relação.”

(MANOEL: 1985, p. 32)



Essa redundância e vazio referidos são “consertados” por Antônio Manoel ao sugerir o termo “monofonia” para denominar um conjunto de versos dominados pela linearidade. Os versos polifônicos (sejam melódicos ou harmônicos) são caracterizados por aspectos disjuntivos gramaticais como as reticências, as exclamações, a aparente quebra de coesão, são como várias vozes a vibrar na leitura do poema.

Sem dúvida, a aproximação entre música e poesia é importante e decisiva para a compreensão do processo criativo poético de Mário de Andrade, porém, não devemos também negligenciar o papel que os aspectos visuais das artes plásticas e das técnicas cinematográficas e fotográficas tiveram sobre a formulação desse mesmo processo.

Nos poemas aqui analisados, a questão da apropriação de um procedimento teórico vindo de uma analogia com as artes plásticas, o cinema e a fotografia dá sua parcela de contribuição, o modo como Mário fizera isso - consciente ou inconscientemente - é notável.

No caso de “Paisagem N.° 2” a memória é o elemento que compõe um novo processo de visão do cenário urbano. Por oposição a memória vai criar o conflito entre o cenário frio que sufoca da cidade, porém da cidade que o poeta ama, com a fugidia e idealizada primavera dos poemas românticos e clássicos. Assim, instaura-se o conflito sob o estigma da relação idealização e realidade percebida:



“Deus recortou a alma da Paulicéia

num cor-de-cinza sem odor...

Oh! Para além vivem as primaveras eternas!...

Mas os homens passam sonambulando...

E rodando num bando nefário,

vestidas de eletricidade e gasolina,

as doenças jocotoam em redor...”



Imagens contraditórias resultado desse conflito instalado na memória surgem nos versos finais: “Grande função ao ar livre! / Bailado de Cocteau com os barulhadores de Russolo! / Opus 1921”. Aqui a dança de Jean Cocteau, vanguardista, (artista plástico, diretor de cinema, fotógrafo, roteirista, poeta, romancista) se aglutina aos barulhadores (máquina de fazer barulho) criadas por Luigi Russolo que em 1913 compõe também partituras para elas e concebe o conceito de música do barulho.

Mas “São Paulo é um palco de bailados russos.” Cria-se a oposição entre a vanguarda experimentalista e polêmica (Cocteau e Russolo) e a arte reconhecida e bem cuidada dos bailados russos. Mário de Andrade se insere nesse conflito: “Mas o Nijinski sou eu!” Bailarino russo, Vaslav Nijinski dominava como ninguém a técnica do salto, representado na Europa bailados difíceis como o baseado no poema de Mallarmé (L’Après-Midi d’un Faune), em 1919 acometido de problemas mentais abandonava o palco. Mário se apresenta como um Nijinski no cenário de São Paulo: “Quá, quá, quá! Vamos dançar o fox-trot da desesperança / a rir, a rir dos nossos desiguais!” A dança da loucura se mostra como solução possível para enfrentar esse conflito mental na memória do poeta. E, ainda, o tema da música e arquitetura do poema se estão em acordo com a relação poesia e música, o tema da dança abre a ponte de ligação com a visualidade cubista e de montagem einsensteiniana no poema, uma vez que a dança é, por assim dizer, a visualidade da música.

Em “Paisagem N.° 3” Mário de Andrade retoma a idéia de colocar os verbos no presente. Das 14 ocorrências verbais, apenas uma se refere ao pretérito: “O rei de Tule jogou a taça ao mar...” e uma outra ao pretérito imperfeito do subjetivo: “(E si pusesse um verso de Crisfal / No De Profundis?...)”.

O poema se inicia com uma interrogação com um verbo no presente: “Chove?”. Não é apenas uma pessoa interessada em saber se está ou não chovendo, mas é a questão que se coloca sobre a impossibilidade da percepção imediata do presente. O presente, quando pensamos sobre ele, já é passado. A situação é um paradoxo para o esforço da memória em apreender o momento imediato: “Mas neste Largo do Arouche / posso abrir o meu guarda-chuva paradoxal, / este lírico plátano de rendas mar...” Assim o poema se desenvolve nesse conflito entre a impossibilidade de apreensão imediata da realidade circundante, que invoca os sentidos instantaneamente como as gotas de chuva que cai do céu (“os homens passam encharcados”), e o desejo de vencer essa impossibilidade (“Os reflexos dos vultos curtos / mancham o petit pavé...”).

A loucura, citada no poema anterior, agora se mostra como parte indissolúvel do inconsciente do poeta, e o ato de colocar a máscara e antes o ato de ocultar a loucura do que o de esconder-se: “-Tem razão, minha Loucura, tens razão. / O rei de Tule jogou a taça ao mar...”. A constatação de que a razão pertence à Loucura é já o próprio paradoxo, agora reforçado pelo conflito entre o presente e a memória.

Ao final do poema, numa demonstração de grande habilidade de uso da técnica cubista, um raio de Sol rompendo as nuvens escuras é visto como um risco sobre o chuvisco, isto é, num tentativa de apreensão da totalidade - como queriam os cubistas - o poeta faz uma analogia entre as gotas que caem lépidas e o raio de luz: “De repente / um raio de Sol arisco / risca o chuvisco ao meio”. A sonoridade aqui incumbe-se dessa apropriação cubista no âmbito sonoro do poema. As letras “a”, “i”, “s” e “c” são como aqueles cubinhos dos quadros cubistas amontoados a montar o retrato multidimensional de um jarro, de uma guitarra ou pássaro como fizeram Picasso, Braqcuq, Delaunay ou Amadeo de Souza-Cardoso, entre outros.

Na primeira estrofe, fragmentos de cenas misturam-se para compor o cenário caótico da chuva (garoa) paulista: A Casa Kosmos, o Largo do Arouche, a garoa, a liquidação das lojas, o guarda-chuva (este, paradoxal) faz a “composição” cubista do primeiro bloco / estrofe.

Já em “Paisagem N.° 4” Mário busca resolver o conflito memória / presente com uma mudança dos tempos verbais. Agora as formas nominais dominam os tempos verbais usados no poema: Gerúndio e Infinitivo Impessoal:



“Os caminhões rodando, as carroças rodando,

rápidas as ruas se desenrolando”



“Lutar!

A vitória de todos os sozinhos!...”



“Hostilizar!... Mas as ventaneiras dos braços cruzados...”



“Oh! Este orgulho máximo de ser paulistanamente!!!”



As formas nominais suspendem a ação temporal, colocam-nas num devir contínuo, de forma que ao mesmo que ficam estatizadas, ficam permanentes, indissolúveis ao tempo.Assim a apreensão do momento presente na poesia consegue aquela busca que tentava evitar o que separava, por princípio constitutivo, a arte visual e pictórica da poesia. Em outros versos do poema notamos a ausência do verbo, a nominalização passa a utilizar substantivos em lugar dos verbos: “rumor surdo e rouco, estrépidos, estalidos... / E o largo coro de ouro das sacas de café!...” ou ainda, o verbo se oculta, subentendido, como se fosse o uso da elipse: “Na confluência o grito inglês da São Paulo Railway...”.

Noutros momentos, o verbo no imperativo, mantém essa tendência de suspensão do tempo, de nominalização como coisificação da ação: “Ponhamos os (Vitória) colares de presas inimigas! / Enguirlandemo-nos de café-cereja!”

Só um verso contém um verbo no presente: “Fogem os fazendeiros para o lar!... Cincinato Braga!...” Este presente se vê agora contaminado pela suspensão do tempo, concretiza-se na ação econômica, o capitalismo se perpetua, os fazendeiros (representação da aristocracia, da tradição, do passado) não têm espaço na economia urbana, e o nome do grande economista brasileiro da época e que em 1924 assume a presidência do Banco do Brasil, vem compor esse panorama.

Ironicamente o café era o grande produto de exportação da economia brasileira e como tal, financiava a industrialização paulista, contradições da realidade que oprimem e reprimem os sonhos modernistas: “Na confluência o grito inglês da São Paulo Railway... / Mas as ventaneiras da desilusão! A baixa do café!...”

O Brasil teima em ficar para trás diante do progresso da capital paulista: “Muito ao longe o Brasil com seus braços cruzados... / Oh! As indiferenças maternais!...”

Desse modo, os quatro poemas intitulados “Paisagem” em Paulicéia Desvairada de Mário de Andrade vão compondo um processo de apreensão da técnica cubista para a poesia modernista. O tempo é o grande aspecto a ser trabalhado, a necessidade de compreensão do tempo para efeito de composição da imagem (paisagem) faz com que a técnica marioandradina de montagens de blocos significativos em que a coesão entre em conflito com a pontuação, com as ausências e subentendimentos, elementos que dão esse toque de fragmentação do verso do mesmo modo que o pintor cubista fazia com as figuras e pessoas que representava. Aqui, como lá, a fragmentação não é fuga ou incapacidade de perceber o todo, antes, pelo contrário é a intenção de apreender o todo, tendo, porém, como principal obstáculo lingüístico e instrumental, os limites do código e da língua que acaba por ser transposto com originalidade e ousadia, típicas da experimentação modernista.





REFERÊNCIAS:



ANDRADE, Mário de. De Paulicéia Desvairada a Café (Poesias Completas). São Paulo, Círculo do Livro, 1983.

BERGER, J. Modo de Ver, coleción comunicación visual. Barcelona, Gustavo Gili, 1974.

DAGHLIAN, Carlos. Poesia e Música. São Paulo, Perspectiva, col. Debates vol. 195, 1985.

HELBO, André (org.). Semiologia da Representação. São Paulo, Cultrix, 1980.

LESSING, G.E. De Teatro e de Literatura. Introdução e notas de Anatol Rosenfeld. São Paulo, EPU, 1991.

MANOEL, Antônio. “A Música na Primeira Poética de Mário de Andrade” em: DAGHLIAN, Carlos. Poesia e Música. São Paulo, Perspectiva, col. Debates vol. 195, 1985.

METZ, Christian. A Significação no Cinema. São Paulo, Perspectiva, col. Debates vol. 54, 1972.

TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. Petrópolis, Vozes, 1972.



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