A primeira reação é de receio, desconforto, medo. Assim se comporta a maioria das pessoas ao notar a presença de um portador de deficiência física em algum ambiente. Essa visão deformada, de acolher o deficiente com um gesto de estranhamento, é fundamentada na criação de padrões e estereótipos de normalidade pela sociedade contemporânea. “Hoje em dia, todo mundo quer crianças sadias, se espelhando em atletas, em beleza; eu recebi meu filho como um presente, porque eu sabia que tinha condições e tranqüilidade para enfrentar isso”, afirma a mãe de Danilo Resende, portador de paralisia cerebral e dificuldade motora, Laíse Resende.
Segundo dados, da OMS (Organização Mundial de Saúde), do ano de 2003, existem no Brasil 16 milhões de pessoas portadoras de alguma deficiência, o que corresponde a 10% da população; em Pernambuco os números chegam a 750 mil. Segundo essa entidade, pessoa deficiente “é aquela que apresenta, em caráter permanente, perdas ou anormalidades de sua estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, que gerem incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano”.
Os dados são significativos se for levado em conta que para cada deficiente, segundo a OMS, existem pelo menos três outras pessoas (parentes, amigos, profissionais da área de saúde e educação) diretamente envolvidas no assunto; isso leva a verificação de que um terço da população brasileira é, em maior ou menor grau, afetado pelas questões que dizem respeito aos portadores de deficiência. Portanto, as oportunidades de inclusão e de reabilitação não interessam a uma minoria, mas a muita gente.
Segundo a fisioterapeuta da AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente), Teresa Daniela Freitas, a reintegração está fundamentada numa equipe (família, amigos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos) e em centros de reabilitação. Nesses locais, o paciente deve fazer sua terapia e voltar para casa, para que se reintegre à sua família e à sociedade. “Reintegrar não é manter o paciente internado e excluído do mundo, ele tem que estar incluído no meio social; esse tipo de hospital que mantém a pessoa 24 horas sob vigilância está riscado do mapa”, diz.
Tereza afirma que reabilitar é possibilitar o retorno do indivíduo a vida social. “Se não for possível reintegrar a pessoa do ponto de vista trabalhista, deve-se ao menos garantir acessibilidade aos locais públicos: shoppings, cinemas, calçadas”, explica. Para a assistente social da SEAD (Superintendência Estadual de Apoio à Pessoa com Deficiência), Cristina Aires, é preciso diferenciar as palavras integrar e incluir.
O movimento de integração pressupõe algum tipo de treinamento do deficiente para permitir sua participação na sociedade; já o processo inclusivo tem como objetivo fazer com que o mercado de trabalho e a escola aceitem qualquer pessoa, apesar de suas diferenças. “Integrar é você colocar o indivíduo em alguma parte que ele tenha habilidade. A palavra inclusão é mais plena, porque você está aceitando na diversidade”, afirma Cristina..
Segundo a assistente social da SEAD, a inclusão do ponto de vista pedagógico é fundamentada na inserção da criança deficiente física no mundo dos “normais”, dentro do seu contexto. “A escola é obrigada, por lei, a fazer para o aluno com alguma limitação motora ou sensorial uma avaliação diferenciada, mas que não exclua; a instituição de ensino tem de incluir a pessoa dentro da sua realidade e das suas singularidades”, afirma. Cristina diz que há uma má orientação sobre essas questões. “As mães não sabem que podem exigir dos centros educacionais a obrigatoriedade de aceitar seu filho, mesmo que ele tenha uma deficiência”, completa.
Para fonoaudióloga da AACD, Kariny Cortez, reabilitar é restabelecer o que foi perdido, dentro da realidade do paciente, através de uma equipe multidisciplinar. “Para realizar a inclusão, eu procuro saber o que a pessoa fazia antes.Tento direcionar a terapia para sua área de atuação: estudante, professor, médico; tudo para dar a maior proximidade possível da vida social que foi perdida”, diz.
Laíse afirma que faz o possível para o filho ter uma vida próxima do “normal” e para ele se aproximar do mundo sem medo. “Danilo cursa a sétima série, numa classe de regime regular, faz natação, teatro,vai ao cinema. Eu tento estimular essa inclusão dele no meio social”, diz.
Laíse diz que já enxerga na mídia uma preocupação em falar sobre a deficiência e o processo inclusivo. “A Globo tinha uma novela onde um deficiente visual orientava a sociedade a lidar com essas questões. A televisão, hoje, fala em inclusão; você não escutava isso antigamente”, afirma.
A inclusão trata o deficiente como sendo alguém que cabe no “nós”. Ela representa uma ação da sociedade para envolver as pessoas que foram excluídas do mundo por falta de condições adequadas. “No momento que compreendermos totalmente o significado da palavra incluir, o fato de alguém sofrer um acidente e transformar-se num portador de deficiência significará apenas que suas aptidões mudaram, que deve adequar-se a uma nova condição de vida, também repleta de oportunidades”, afirma Tereza.
Acessibilidade: Atividades como andar pelas calçadas, atravessar ruas ou subir num ônibus podem não apresentar dificuldades para maioria das pessoas. Mas essas ações não são fáceis para os portadores de deficiência física, que precisam se locomover diariamente pela cidade.
Segundo a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), acessibilidade é a possibilidade e condição de alcance para a utilização, com segurança e autonomia, de edificações, espaços, mobiliários e equipamentos urbanos. Muitas pessoas com deficiência física se locomovem com o auxílio de órteses, próteses, muletas e cadeira de rodas.A maior dificuldade que elas encontram são as barreiras arquitetônicas e ambientais.
Segundo o superintendente da SEAD, Manoel Aguiar, que é portador de deficiência visual, pensar numa sociedade inclusiva representa a própria evolução da arquitetura. “Não basta fazer rampas, é necessário saber construí-las .Para uma utilização adequada, elas devem ter uma largura superior a 80 cm e uma inclinação de 12,5 graus.”, diz. Aguiar explica, ainda, que hoje o Brasil tem um grande número de leis federais, estaduais e municipais que tratam da acessibilidade.
Aguiar afirma que muitos portadores de deficiência motora preferem ficar em suas residências a enfrentar as barreiras arquitetônicas. “Ficando escondidos, eles tornam-se ainda mais excluídos e discriminados pela sociedade. Deficiente que não se expõe, não se impõe, vai ficar em casa chorando o leite derramado”, diz.
O transporte coletivo é outra dificuldade para o deficiente em Pernambuco, principalmente para quem usa cadeira de rodas. “Na cidade do Recife, hoje, existem 50 ônibus adaptados com elevadores. Esse universo é pequeno se for considerado que existem 2700 veículos circulando”, afirma Aguiar.
Para portadora de deficiência motora, Maria Auxiliadora Roriz, a acessibilidade no Recife continua muito ruim, embora já haja algumas melhoras. “Eu não vejo ônibus adaptados, gasto muito dinheiro com táxi, o que me impossibilita, muitas vezes, de sair de casa. As calçadas também são muito esburacadas e altas, mas já noto melhorias em locais como shoppings, que já possuem rampas e elevadores”, afirma.
No Estado de Pernambuco há uma lei que tenta facilitar a vida de todos os deficientes, garantindo a eles a carteira de livre acesso. Esse benefício permite que os portadores de deficiência usem as linhas municipais e intermunicipais de ônibus gratuitamente.
Segundo Aguiar, quando se pensa na palavra “acesso” são levadas em conta apenas as barreiras arquitônicas e ambientais. “Para mim que sou cego andar nas calçadas é um desastre, entrar num ambiente que eu não tenha referência é uma aventura”, diz. Para ele acessibilidade tomando como conceito o ir e vir é ruim, e no sentido da comunicação, pouco abordado pelas pessoas, é pior ainda. “Se um aluno de universidade tem deficiência auditiva ou visual é complicado, pois quase não há livros em braile e a interação com outras pessoas é difícil, por falta capacitações e informação”, completa.
Preconceito e Mercado de Trabalho
A sociedade contemporânea criou modelos padronizados, fundamentados no culto ao corpo e a beleza, que sempre excluíram quem tivesse fora deles: os negros, idosos, anões, gordos e deficientes. Para mãe de Danilo Resende, portador de paralisia cerebral e dificuldade motora, Laíse Resende, esses fatores sócio-culturais sedimentados através dos séculos, são o embrião para comportamentos preconceituosos e excludentes. “O preconceito não vem da falta de informação das pessoas sobre a deficiência, ele vem da discriminação, mesmo. A sociedade cobra paradigmas de normalidade e aceitação”, afirma.
Para o superintendente da SEAD (Superintendência Estadual de Apoio à Pessoa com Deficiência), Manoel Aguiar, o preconceito é histórico e é fundamentado na rotulação da pessoa com deficiência como inválida. “O comportamento preconceituoso é uma cultura que vem do seu pai, do seu avô, que colocou o estigma da invalidez no deficiente: nós nascemos ouvindo isso. A pessoa é taxada e rotulada sem nem abrir a boca”, diz.
Laíse afirma que tenta ver seu filho como uma pessoa única, sem se preocupar se ele vai preencher todos os requisitos dos padrões da sociedade. “Eu aprendi a ler o olhar que as pessoas direcionam para Danilo. Eu sei ver o olho de humanidade e o de estranheza. Em alguns momentos eu tenho raiva, mas tenho pena daqueles que não sabem lidar com as diferenças”, diz
A portadora de deficiência motora, Maria Auxiliadora Roriz, que é psicóloga, afirma que quase desistiu do curso universitário em virtude da discriminação. “As colegas de classe sempre se perguntavam o que é aquela deficiente estava fazendo na sala de aula, mas eu fui teimosa e continuei estudando.Tentei mostrar que sou mais que uma seqüela, procurei evidenciar minhas capacidades”, explica.
Aguiar afirma que o portador de deficiência física apresenta pouca qualificação profissional, em virtude do acesso à educação ser difícil. Segundo ele, a cultura da invalidez ainda é muito forte no Brasil. “Geralmente o emprego para o deficiente, aparece em vagas de nível inferior como: limpeza, produção em fábricas, telefonista, entre outros”, diz.
Para Aguiar uma das maiores barreiras para o portador de deficiência é criada por ele mesmo, que se coloca na posição de coitadinho e espera ser acolhido com um gesto de benevolência. “O deficiente não vai a luta, isso cria um obstáculo, porque ele acha que não é capaz e a empresa acha que ele não está preparado, isso vira um circulo vicioso”, afirma.
Maria Auxiliadora diz que possui um currículo muito pobre ainda, por ter passado quatro anos no isolamento, sem estudar. “Eu passei muito tempo escondida dentro de casa, sem estudar. Mas agora, consegui terminar o curso de psicologia e estou buscando uma qualificação. Eu sei que o preconceito e dificuldade para arrumar emprego são coisas que vou carregar pelo resto da vida, mas é preciso se impor”, afirma.
A portadora de deficiência motora, Arlete da Silva, afirma que gostaria apenas de ser útil. “As pessoas me olham andando diferente na rua, e já pensam: essa mulher é doida. Eu tenho formação de magistério, só queria mostrar minhas capacidades, mesmo que seja num trabalho voluntário, sem remuneração”, diz.
As empresas são obrigadas, por lei, a ter no seu quadro de funcionários de 3% a 5% de portadores de deficiência, mas muitas só cumprem essa cota quando são fiscalizadas.
Segundo Aguiar, uma das pioneiras na inclusão do deficiente no mercado de trabalho em Pernambuco é a CHESF (Companhia HidroElétrica do São Francisco). “Lá existem pessoas com deficiências diversas: lesado medular, pessoas com paralisia cerebral e amputados. Também há a preocupação em capacitar esses funcionários”, explica.
Apesar de afirmar a existência do preconceito, Aguiar vê uma mudança, ainda que de forma discreta. “Muitas empresas já demonstram maior vontade de colaborar. O que falta agora é qualificar os responsáveis pela educação e pela adaptação dos espaços, dos meios de transporte e locais públicos”, diz.
Campanha da Fraternidade (Box)
A Campanha da Fraternidade é um projeto de evangelização e conscientização promovido pela Igreja Católica no Brasil, que começou em 1962. O movimento tem como objetivo a reflexão e vivência da fraternidade e solidariedade através de temáticas que são escolhidas todos os anos, durante a quaresma, com apoio da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).
O tema deste ano é “Fraternidade e Pessoas com Deficiência”. “Essa campanha significa exercitar e aprender a viver na diversidade. Ela representa lembrar que nesse mundo há lugar para todos. Essa é uma boa ocasião para tornar mais bem conhecida a situação em que vivem muitos deficientes”, afirma o secretário executivo da CNBB no Nordeste, padre Albérico Almeida.
O lema escolhido para a campanha é “levanta-te, vem para o meio”. A igreja foi buscar esse mote na própria bíblia. “É uma passagem do evangelho de São Marcos, onde uma pessoa com deficiência encontra-se diante de Jesus. A palavra dele diante do homem que tem mão seca e atrofiada é essa: ‘vem participar da ciranda da vida’. É um sinal que essa pessoa não está no círculo social, não está participando, que ela foi marginalizada e discriminada. Infelizmente, isso ainda é o que acontece hoje; então essa lição ainda continua muito viva e atual.”, afirma padre Almeida.
Ainda segundo o padre Almeida, a campanha refere-se a todo tipo de deficiência: mental, física ou sensorial. “A reflexão do movimento também serve como denúncia, pois no Brasil 10 % da população é formada por deficientes e mesmo assim ainda estamos longe em falar na palavra inclusão”, diz.
O movimento é um dos que tem tido maior repercussão na mídia, nos últimos anos, porque é algo que interessa a todos. Além do que é preparado pela CNBB, há também uma procura dos veículos de comunicação por aquilo que está se pensando. “A campanha não deve ser apenas vivenciada pela Igreja Católica, mas por outras instituições religiosas, por organizações políticas e não governamentais” diz
Almeida afirma que além da divulgação no rádio e televisão, a maneira mais simples de difundir a campanha é através das missas dominicais, onde os padres podem falar sobre isso. “A CNBB espera que seja despertado o interesse de todo Brasil no sentido de melhorar o relacionamento das pessoas com os portadores de deficiência”, diz.
Contudo, segundo Almeida, 98% das igrejas católicas não são adaptadas para os deficientes: não há tradutores para os surdos, material em braile e rampas de acesso. “A igreja precisa modificar muita coisa fisicamente e na parte de comunicação. O que a gente sonha, nem sempre é o que vivemos; mas essa campanha representa um despertar”, diz.